Last Downfall Brasileira

Autor(a): VALHALLA


Volume 1 – Arco 1

Capítulo 30.1: A Cigana que Não Sabia Ver o Futuro

Nas velas, pequenas chamas ardiam para iluminar o início de uma noite fria.

Da janela do quarto da hospedaria, ela tirou os pinos de sustentação das dobradiças usando a ponta de um punhal de cabo negro. Sua prática nada deixava a dever aos experientes ladrões.

Precavida, Miranda deixou as trincas folgadas e as presilhas soltas.

Então parou, olhou para fora, e percebeu que era uma altura considerável do segundo andar até o chão, mas uma carroça de feno estacionada abaixo da janela a deixou mais tranquila.

Qualquer um dos parceiros do submundo, que a visse daquele jeito, iria estranhar suas atitudes.

Ela nunca foi de se preocupar com negociatas simples, tanto quanto não se preocupava com os dedos longos e torneados das mãos calejadas, resultados de uma vida sofrida, porém, agora, com a chegada próxima de um misterioso visitante, punha-se a ficar nervosa.

Era uma sensação estranha.

― Você parece agitada. O que há, Miranda? ― Um homem grande perguntou, ele estava perto da porta de entrada do quarto. — Hoje o seu espartilho tá apertado demais? Quer uma ajudinha para folgar?

O sujeito riu.

No outro canto do cômodo havia outro homem, só que gordo e baixo, ele segurava uma faca.

Eram os irmãos bandidos, capangas de confiança, que a garota costumava contratar para auxiliar o seu bando em trabalhos específicos.

― O futuro poderia ser mais generoso, meninos. Acredito que o preço que negociei pela mercadoria foi baixo.

― Quanto foi? — O gordo lhe deu a atenção. — Quinze, vinte, quem sabe trinta moedas de bronze?

― 35 moedas de prata!

Miranda queria ignorar aquela quantidade de moedas do acordo, era estranho, mas ao falar o valor, teve a certeza que foi muito pouco.

― Fiiiuuu… ― O grandalhão ficou impressionado. ― Você é maluca? Diz pouco, mas quando contratou os nossos serviços, disse que era um trabalho moleza, nem passou pela ponta da língua chegar perto de tanta prata. Dava para garantir comida para nossas famílias por um bom tempo. O que vamos ter que enfrentar por esse ganho?

― A especialização de vocês são ossos quebrados, né? ― brincou ela, para distrair do foco principal, que era a sua fama de carta marcada e cigana cega. — É apenas o que preciso agora.

Mas dessa vez seria diferente, e com o auxílio desses dois homens, Miranda acreditava que poderia arrancar mais moedas do comprador misterioso. Acertar, enfim, um golpe lucrativo.

― Olhe para o futuro. Você pensa que é um grande valor, mas se eu disser que podemos até dobrar, e talvez, com as cartadas certas, ir mais além?

― Como? ― perguntou o homem gordo no canto da sala.

― Bons negociantes deram a trilha para meu bando. Havia na cidade um comprador com muita prata, interessado numa certa carga roubada de uma caravana do Império Tusso do Sul. O futuro virou ao nosso favor, meninos, porque é justo o nosso saque da semana passada.

― O roubo todo? — O grandalhão suspirou.

― Não! ― Ela ergueu um dedo. ― Apenas um item: o comprador quer aquele estranho ORBE VERMELHO ― depois continuou, satisfeita: ― Joguei alto o preço e o sujeito aceitou pagar sem questionar. É incomum encontrar tratantes tão favoráveis. Por isso, tenho certeza, com a jogada certa, poderíamos lucrar alto.

— Quem é esse endinheirado bom de coração? — O grandalhão passou a mão pelo cabelo, não se aguentava de alegria.

— Não vi seu rosto porque tava usando um albornoz negro. Mas pelo jeito de falar, acredito que é um velho. Sabem o que isso significa?

— Significa que é estranho — induziu o gordo, analisando a faca que tinha na mão. — O roubo nem esfriou, e a notícia se espalhou. Ainda, toda essa prata por apenas um item. Nem vou falar do rosto oculto… isso está fedendo, é arriscado. Cadê o tal orbe?

— Tá seguro! Não iria trazer a mercadoria principal para o golpe.

O gordo usou a ponta da faca para coçar as inchadas bochechas. 

― O futuro é nosso. É só um item, não tem peso e nem bagagem, fácil de lidar. Se a gente encher o bolso logo de cara, é um bom negócio. Estou sentindo cheiro de boa prata.

― Ainda vai restar todo o grosso do saque ― aludiu o grandalhão, sorrindo.

― Não vou negar que algumas moedas a mais não fariam mal ― concordou o gordo. ― Tenho filhos e mulher, eles têm fome.

― O futuro é nosso, meninos, desta vez não estou errada.

― Você é a líder ― brincou o grandalhão. ― Que o deus Krig guarde nossas almas. Se desta vez você acertar a bocada, vou acreditar que pode ver o futuro.

― Vou provar que não sou uma cigana cega. Certo! Vamos todos encher os bolsos neste trabalho. É só não vacilar quando o comprador chegar, primeiro vamos eliminar os guarda-costas, e depois depenar o velhote. Como for, sigam os meus sinais.

Miranda olhou o movimento da rua pela janela, e então suspirou, apesar dos bons ventos, não conseguiu ficar tranquila.

◈◈◈◈◈◈

O trio de bandidos esperou por trinta minutos.

Então, a porta do quarto veio a estremecer com uma série de batidas leves.

O som era quase imperceptível, sendo ouvido apenas porque os três ladrões dentro do quarto estavam nervosos demais para relaxarem.

Miranda fez sinal com a cabeça para o capanga grandalhão, enquanto o gordo se posicionou na extremidade segurando a faca.

O grandalhão se aproximou da porta e perguntou:

― Quem bate no lado de fora?

― O compraaador, trago praaata! ― Uma voz arrastada e áspera atravessou a madeira da porta e se espalhou por todo o quarto.

Um clima mórbido preencheu todo o lugar. Foi como ouvir o ranger das dobradiças enferrujadas de uma cripta.

A voz tinha o timbre sem vida de uma múmia.

Miranda fez sinal positivo com a cabeça. O grandalhão abriu a porta devagar.

Uma figura oculta por um albornoz negro com um grande capuz acoplado entrou devagar. Assim que ele entrou, o grandalhão, excitado, perguntou com uma voz intimidadora:

― Está sozinho?

― Siiim!

O grandalhão olhou no corredor e não tinha mais ninguém. Então fez sinal positivo para a Cigana e fechou a porta.

Miranda olhou para o gordo e sorriu, não poderia ser melhor, ela pensou, esse idiota veio sozinho.

O comprador avistou o homem gordo no canto, segurando a faca e com um sorriso cruel. Ele não se importou e avançou até uma mesa de centro. De dentro do seu albornoz tirou uma algibeira com moedas.

― 35 Moeeedas de prata. O valor que peeediu. Dessa forma cumpro o acooordo! ― O velho colocou a algibeira sobre a mesa. ― Quero o orbe! Tenho preeessa.

É só um velho, Miranda analisou, e depois refletiu, é um ganho fácil!

O pai dela tinha lhe dito, uma vez, que a sua precipitação em avaliar uma situação lucrativa era um sinal de que os nervos ofuscaram a razão.

Nesta situação, porém, tinha encontrado a galinha de ovos de ouro ― ou melhor, de prata.

Ela tinha a certeza da vitória, e não precisava ver o futuro para enxergar o óbvio.

Se um velho desafortunado entrou num quarto estranho com os bolsos cheios de moedas, não poderá deixar passar esse lucro.

— Você é corajoso, velhote, tenho que admitir. Veio encontrar o bando das cartomantes sozinho. — Ela insinuou as belas curvas do corpo. ― Mas deveria saber que um lucro fácil não escapa de nossas mãos.

A garota não conseguiu ver a expressão facial da figura misteriosa por causa do capuz, como também ele não esboçou nenhuma reação corporal; apenas permaneceu parado.

Para qualquer visão, aquele velho pareceria tão inofensivo como aquele Sábio Miserável, o idiota qual a Cigana rasgou o rosto alguns dias atrás.

Mas ela sabia que, quando subestimados, os idiotas poderiam ser mais perigosos que uma aranha bolha-amarela.

A garota fez sinal para os dois homens. Eles começaram a rir e cercaram o velho.

— Mais surpresas? — ela perguntou, de forma arrogante, mostrando o punhal de cabo negro. — Eu não trouxe o orbe, só o meu punhal. Sabe, ele nunca cortou carne velha, espero que não perca o fio.

— Não, não, esse não era o nosso acooordo.

— Os acordos aqui, quem decide sou eu!

— Por favor, criaaança, não faaaça isso.

— Não vá chorar, velhote, é cedo demais. — O grandalhão empurrou o comprador. — Tira tudo que tem nos bolsos. Não esqueça uma moeda sequer!

— Vocês quebraram o acooordo! — A voz sem vida do velho parecia se estender até o infinito, e começou a criar ecos perturbadores.

— Vamos, velhote, deixa disso. Você que não sabe negociar. Qualquer idiota sabe que nunca se aceita o primeiro preço de uma mercadoria. Tem que pechinchar, caso contrário, só vai atiçar a ganância dos vendedores. O que tem de especial naquele orbe, para você ser tão descuidado?

— Queeero o orbe, é tudo que impooorta.

— Na minha opinião, tudo pode ser resumido em duas palavras: perdeu, otário — falou o grandalhão, enquanto se preparava para dar o primeiro golpe no velho.

— Hum, então irei criar um novo acordo. Vou tomar tudo o que você tem e ficar com o orbe, tenho certeza que vale muito mais que 35 moedas de prata. E você, velhote, seu futuro é nublado, reze aos seus deuses para não morrer.

— Pobre criaaança, eu não rezo, deuuuses são maliiignos. O que há no mundo, apeeenas, são jovens que desperdiçam as suas vidas por ganâaancia.

O grandalhão agarrou o pulso esquerdo do velho para aplicar uma violenta chave-de-braço, o que por um momento fez a manga do albornoz subir, revelando uma mão magra e de pele enrugada, e voltou a descer rápido, ocultando a terrível verdade.

Foi num instante, mas Miranda viu a tatuagem abaixo do polegar, e seu coração disparou porque reconheceu o desenho da morte: O PIERROT.

— Ouvi falar sobre isso. Covardes que escondem os rostos, mas achei que eram apenas lamúrias dos bêbados nas tavernas. — O grandalhão pegou pelo capuz do comprador. — Eu gosto de olhar o rosto de quem vou espancar.

— Seu idiota, não…! — Miranda gritou.

Era tarde demais.

O grandalhão puxou o capuz revelando uma pessoa que caminhava pelo caminho das sombras, pois a sua pele era de uma palidez mórbida. Além de velho, o rosto também tinha características orientais.

O que se seguiu foi perturbador.

O crepitar das chamas das velas projetou uma fantasmagórica dança de sombras nos cantos escuros do quarto.

O brilho dos olhos negros do rosto contorcido pelo tempo rivalizou com a fosca luz das pequenas chamas.

Miranda não queria pensar. No entanto, pela sua mente desfilavam imagens pavorosas, do seu passado, cenas que desejaria esquecer para sempre.

Num instante, o corpo do grandalhão caiu desfalecido e sua cabeça rolou até os pés de Miranda.

A garota entrou em desespero quando viu os olhos arregalados sem o brilho da vida. Era como se eles acusassem o seu erro.

O homem gordo não entendeu nada, mas ao ver a cabeça do irmão rolar, avançou empunhando a faca: — Maldito velho, vai morrer!

O braço que empunhava a faca saiu voando, dando voltas no ar. O homem, atordoado com a dor, olhou para a Cigana e gritou: — Fuja, sua idiota!

Ele pulou e jogou o pesado corpo contra o velho num ato de desespero.

Por algum tempo, Miranda foi mesmo uma idiota empacada, mas resolveu agir, não acreditando que a situação tinha virado daquela forma.

Ela correu e se jogou contra a janela, mas antes, pode ver o corpo do companheiro sendo esquartejado ainda no ar, e os olhos terríveis do velho fitando-a, desejando-a e lacrimejando.

Miranda caiu sobre o feno da carroça.

Não se feriu.

Pulou e sacudiu os pedaços de palha do vestido, fez uma cara de “não entender nada” para os curiosos.

Olhou para a janela quebrada, e ninguém veio atrás dela, então desceu a rua correndo, se misturando entre pessoas comuns.

Como um fantasma, desapareceu.

...



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