Volume 1 – Arco 1
Capítulo 4: Um Protagonista Distante de Casa
Encostado em um tronco de árvore segurando numa mão a vareta com gosma ácida e na outra, a pedra, Guilherme assustado ouviu os uivos da matilha de criaturas ferozes.
As feras rodearam o lugar, mantendo uma distância e observando cada movimento do rapaz perdido e apavorado.
Tudo naquele lugar parecia ameaçador. O bosque escuro tinha o horror de um filme em preto e branco ou a crueldade de um cemitério, era difícil escolher uma opção, mas as duas deixavam Guilherme com os bofes para fora.
A mata estava movimentada, cheia de criaturas que fugiam para as tocas ou corriam para o mais longe possível do palco da carnificina, e nessa baderna, não havia nem sombra das terríveis feras, mas o instinto do rapaz lhe permitia sentir-las, embora não as visse.
Nisso tudo, as preocupações de Guilherme criavam ecos dentro da sua cabeça.
O que seria pior, ser estraçalhado por bocas ferozes ou ser pego numa mentira?
O que vou fazer?
Como vou sobreviver?
O que vou inventar?
Apavorado por causa da morte dolorosa, e preocupado ser o disfarce de herói predestinado fosse destruído, sua vontade era cavar um buraco e desaparecer.
Porém, a vergonha de que a sua besta descobrisse que era apenas um fracassado sobressaía ao receio dos seus membros mutilados, porque teria de contar-lhe toda a verdade, todos os erros, todos os pecados. Tal perspectiva o aterrorizava mais que a presença das feras sanguinárias em sua volta.
O que estou fazendo, droga?
É o meu ISEKAI, minha segunda chance.
Se teve um momento da minha vida miserável que precisei ser forte, é agora.
Vamos, vamos, vamos.
Não ouse estragar tudo, desgraçado.
Eu de merda!
Guilherme reuniu fôlego e perguntou:
— Que bichos são esses?
— É uma faminta matilha de lobos — respondeu a pedra.
As mãos do rapaz ficaram geladas quando as palavras da pedra o fizeram imaginar as inúmeras bocas repletas de dentes.
— Eu não quero ser um herói — disse sem pensar.
— Por que?
— Se um herói significa que vou morrer sozinho, ninguém virá me ajudar. Ninguém nunca veio. Morrer foi horrível. Não quero morrer outra vez.
— O que você quer?
Nervoso, o rapaz pôs-se a coçar a cabeça, tentando abrir passagem através dos segredos mais íntimos. Não hesitou. Sem pensar, movido pelo instinto, contou o puro desejo que guardava dentro do coração:
— Quero fazer amigos, companheiros leais. Quero viver, quero uma grande aventura, quero uma namorada. Quero nunca mais voltar a me sentir sozinho.
— huuum… — A pedra fez uma pausa. — Ser um herói significa mudanças. Você é o meu herói, não poderá fugir dessa responsabilidade. Foi sua escolha. Agora, se será o herói desse mundo e se conquistará Last Downfall: a sua coragem é a resposta.
— Não vou conseguir, não vou. Estou sozinho.
— Você nunca esteve sozinho. Eu sempre estive com você, herói. Bem... não sou o mais poderoso, porém, sou muito mais esperto que todas as outras bestas.
O que estou fazendo?
Estou estragando tudo.
Droga!
É o meu ISEKAI…
Não vou ser o mesmo fracassado da Terra!
Guilherme temia ver o desprezo refletido naqueles frenéticos olhos rochosos quando a pedra descobrisse o quanto foi mentiroso e covarde.
Um grande miserável. Era a sua natureza.
Então percebeu que precisava manter a compostura, independente do que acontecesse, porque não precisava ser um herói, e sim, parecer com um.
— Eu sou o herói desse mundo! — afirmou, enxugando o suor frio que escorria pela sua testa.
A matilha faminta estava próxima. As sombras no bosque eram vivas e confundidas com a movimentação dos lobos.
Casco de mula manca.
Maldição!
se eu ao menos soubesse acender uma fogueira com gravetos.
Quanto inútil sou?
Será que nesse mundo tem um isqueiro?
Bosta!
― Uma fogueira iria salvar nossa pele ― comentou ao ouvir um ruído por trás do tronco.
― Não exatamente, as chamas poderiam afastar animais que temem o fogo, mas atrairia as outras criaturas ― disse a pedra.
O vulto de um lobo passou pela direita. Outros sons de galhos quebrados na esquerda.
― Uma coisa é certa ― analisou Guilherme, olhando para a escuridão diante dele. ― Esses bichos são espertos.
― De onde tirou essa conclusão? — interessou-se a pedra. ― Toda criatura é esperta quando quer se alimentar.
― Digo, a estratégia de caça desses lobos. Conseguiram nos encurralar num lugar aberto, não dá para correr e nem se esconder.
― Pode subir numa árvore.
― Aposto que eles não iriam deixar eu tentar.
― Pode ser, a matilha está testando a sua ameaça. Não vai demorar para tentarem a primeira mordida. Conhece sobre as técnicas de caça?
― Na Terra, precisava fugir dos garo… digo, um pouco, joguei Hunting Clash.
― O que é isso?
― Esquece, não dá para explicar, deixa ver, era como um manual de treinamento.
― Hum, treinamento, é muito bom. O cavaleiro levantará sua espada para derrotar o mal. Irá lutar, herói?
O que? Como? Isso?
Que saudade daquele anime.
Desde criança que não ouvia essa frase de efeito: O cavaleiro levantará sua espada para derrotar o mal!
É clichê, mas eu adorava.
O lema do meu herói favorito.
No sítio, eu e ele assistimos juntos.
(...)
Como acabou assim? Como minha vida virou uma bosta?
Ah… foi mesmo… minha culpa!
Um lobo avançou para morder a perna esquerda de Guilherme. Ele saiu da toca do coelho afoito.
Conseguiu evitar a investida e deu, no bicho atrevido, uma varada no lombo, tomando cuidado para não quebrar a ponta e perder o restante da gosma ácida.
O lobo sumiu na escuridão. Se seguiu um coro de rosnados raivosos.
― Lutar? Cavaleiro? Impossível, minha espada é uma vareta e meu escudeiro é uma pedra, vou ser feito em pedaços.
― Não entende de caça? Não precisará lutar contra todos, só precisará derrotar o líder e toda a matilha irá fugir.
― Impossível mesmo assim, terei que passar por todos os malditos lobos para alcançar o líder, não vou chegar a um metro dele inteiro.
― Quando identificar o líder, poderá me jogar nele, não vai matá-lo, mas causará algum dano, sou uma pedra, afinal, uma das mais duras.
― É uma cabeça de pedra, isso sim. Errei em abandonar você antes e não vou errar de novo. Somos companheiros. Você falou que íamos ficar juntos até o final, seja qual for o resultado.
― Hum… ― O murmúrio da pedra foi pesado. ― Vou ajudar como puder. Eu vou ficar com você até o fim!
― É uma promessa, pedra?
― Sim, até o fim!
Guilherme não podia evitar o jogo mortal contra os lobos.
Então não iria apostar a sua vida sem deixar de fazer um lance pelo coração do pedregulho, querendo ou não, a matilha criou uma oportunidade para apertar os laços de confiança com sua besta.
Já havia identificado que a fraqueza da pedra era a carência.
Percebeu isso quando retornou fedendo a fezes depois de ser um completo escroto egoísta, ainda sim, foi bem recebido, quase numa comemoração.
É certo, essa pedra precisa de mim tanto quanto preciso dela, se não for mais.
Posso fazer bom uso dessa carência.
Que belo monstro insensível sou… que pensamento inútil é esse, hein, Guilherme?
Não posso errar as minhas jogadas.
― Pode liberar minha habilidade para a luta?
― Não há tempo, porque precisaríamos firmar o contrato, além do mais, agora seria inútil, só iria atrapalhar mais que ajudar. Foi por isso que o último herói me descartou quando expliquei a habilidade antes do contrato.
― Então foi por isso que não queria me contar nada antes. Eu sou diferente, pode confiar em mim. Até porque, depois do contrato, independente de como for, depois de liberar minhas habilidades, eu poderia lhe jogar num buraco qualquer, não posso?
― Não quero falar sobre isso.
― Hum, tanto faz, não vou sobreviver. Sério mesmo, posso vencer?
― É possível, se for o melhor caçador da noite. O líder precisará mostrar a sua força para a matilha, por isso também vai querer dar uma mordida. O furor do caçador. Terá que ser a isca.
― Isca?
― Sim, escolher bem os movimentos. Atrair o líder e matá-lo! Sei que já tem algo em mente, caso contrário, já teria se livrado da vareta.
― Mas como vou saber qual é o líder?
― Não entendo, o tal manual de treinamento não explicou isso? É sempre da mesma forma, não importa a situação. O mais forte prefulgirá aos demais como uma estrela!
No meio da escuridão um lobo emergiu e, no momento seguinte, tentou abocanhar a coxa direita do rapaz.
Guilherme conseguiu afugentar o bicho com uma varada no focinho. Mas outro lobo saiu das sombras e mirou no seu pé esquerdo.
Ele começou sua jogada deixando que o bicho mordesse. O lobo puxou forte e o derrubou no chão, enquanto ficava mordiscando o seu pé.
Outro lobo avançou na direção das costelas.
Guilherme decidiu arriscar outra vez, não podia revidar ou tentar escapar desse ataque se quisesse que o líder se revelasse, então torceu para que o dano não fosse grande.
O lobo afoito mordeu a lateral da camisa e começou a sacudir a cabeça para rasgar o pano.
Guilherme então posicionou a vareta escondida embaixo do corpo e começou a gritar, interpretando o animalzinho ferido e desesperado.
Lobos entraram em frenesi, corriam por todos os lados e então da escuridão, o maior cachorro deformado que Guilherme já viu na vida emergiu.
― É ele, o líder ― disse a pedra.
O lobo tinha dois metros de altura, olhos salientes e vermelhos. Até sua boca, com dentes enormes, trazia à mente a imagem de uma criatura maligna. A parte inferior do corpo era coberta por uma espessa pelagem cinza com pontas prateadas. Para completar, o lobo era dotado de uma longa cauda terminada num esporão ósseo maciço, a qual ele agitava energicamente.
Era só o que me faltava, uma mistura de cachorro e escorpião…
OI!
Não sou a vovó da chapeuzinho vermelho para ser devorada pelo lobo mau.
Não mesmo!
A fera avançou raivosa.
Tá, se acalme.
Só vou ter uma oportunidade, não posso errar, que o dinheiro gasto no jogo-matar-toupeira sirva para alguma coisa.
Vem cachorro maldito!
Guilherme não iria sobreviver caso deixasse aquela oportunidade passar, já que seu corpo não respondia bem, era como na luta contra Liel e Ramsdale ― surra.
Mas dessa vez era diferente, estava cercado e não tinha fôlego para arriscar uma fuga, já que sentia o corpo esgotado como se tivesse corrido três maratonas seguidas.
Só teria uma oportunidade e teria que ser perfeita.
Essa gosma ácida gruda que nem cola.
Posso conseguir!
Com a boca aberta, o líder da matilha investiu o seu ataque direcionando-o na cabeça do rapaz.
Guilherme rolou meia volta com o corpo para a esquerda. Então veio o ataque da cauda com o esporão. Outra meia volta para direita. O esporão cravou no solo.
O lobo mordiscando o pé e o lobo grudado na camisa, atrapalhavam bastante, mas precisava resistir a investidas dos dois capachos.
O alvo era o líder.
Guilherme voltou para sua posição inicial e livrou a vareta revelando-a. O líder se posicionou para outro ataque e deixou o lado esquerdo do rosto ao alcance.
Guilherme estocou a vareta com toda a força. A ponta com a gosma ácida acertou abaixo do olho esquerdo. A vareta se partiu ao meio com o impacto.
Guilherme sentiu uma dor muscular forte, como se também tivesse quebrado o braço. Mas para o cachorrão, foi pior, porque a gosma ácida grudou na carne dele.
O ladro de dor do líder foi tão alto e aterrorizante que todos os lobos da matilha fugiram apavorados.
A fera desesperada caiu no chão e passou o rosto na terra, e depois se levantou e correu esbarrando nos troncos das árvores, então desapareceu na escuridão.
Guilherme se levantou e começou a examinar o tronco da árvore próxima.
― O que está fazendo? ― perguntou a pedra.
― É minha chance, vou escalar essa árvore.
― Não! A luta ainda não acabou. Tem que matar o líder. Aqueles eram lobos cinzentos e uma de suas principais características: eles são vingativos.
― Se eu for atrás deles, no escuro, você acha que vou sobreviver?
― Não!
― Então o que devo fazer?
― Encontrar um abrigo, é o mais sensato.
― Pois bem, é isso que vou fazer, agora, o único abrigo é no alto de uma árvore.
Todo o corpo de Guilherme estava dolorido, mas conseguiu agarrar nas falhas do tronco e começou a escalar, devagar e com pausas.
― Além do mais, eu vi o que aquela meleca pode fazer. Aquele bicho feio não vai sobreviver. Sua cara vai derreter até o osso.
Guilherme escalou até o topo, escolheu um galho robusto e se encostou no tronco, buscou a melhor posição para evitar uma queda prematura.
Estava extremamente cansado, com muita fome e tudo que queria era dormir.
Mas não podia, não antes de avaliar sua situação, poderia custar a vida.
Deu um jeito de se esticar melhor no tronco, numa parte que ele poderia ficar escondido pelas folhagens espessas.
Começou a conferir os danos. Tirou a sapatilha do pé esquerdo. A sapatilha estava cheia de furos. Mas o pé de Guilherme só tinha arranhões superficiais.
A camisa estava toda rasgada, mas a região das costelas não tinha ferimentos.
Enfrentei uma matilha de lobos monstruosos e consegui escapar sem ferimentos.
Mas que porra… consegui! Foi perfect!
eu sou calda no bolo, aí moleque.
Arrasei!
―Pedra, agora podemos conversar?
― Vamos deixar para quando amanhecer. Você comeu alguma coisa desde que reencarnou?
Será que fezes contam?
Arghn!
― Não! ― respondeu Guilherme deitado e olhando o céu.
― Você precisa descansar e recuperar o seu vigor, amanhã poderemos resolver nossos assuntos.
Guilherme não tinha como questionar, já que os olhos estavam pesados e o estômago parecia que iria devorar as entranhas de tanta fome.
O certo a fazer era descansar para recuperar um pouco de energia, para assim conseguir pensar melhor. Mas tinha algo martelando em sua mente que não podia deixar para o dia seguinte.
― Pedra, aquela frase que usou: o cavaleiro levantará sua espada para derrotar o mal! É o lema de um anime infantil da Terra, como você conhece?
― Anime? Não sei, bem… esse é um mundo de cavaleiros e heróis. Só foi uma coincidência.
Uh… coincidência?
Estou num mundo com a temática medieval, faz sentido.
Ainda, aquele anime é da minha infância, foi cancelado à anos, a pedra não poderia conhecer.
É verdade mesmo. Estou na minha própria aventura épica…
Irado!
Por causa da altura, Guilherme tinha uma visão privilegiada do céu.
Acima das poucas nuvens resplandecia a cortina de estrelas e duas luas, uma era enorme e vermelha, a outra um pouco menor e de cor azul quase prateada.
Com os olhos estreitos, viu duas asas negras voando abaixo da lua vermelha.
É um morcego?
Que morcegão virado da peste.
Guilherme achou que aquela vista era linda e quase adormecendo disse:
― Pedra, como fui na briga com os lobos?
― Você foi incrível, pode dormir, eu vou vigiar a noite toda, pouco preciso do sono.
― Tá bom.
Não demorou nada para Guilherme adormecer acompanhado de uma perigosa tranquilidade. Naquele desfecho, ninguém podia afirmar se era o cansaço, ou outra das suas jogadas, mas ele confiou na besta lendária da sabedoria.
O rapaz deixou que a sua consciência se recuperasse um pouco das inúmeras surpresas e, num movimento perigoso, fez o corpo escorregar no galho e pairar deitado como numa cama dura de hotel, que suportou todo o seu peso.
Ignorando os ruídos estranhos do sombrio bosque, ele caiu nas garras das suas memórias, como se aquilo não o interessasse nem um pouco.
Ele ia começar a chorar, mas as lágrimas secaram nos olhos, quando ele ouviu a pedra falar qualquer coisa, apenas palavras supérfluas. Aquela besta não era só um companheiro. Era estranho, misterioso e espantosamente familiar.
― Pedra… obrigado por não me abandonar ― disse dormindo.
― Quando acordar, vou estar aqui, pequeno coelho.
Guilherme quis usar a carência como arma contra sua besta, mas não levou em consideração que esse sentimento é uma espada de dois gumes.
...