Last Downfall Brasileira

Autor(a): VALHALLA


Volume 1 – Arco 1

Capítulo 29: O Protagonista Miserável - Parte 2

— É minha vez de me esconder — disse Guilherme.

Ele era uma criança tão esperançosa, tão corajosa, não mais que 7 anos brincando no velho sítio dos avós, e estava tão feliz.

Acreditava em heróis, amizade e família. Foi a melhor fase da sua vida.

Numa brincadeira de pique-esconde, o garotinho corria entre os pés de cafés, perseguindo o pequeno coelho; para juntos encontrar o esconderijo perfeito.

Mas o que aconteceu para uma criança esperançosa se transformar num adulto deprimente?

HMMMMM

Foi naquele dia que os céus se abriram e o trovão gritou.

Após contornar um canteiro, trombou com um homem, que era tão enorme quanto um dos pés de café e vestia roupas estranhas, feitas de metal e… ira.

Guilherme caiu sentado no chão e machucou o traseiro, doeu muito.

Não chorou! Não era de chorar. Ainda não.

O homem não se importou, lançou um olhar sinistro e perguntou com a voz de uma fera violenta.

— ONDE ELE ESTÁ?

(…)

Guilherme acordou nas profundezas de uma viela escura, jogado na sarjeta, sozinho.

O lugar era frio e sombrio.

Ele quis beber água porque a boca estava seca.

Alarmado e confuso, ele tentou se arrastar e só conseguiu parar o corpo numa parede fria. Com a pele dormente só sentiu um calafrio. Era estranho, pois não estava sentindo dor, apenas uma dormência capaz de gelar os ossos.

Tocou o rosto, passou de leve a mão sobre o corte feito pela cigana, então parou, as pontas dos dedos sentiram a cavidade vazia do seu olho esquerdo. Tinha a textura de um buraco negro, pronto para devorar a si próprio.

Não conseguiu chorar, não conseguiu bravejar, não conseguiu pensar.

Alguns longos minutos só foi capaz de respirar.

Através de um lapso de memória, viu a colher incandescente e toda a dor veio de uma vez, consumindo o restante das suas forças.

Passou o olho restante pelo lugar, desinteressado, e notou a linguiça que havia roubado próximo da sua perna. A pegou e viu um bilhete grudado, todo manchado de sangue, e foi como ver um fragmento de um pesadelo cruel.

Se sentiu menos que um verme, e, apesar dos seus esforços para permanecer calmo, começou a ficar nervoso. Os sentimentos foram regados com ódio e rancor.

De repente lançou a linguiça longe e ela caiu num córrego de esgoto, também se livrou do bilhete, esse foi cair não muito longe.

Se eu não comer vou morrer.

Para que viver? Prolongar mais minha dor.

Morrer? Já estou morto há muito tempo.

Vai mesmo desistir?

Desisti do que?

O que eu tenho? O que eu fui?

Quando continuei algo?

Eu sou um desperdício de vida!

Um miserável.

Morrer é um descanso.

É uma nuvem que posso alcançar.

Guilherme não queria fazer nada, só deitar e morrer. Sua mente era um completo e desesperador vazio.

A atmosfera do lugar se tornou pesada e sombria. Tudo lhe pareceu sem vida, como uma péssima pintura gótica. Se seguiu um silêncio tão profundo que se podia ouvir o bater de asas de uma mosca.

— É horrível ter que dizer assim: mas eu cometi um erro — disse o deus Skog descendo do céu, e pairando devagar com seus pés em forma de casco de bode, na frente do rapaz.

Por um instante Guilherme gelou, incapaz de se mexer. Então, seu corpo foi atacado por uma súbita elevação de energia e se jogou de joelhos, prostrado aos pés do deus.

— Eu sabia, sabia que não iria esquecer de mim, o Grandioso, Senhor das florestas. — Desesperado, o rapaz usou todo o repertório de bajulação e começou a beijar os terríveis cascos. — A sua bondade é infinita. Veio vingar minha dor. Esse não podia ser o meu fim, o fim de um grande herói. Vai cuidar de mim, me proteger, me transformar no rei que é o meu destino?

Skog forçou-se a acompanhar os gestos deprimentes daquele mortal e em segundos contorceu os músculos da face por nojo.

— Não aprendeu nada, decepção — lamentou Skog.

Hã?

Vegetação?

Essa é a magia dele?

É… faz sentido já que é o deus das florestas.

Eu também posso vê-la.

Tou vendo como vi a magia daquela maluca dos morangos, Menma, Tulipa de Sangue.

Só que o dela era Flora.

Isso indica que a magia de Skog é superior?

Enquanto Guilherme tentava entender o sentido dos quadros de magia, raízes saltaram da terra e agarraram o seu corpo como se fosse feito de papel, o puxaram com força absurda e o arremessaram contra a parede.

Ele bateu com tudo e caiu no chão. O tempo na sua mente parecia ter parado, até ouvir a voz de Skog outra vez:

— Mortal, grande decepção, não volte a se aproximar de mim! Ou, irei desmembrar o que ainda resta do seu corpo e dar a sua alma para os caídos se alimentarem.

— Não, não, não… é um engano, você veio por mim, para me salvar! Você não me disse que eu era o seu campeão? Sou o herói!

— Você é um inútil. Não é o sol a brilhar, é apenas poeira, não é o herói dessa jornada, é a carroça. Não vim por ti, decepção amarga.

— Não, não pode ser, eu s-sou o protagonista.

— Mortal insignificante! Você achou que não perceberia a sua estúpida tentativa de me manipular. Achou que não conhecia sua natureza. Oh, quão tolo poderá ser?

— Chega, isso não é necessário, Skog. Pisar mais em mim. Eu sei que sou um fracassado. Sei que fiz tudo errado. Mesmo assim o meu sofrimento foi alto. Já aprendi a lição!

— Está certo disso? Mas é melhor assim, pois vou precisar massacrar sua alma. Você ainda tem uma missão. Será a praga que irá vagar por esse mundo. Consegue reconhecer um velho amigo?

Das sombras da viela, dois faróis se acenderam, intenso como duas estrelas em miniatura. Uma carreta avançou lentamente na direção do rapaz, se espremendo entres as paredes apertadas, se deformando, com sede e furiosa.

— Não, não, deixe longe de mim!

— Ora, Guilherme, o miserável, não vou precisar… os mortais acreditam que todas as carretas, tragédias e acidentes, são apenas coincidências. Não! Mortais são nossos brinquedos, nossos peões num tabuleiro infinito. Essa é a besta do aço.

A carreta começou a se transformar e virou um gigantesco gorila preto e de ferro batido. A fera avançou e agarrou o rapaz.

Guilherme sentiu como se o seu corpo estivesse sendo espremido por uma prensa hidráulica.

O gorila arremessou o rapaz que caiu rolando. O debilitado corpo parecia que iria se despedaçar.

— Você é uma decepção!

— Mentira, é mentira, isso tudo não importa, porque eu salvei aquele garotinho. Fui um herói!

— Não minta para si mesmo, pelo menos não desta vez, miserável. Mortais são bons peões para os jogos dos deuses. Aquela criança…

Uma figura macabra saiu das sombras, uma mulher, mas virou uma velha, depois um homem, em seguida o maldito garoto e sua bola de futebol. A coisa acenou para Guilherme e sorriu. Sua língua era imensa, sua boca deformada.

— A besta da ilusão, junto da besta do aço funcionam bem na realidade da Terra. Uma dupla perfeita para encontrar bons campeões para os jogos. Mas você, miserável, decepção, foi um erro!

— Você é cruel, Skog! Usar das fraquezas das pessoas, dos amores delas e suas dores. Não tem esse direito. Sem aquela distração, eu não iria ligar. Eu nunca estaria aqui. Mas usar aquele coelho como isca, foi perverso demais. Qual era aquela besta?

— Coelho? Tolo até o fim. Não há besta de uma criatura tão deprimente. A loucura é sua companheira. Não tinha nenhum coelho naquela encenação!

Confuso, Guilherme revirou o olho restante. Naquele dia ele viu um coelho na estrada, o bicho até sorriu para ele, tinha certeza, mas nessa altura não sabia mais o que era real ou pesadelo.

Skog flutuou entre as bestas, querendo entender as palavras do rapaz, por fim, aceitou que era apenas os delírios de um moribundo, e continuou:

— Não se preocupe, você não é o único miserável que terá um fim justo. Todos os mortais precisam pagar. A humanidade foi condenada. As afrontas deles já foram longe demais. Grande turbulência há na morada dos céus. Já são mais de mil anos, é melhor começar a descansar, não pensa nisso, Guilherme?

— Sim, não quero mais, estou tão cansado, essa seria minha nova vida. Só foi outra grande tristeza.

— Tenha cuidado, miserável….

“Quando você se sacrificou para salvar a criança pela primeira vez, enxerguei coragem, e fiquei admirado com a sua audácia para tentar ludibriar um deus.

“Devo admitir que fiquei surpreso quando não consegui ver seu passado, sua infância. Acreditei que fosse especial.

“Então preparei o melhor caminho para sua jornada, lhe dei um pequenino sol. Mas você desperdiçou tudo, desperdiçou todas as vidas.”

— Não é verdade, eu sou o herói desse mundo!

Guilherme insistia em não aceitar a realidade, afundando cada vez mais no mar da culpa.

— É uma decepção! A barata mais imunda tem mais valor que você. Lembra o que disse para os seus pais:

“Meus sonhos e desejos são importantes para mim, vocês não entendem os jogos de computadores, a internet, tem tanta gente ficando rica com isso. vocês são velhos e não valem nada, poderiam receber um tesouro, e mesmo assim dariam um jeito de jogar no vaso junto da bosta de vocês!”

Guilherme caiu num buraco ainda mais profundo que a dor que estava sentindo. Ele lembrou daquelas palavras da discussão que teve com os pais após desistir de mais um curso e perder todo o dinheiro depositado para matrícula e material.

Depois das cruéis ofensas, saiu de casa dizendo que os pais não o entendiam, que eles eram o atraso de sua vida, que conquistaria os próprios sonhos e só voltaria para casa no velório deles.

Guilherme não suportou lembrar e gritou: — NÃO!!! NÃO!!!

Agoniado, levou as mãos à cabeça, caiu prostrado no chão imundo, e começou a chorar.

O arrependimento e a dor física se misturaram e juntas, devoraram sua alma. Só havia trevas em sua volta, não conseguia se mover.

No entanto, na escuridão de sua alma, se alimentando de sua dor, algo começou a pulsar.

Skog flutuou para mais próximo do rapaz, olhou diretamente para ele e disse:

— Fracassou mais uma vez, não é o bastante? — Skog encarou Guilherme, mas suas palavras não eram para o rapaz destruído. — Uriel!

Não houve resposta.

— Não é o suficiente ainda? Se pedir perdão aos deuses, poderei libertar a sua alma dessa prisão sufocante. Poderá voar outra vez.

Guilherme permaneceu em silêncio. Tentava entender aquelas palavras enquanto não sabia como reagir, tão forte era o sentimento de impotência. Só queria apagar as horríveis lembranças da sua vida desperdiçada e das toneladas de erros e escolhas burras.

— Hhe, hhe, hhe…

Nunca se tratou de mim.

Nunca é sobre mim.

Minha vida foi a folha seca voando na tempestade.

Sou o peão para o jogo deles.

O que restou?

É melhor desistir de todos meus sonhos.

O que era mesmo?

Amigos, aventura, companheirismo.

Eu não queria mais ser solitário.

(…)

(…)

É melhor desistir.

Morrer!

Não, não, não, nnão não nãõa, não nã anãiaaanmamam…

Ao ser expulso da toca do coelho, viu a expressão contrariada daquele querubim deformado ao não ter as respostas que desejava. Sentiu vigor surgindo dentro dele, era um fôlego que não queria se extinguir.

— Hhe, hhe, hhe…

Esses deuses não são onipotentes!

Skog perdeu a concentração ao sentir um frio sinistro percorrer seu corpo.

Guilherme, enquanto encarava aquele deus, sentiu um furor nascer dentro de si, seu coração bateu forte, foi uma sensação que nunca sentiu antes. Por um momento o pavor e a dor desapareceram.

Era difícil explicar, mas foi o suficiente para fazê-lo rir, e com aquela cicatriz e cavidade escura no rosto, riu como um palhaço das trevas. Então ele sorriu para o Skog e logo depois disse:

— Ele não vai responder, é cabeça dura demais. — Em seguida, voltou a rir abertamente.

A besta de aço avançou com violência contra o rapaz.

— Vai me matar agora, Skog? — Guilherme continuava rindo.

— Só é um miserável.

— Não, sou o maior miserável.

— Há alguma razão pela qual eu deva te deixar viver?

— Será divertido, deus de merda. Não quer mais jogar, mais piadas, Skog?

— Hhe… hhe… hhe…

Skog fez a besta do aço parar o ataque.

Então, com a face intrigada, olhou a expressão do rapaz naquele rosto destruído, a ferida em carne viva e no fundo da cavidade escura do olho, por um momento pensou ter ouvido um grito de terror escapar daquelas trevas sem fim.

— Hhe, hhe, hhe… Sskog…

O deus precisou se concentrar para não perder a compostura, então disse:

— Ser uma pedra é um castigo ideal para você, Uriel. Talvez mais mil anos destruam o seu orgulho. — O deus direcionou a atenção para Guilherme. — Você, mortal, irá virar pó sobre essa terra!

— Eu sei. Também estou tentando não pensar a respeito. Mas essa é a minha nova vida que você me deu, não é, Skog? Esse mundo destruiu os meus sonhos. Os deuses tiraram tudo de mim. É engraçado, Skog, os malditos deuses pensaram em tudo, menos que os céus possam desabar!

Skog cerrou os dentes, o chão da viela tremeu e então, o deus flutuou e disse: — Os jogos começaram. Não me decepcione, miserável. — Em seguida desapareceu.

O gorila de aço encarou o rapaz, mostrou sua agressividade socando o chão. A besta da ilusão sorriu, e foi a expressão mais deformada que ele já tinha visto, entre dois mundos. Em seguida, as duas criaturas desapareceram nas sombras.

Guilherme suspirou e passou as mãos sobre o rosto, mas evitou as feridas.

Ele viu o bilhete do açougueiro no chão, próximo do seu pé, então o pegou, e sentiu como se aquele pedaço de pergaminho ensanguentado fosse uma parte de si. 

No entanto, focou no desafio do deus Skog, já que essa foi a primeira vez que o calor da vida esquentou seu corpo.

O orgulho de poder ser melhor do que era foi tão arrebatador, que foi capaz de quebrar todas as correntes que limitaram a sua vida, como a borboleta que se libertou de um casulo depois da longa metamorfose.

Ao encarar a liberdade pela primeira vez, percebeu que entrou, enfim, na sua aventura, onde cada momento terá a sua surpresa, cada passo lhe conduzirá para a glória.

Sua alma se envolveu de uma vontade de continuar além da imaginação.

O desafio foi lançado.

Mas antes preciso consertar um grande erro!

— Pedra, eu errei com você, meu companheiro — suplicou Guilherme, sem jogadas, sem segundas intenções, foi apenas sincero e aberto. — Quero pedir desculpas, não… quero pedir seu perdão, meu amigo!

Um minuto de silêncio. O coração do rapaz se contraiu.

— Pedra, vamos voltar para a nossa aventura? Vai me perdoar? Você ainda está aí?

— Sim! — disse a pedra.

O coração de Guilherme pulsou, e se encheu de emoção e felicidade.

Esse sentimento fez cada uma das suas feridas latejar, mas foi de forma diferente, dores terríveis, era verdade, mas que faziam parte dele agora.

As dores eram as lembranças de que a alegria neste mundo poderia ser perigosa.

Desgraçado, como é bom ouvir sua voz.

Por um momento me assustou pra valer.

Que bom que voltou!

Ainda bem!

Quero você do meu lado, amigo.

A brincadeira acabou.

É nossa vez de mover as peças.

Quero que veja.

O meu jogo começou!

...



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