Last Downfall Brasileira

Autor(a): VALHALLA


Volume 1 – Arco 1

Capítulo 30: O Protagonista Miserável - Parte 3

Guilherme estava quase perdendo a esperança quando ouviu a voz da sua besta lendária, firme e irritante como sempre.

A voz da pedra foi como o cantar dos pássaros depois da tempestade.

Ele inclinou-se, tirando-a de dentro da camisa, enquanto pensava no que poderia dizer para se desculpar por sua arrogância e grosserias.

Não que quisesse mentir ou inventar algo, não dessa vez. Só queria ser verdadeiro, apagar os erros da velha e da nova vida.

Vagou pelas memórias, enquanto mordiscava a ponta da língua porque as palavras não saíam.

Ele lembrou das agressões verbais e, como não poderia ser diferente, de toda a teimosia e desrespeito. Tudo que ele usou para ofender a pedra veio de uma vez na sua mente.

Os últimos dias haviam sidos uma tortura infernal, em especial a casa de carnes e a colher incandescente do açougueiro. No entanto, o que acabou com o seu orgulho foi a terrível revelação de Skog: que nunca passou de um mero peão no tabuleiro dos deuses; que sua história não significa nada.

Respirou fundo.

Para simplificar, ele não conseguiu falar.

Guilherme não estava em condições de enfrentar nem mesmo uma conversa amena, quanto mais argumentar com os erros do passado que, sem ocultar a verdade, acusavam-no responsável por todos os acontecimentos terríveis dos últimos tempos.

Ele ficou preso num carrossel de arrependimentos, dando voltas e mais voltas.

Sempre teve tanto a falar, e agora não conseguia esboçar um simples substantivo: PERDÃO.

— Pedra, eu sinto muito tudo o que fiz — disse, travado e pesado. — Fiz porque queria ser especial. 

— Você pagou o preço da arrogância, e foi caro demais — aludiu a pedra. — Vê-lo assim, sem palavras, não é bom porque o silêncio não combina com você. As pessoas não nascem especiais, mas elas podem se tornar incríveis, por isso não deve sentir vergonha, é outra vítima nesse mundo de vilões…

“Agora, a minha vergonha é imensa e verdadeira. O meu erro foi grave. Fui teimoso e orgulhoso. Eu vi as suas mazelas, cada uma delas, estava sempre lá, com você, sinto muito, mas não pude fazer nada. Então me calei.

“Assistir o sofrimento das pessoas que amei sem poder reagir, herói, esse foi o castigo dado a mim pelos deuses, e estou cansado demais.”

Eu não sou herói!

A pedra havia voltado a falar, mas Guilherme não conseguia se alegrar com o fato, tal o peso que carregava no coração.

Por muitos dias ele não ouviu a voz da sua besta e quando, depois das provações, ela falou, o rapaz já tinha tido toda a sua arrogância destroçada.

Junto dela, os seus sonhos.

Percebeu que não tinha nada de diferente do seu companheiro rochoso, já que juntos eram uma dupla de condenados sem esperança.

Por isso escutar a palavra “HERÓI” lhe machucou tanto quanto a colher incandescente do açougueiro.

De forma alguma vai aceitar se perder outra vez nas ilusões de grandeza, e nas tolas referências das novels vazias que preencheram o vácuo da sua vida na Terra.

Para evitar novos erros, não poderia manter a mentira sobre a patética vida passada e decidiu contar a verdade:

— Pedra, oh pedra, não sou um herói! Nunca fui! Na Terra eu era um covarde fracassado, arrogante e egoísta, que não confiava em ninguém. Magoei as pessoas que me amavam e traí um amigo.

— Eu já sabia. Desde o nosso primeiro encontro, as suas atitudes não foram heróicas.

Guilherme arregalou o olho restante, concordou com um gesto de cabeça e perguntou de forma suave:

— hum… eu estraguei a nossa aventura e menti para você. O deus Skog ofereceu sua liberdade, e mesmo assim continuou comigo, por quê?

— Os deuses só oferecem mentiras. Nesse mundo, sempre há espaços para a falsidade, onde uma promessa não vale nada. O cavaleiro levantará sua espada para derrotar o mal. Eu acredito na frase que usou na Guilda dos Heróis para consagrar o escudeiro Cristã: MINHA PALAVRA É MINHA HONRA!

O cavaleiro derrotará o mal! Minha palavra é minha honra!

Quantas saudades, tudo era mais fácil, quando víamos juntos o anime do herói valente… meu querido amigo.

Queria voltar o tempo, queria ser diferente!

— Herói, mesmo que os oceanos sequem e a própria terra definhe, eu não voltarei atrás na minha palavra. Eu fiz uma promessa, e de uma forma ou outra, vamos ficar juntos até o final! — A pedra concluiu.

Naquele momento, a amargura no coração do rapaz era total, por isso as grandes palavras da pedra não tiveram efeito na dor.

Guilherme estava fazendo o que podia para mudar, mas o pesado fardo das mentiras sobre suas costas estavam acima da sua capacidade de superação.

Ele quis se livrar do bilhete do açougueiro, mas o manteve em sua mão, espremido entre os dedos.

— Não sou um herói!

O rapaz, desolado, não conseguiu olhar adiante, e da mesma forma que ser sugado por um maciço buraco negro, ele não conseguiu evitar e voltou a mentir:

— Para, para, não me chame assim, já disse que não mereço. Tudo em mim é uma mentira. Inventei esses jargões para parecer algo que não sou.

— Não se machuque mais. Eu conheço a verdade. Essas frases eram daquele anime que inspirou a sua infância. Pois faço das palavras daquele bravo cavaleiro, um hino à aventura: o heroísmo é maior que nossas vidas…

“Todo herói já teve medo de entrar em combate. Todo herói já traiu e mentiu no passado. Todo herói já perdeu a fé no futuro. Todo herói já trilhou um caminho que não era o dele. Todo herói disse SIM quando queria dizer NÃO. Todo herói feriu alguém que amava. Todo herói foi humilhado e derrotado.

“Todo herói pensou que não era um herói… por isso é um herói, porque enfrentou esses desafios e conseguiu recuperar a esperança de ser melhor do que era.”

— O que posso fazer?

Guilherme chorou porque queria ser diferente, mas não conseguia.

— Pode começar, pode pegar tudo o que passou e transformar em motivação para a jornada. Pode continuar caminhando para frente!

Sem dizer nada, o rapaz abaixou a cabeça e lembrou do Dick.

Ir em frente que a magia vai acontecer…

É isso, velhote?

Agora entendo.

Muito bem.

Eu nunca mais vou recuar na minha aventura, posso contornar, mentir, enganar e trapacear… destruir, mas nunca mais vou recuar!

Isso!

— Certo, entendo…

Guilherme fez uma pausa para enxugar as lágrimas que estavam se misturando ao sangue que escorria da cavidade do olho esquerdo.

— Só não me chame mais de herói — ele continuou — porque não sou herói, não vou me tornar um herói e não irei perdoar como um herói. Serei a praga que irá devorar esse mundo. Meu bando: o Coelho! Meu nome: Guilherme, o sábio miserável!

— Um nome é apenas um nome. Não irá definir quem você se tornará no fim da jornada.

— Sobre isso, pedra, seu nome é Uriel?

Um ruído diferente chamou a atenção do Sábio, que vinha da pedra. Enquanto tentava identificar o estranho som, a besta ficou em silêncio, mas podia jurar que eram suspiros de lamentação.

Guilherme esperou torcendo os dedos de aflição, pensando que tinha feito algo errado.

Respirou aliviado depois do que lhe pareceu um tempo enorme, ao ouvir a pedra pronunciar com pesar a história do próprio nome.

— Uriel… por um tempo fui chamado assim, quando o céu ainda era jovem, quando essa terra não tinha cheiro de sangue.

— Desculpa, não quero pressionar você, só não quero mais mentiras entre nós.

Guilherme construiu uma dúzia de possibilidades na sua mente e negou todas elas para ouvir apenas sua besta, evitando pensar na interrogação que estava estampada na sua face pálida.

— As eras soterraram o meu passado — sussurrou a pedra. — Uriel é um nome que não deve voltar a ser pronunciado nesse mundo. Agora, sou apenas uma pedra! Os deuses construíram um grande teatro para suas tragédias.

O maldito Skog me arratou para esse inferno!

— Esse mundo é uma merda e esses malditos combinam com tudo isso, eles vão pagar por tudo.

Guilherme ignorou que foi ele mesmo que escolheu o inferno.

— Nem sempre foi assim, quando o criador criou as realidades; criou os deuses para zelar pelo céu e os dragões para zelar pela terra, juntas, essas duas forças iriam ser o equilíbrio dos mundos.

— Dragões? — Ele ficou surpreso. — O que aconteceu?

E agora, mais essa.

Ele fez um gesto com a mão, indicando a confusão que se criou em sua mente.

— O poder é capaz de corromper tudo o que é belo. A existência ficou pequena demais para duas raças tão poderosas, então, iniciou-se uma guerra que durou por eras.

— Quem venceu?

— Os deuses! Os dragões foram exterminados da existência, todos eles.

— Se havia equilíbrio, como os malditos venceram?

Guilherme franziu a testa, sem compreender direito o tamanho do vespeiro que significava a história que a pedra estava contando.

Pelo menos, os lagartões dançaram.

É uma coisa a menos para me preocupar.

— Aconteceu antes de eu existir, não conheço a história completa.

A pedra fez um momento de silêncio.

Isso não é bom.

Toda vez que ele para de falar, algo tá errado.

Mas o que é?

— Pedra, porque não me contou tudo isso antes?

— Eu contei, mas você não quis escutar.

— Pera, não, você não falou nada dessa treta sinistra.

— não, mas se tivesse, teria adiantado?

— Ahh… — Guilherme engasgou, então entendeu que ele foi o maior vilão de si mesmo. — Não!

Droga, droga, droga!

Essa pedra sabe como me encurralar.

Droga!

Não quero começar outra briga com ele.

Vou seguir a correnteza. 

— Com a vitória, os deuses se tornaram os senhores das realidades, transformando esse mundo num tabuleiro de jogos sádicos — continuou a pedra. — Eles venceram, só que nunca mais foram os mesmos, se tornaram malignos, ambiciosos, vingativos… perigosos.

— E o tal criador, por que não fez nada? 

— Ele criou Last Downfall, para que os heróis tivessem uma chance de consertar as coisas, tanto, que os deuses não podem tocar no grande tesouro e nem influenciar diretamente no desejo deles… 

“É por isso que os deuses arrancam as memórias dos escolhidos e transformam suas vidas num inferno, para que os Heróis se concentrem apenas nos seus desejos egoístas.”

— Não faz sentido, então por que Skog me deixou ficar com minhas memórias?

— Se aquela criatura fez isso, fez por um motivo, por isso, não pode se deixar influenciar por ela.

— Tarde demais pedra, eu vou destruir esses malditos. Mais uma coisa, e esse tal criador, por que não fez nada mais efetivo? Por que não destruiu tudo e começou do zero, seria muito mais simples.

— Não sei quem é o criador. Sua existência e poder, são além da compreensão.

— Ah… fala sério, como então sabe que esse cara existe?

— Porque vislumbrei sua grandeza uma única vez!

Maravilha!

As coisas só pioram.

Eu vou conseguir sobreviver?

— Pedra, diga a verdade, você foi um humano?

O Sábio recomeçou a tarefa de conseguir decifrar os segredos da sua besta, enquanto esfregava o bilhete de despedida do açougueiro entre os dedos.

Um gemido vindo da sua besta chamou-lhe a atenção, então, para sua surpresa, a pedra respondeu seco:

— Sim!

Esperaram juntos por um momento, em silêncio, como se quisessem cada um entender as razões do outro.

Várias vezes Guilherme sacudiu a cabeça pensando no que dizer, mas tinha uma pergunta na ponta da língua que não podia ignorar.

— Eu já imaginava isso, mas você foi da Terra, pedra?

— Não!

— Você é a pedra da lenda do Rei Sábio, que a maluca do morango contou.

— Sim!

— Você conquistou LAST DOWNFALL?

— Sim!

— Foi dessa forma que viu o tal criador?

— Sim!

— O que aconteceu para terminar dessa forma?

— Fui traído! Mas isso não importa mais, porque os corpos de todos agora, não passam de pó. — Muito rápido, a pedra mudou o foco da conversa. — Guilherme, por que do seu fascínio pelo animal coelho?

Agora foi a vez do Sábio suspirar profundo e com dor. Mas não iria recuar daquela situação que criou. Os dois precisavam de respostas.

— É a representação do meu amigo de infância.

— Você lembra dele?

— Todos os dias!

— O que aconteceu para terminar assim?

— Eu cometi um erro terrível, traí e matei!

— Como?

Guilherme não disse nada, passou sua mão pelo rosto e pressionou a ferida para que a dor lhe tirasse daquele estado. Enfiou o bilhete do açougueiro dentro das calças. Em seguida, segurou a pedra na altura do rosto e com o olho restante admirou os pequenos olhinhos rochosos.

— Pedra, todas as pessoas que você conheceu estão mortas, tudo virou pó. Eu sei que ainda tem muita coisa que não quer me contar, verdade, não me importo, você não me contou na última vez e não vai me contar agora…

“Só quero que saiba: EU SEI!

“De agora em diante, você será o responsável pelo caminho da nossa aventura.

“No final, seja ele qual for, eu não serei o único culpado!"

Guilherme conseguiu ficar de pé e caminhar devagar, então continuou:

— Por minha vez, também tenho segredos que quero esconder, erros que quero esquecer, e estou morto para todas as pessoas que um dia se importaram comigo.

Guilherme se ajoelhou do lado do córrego de esgoto, enquanto a pedra apenas observava, para conseguir compreender aquela reação repentina.

— Somos só nós dois nesse mundo. E esse lugar fudeu com a gente pra valer.

Primeiro Guilherme pegou a linguiça da água imunda e depois usou sua habilidade.

Mas é claro que nível 1 não ia funcionar. nessa imundície.

Sou fraco demais.

Isso não é uma narrativa pobre que tudo vai se resolver com um estalo de clareza.

Não vai funcionar assim!

— Que tal a gente reunir LAST DOWNFALL, Skog, lendas, passado e toda essa merda, e mandar se ferrar. Pedra, eu e você vamos radicalizar com esse mundo e viver nossa aventura, o que você me diz, companheiro?

— E você consegue fazer isso, Guilherme, o sábio miserável?

Sem poder respirar por causa do fedor de latrinas e também sem poder recuar, Guilherme comeu a imunda linguiça, cada pedaço, e o rosto pálido e todo machucado, não parecia enjoado e sim, determinado.

Isso me custou um olho da cara.

Não vai sobrar um pedacinho.

Comida no lixo não faz mal, eu juro!

— Você consegue? — a pedra repetiu a pergunta.

Guilherme após comer toda a linguiça, apenas olhou para a saída da viela e disse:

— Não sei, mas vou continuar em frente.

— É caminhando que se conquista… excelente! Dessa forma, no fim, poderemos descansar nos braços carinhosos de VALHALLA!

— Agora isso? Pensei que odiasse os deuses?

— VALHALLA não é uma deusa, bem, para usar uma definição da realidade da Terra: seria o destino. Ela cuida de todos.

— Pro inferno tudo isso, esqueceu? É só uma lenda de merda. Tô fora!

Destino, né?

Hum… se um dia encontrar essa vadia, nem sei… nem sei.

OI!

Um olho, fala sério, tinha necessidade?

Eu não quero mais todas as respostas, pois, se continuar me afundando no passado, em lendas furadas, o único destino ou VALHALLA, dane-se…

Se eu continuar com isso, só vou encontrar um fim muito dolorido.

A pedra não contou tudo, sei disso, e quer saber:

Não importa!

Vou acreditar nela, estamos juntos nessa.

Só para frente… só para frente aponta as lunetas.

— O que quer fazer primeiro?

— A primeira coisa é sair dessa cidade, esse lugar dos infernos.

Guilherme guardou o pergaminho e o lápis de carvão por dentro das calças, e rasgou a velha bolsa de aventureiro.

Isso machucou seu coração porque a sua velha bolsa foi a única conquista verdadeira naquele mundo.

Então, ele usou os pedaços de pano para fazer uma bandagem para cobrir o olho e a ferida no rosto.

— A matilha de lobos cinzentos ainda esperam no bosque e não termos moedas para pagar uma saída segura, o que pretende fazer?

— Há uma forma!

Após uma rápida conferência na viela, Guilherme caminhou meio cambaleando para fora da escuridão que cercou seu corpo por tanto tempo naquele lugar.

As suas pernas fraquejaram, mas continuou o caminho, determinado, porque agora tinha um laços de amizade com seu companheiro; não a sua besta, e sim um amigo: a pedra.

Esse mundo me fudeu bonito, me fudeu e me jogou no lixo.

Comédia drástica.

Não vou salvar nada. Não me vale nada.

Apenas quero aproveitar o que restou de mim ao máximo e livre, consumi tudo e todos, fazer o que não fiz na Terra.

Essa maldita gente me tratou como um miserável.

— Hhe… hhe… hhe… sserá aa eera ddas ttrevas…

Ah, vai ser divertido… oh, vai sim.

Será muito divertido.

A aventura? Sempre para frente!

Não sou o herói.

Não sou o protagonista.

Sou Guilherme, o sábio miserável!

ESSE MUNDO IRÁ QUEIMAR!

...



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