Volume 1 – Arco 1
Capítulo 28: O Protagonista Miserável - Parte 1
Guilherme não tinha força para reagir contra os raptores, então aceitou passivo as ordens deles e sentou-se, dormente, no chão úmido do açougue. O cheiro de carne crua era forte demais, tão ferroso quanto ferro enferrujado.
Logo percebeu que o líquido espalhado por toda parte era sangue.
Os homens discutiam entre eles. Quem saberia o que inventaram para castigá-lo. Só que de nada adiantaria as suas ideias para assustá-lo.
O rapaz estava frio e distante, agindo de forma complacente com a situação.
Esse mundo já me machucou tanto.
O que eles podem fazer de pior?
Ele entendeu que não havia mais esperanças. Teria de suportar o que fosse acontecer, embora o coração lhe doesse pela intuição de que nunca mais seria o mesmo, que o preço a se pagar seria alto demais.
Era tão agoniante vê aqueles homens cruéis decidindo o castigo do rapaz, o miserável que apenas estava com fome, quer era quase insuportável pensar que aquele ritual de tortura estava apenas no começo.
— Por mil rabos de porcos, o mundo acabou lá fora? O que aconteceu?
O açougueiro não parecia impressionado nem interessado em saber mais sobre o rapaz capturado, como se aquilo já fosse uma situação normal para ele.
— Não sei direito, senhor — respondeu o mais jovem dos homens, lembrando-se de que no tumulto não havia dado tempo para saber dos detalhes da confusão. Estava ocupado demais vigiando os pedaços de carne e os embutidos da barraca de rua. — Alguém mandou pelos ares a feira de escravos. Por culpa desse rato, é tudo que sei.
Além do açougueiro, com suas características semelhantes ao assustador Leatherface, os outros dois homens eram normais. Um velho, por volta dos quarenta anos, cabelo escuro e olhos fundos. O outro, era mais jovem, uma espécie de aprendiz, dezoito anos, cabelo claro e olhos frenéticos.
— Sim… ouvi que alguns dos senhores de escravos morreram e toda mercadoria fugiu — disse o homem mais velho, com voz fria e desinteressada.
— As elfas?
— Essas desapareceram como gelo numa chapa quente.
— Huuu… queria comprar umas daquelas empregadas. Limpar essa pocilga, está precisando. Nem dava, eram caras demais para os recursos de um comerciante honesto.
— Senhor, se não fosse o atentado, poderia ter sobrado alguma elfa com um bom preço — comentou o rapaz loiro. — É tudo culpa dos fanáticos que acreditam que a escravidão é errado. Diga senhor, o que há de errado no mais forte fazer bom uso do mais fraco?
— Não sonhe demais, meu rapaz. Esse país está entregue às moscas. Homens honestos não podem tocar seus negócios em segurança — o açougueiro falou, obrigando-se a nada demonstrar também. A vida no império havia se tornado difícil, faltando comida, e sobrando bocas famintas.
Ele apertou os olhos e indagou de repente, num tom mais leve:
— O que esse jovem fez?
— Ele é um rato, senhor — o aprendiz respondeu, num entusiasmo comovente. — Ele se aproveitou da confusão para roubar uma das linguiças. Mas, aos meus olhos, os ratos não escapam.
— Essa é a verdade, muito bem! — O açougueiro encarou Guilherme. — Outro maldito rato que veio comer minha comida sem pagar. Você é insano por tentar roubar de mim.
— Não foi isso que aconteceu, é… só estava com fome. Pode me entregar para a guarda dos Pontas Vermelhas, eu não me importo. — A voz vacilante do rapaz não representava nada naquele lugar macabro.
— Os pontas vermelhas, aqueles sacos murchos? Não! Eles já estão com as próprias bolas cheias. Os calabouços estão entupidos de vidas mansas. Os impostos são altos demais. Não quero desperdiçar mais comida.
Os dois homens riram. A essa altura a situação estava estranha, pois, aqueles dois estavam ansiosos, o açougueiro de pé na frente do rapaz, e tinha alguma coisa se esgueirando nas sombras, perto de uma pilha de lenha.
Guilherme reconheceu aquela atmosfera perversa, era ainda mais tensa que a da guilda da caveira. Alguma coisa devia estar errado para seu instinto disparar dessa forma.
— Aqui temos uma forma diferente de lidar com os ratos — continuou o açougueiro. — São tempos difíceis. Eu acredito que uma boa lição é o suficiente. Você pegou o que queria, agora só falta pagar.
— Huuuum — Um ganido fino e doloroso veio da pilha de lenha.
Guilherme olhou e viu escondido entre as toras de madeiras um homem-cão. O demi-humano acorrentado e tremendo, observava tudo assustado, enquanto esfregava o cotoco de um dos braços.
— Miserável — gritou o açougueiro. — Volte para o trabalho. Quero estas toras descascadas!
A mente de Guilherme pôs-se a funcionar numa velocidade vertiginosa, buscando alguma possibilidade, tentando descobrir se seria melhor implorar por perdão ou inventar uma história.
Só que não existia alternativa que lhe daria chance de escapar, ou, muito menos ganhar tempo.
Para que ganhar tempo?
Ninguém virá me salvar.
Fui avisado, não uma e nem duas, mas várias vezes.
Ignorei todas elas.
Esse é meu castigo. O meu fim. Não dá mais para mim.
Naquele dia, no cafezal, se tivesse feito diferente, eu teria me tornado uma pessoa melhor?
URGH… não importa!
— Ei… Leatherface, não se trata de comida, nunca foi, os nossos pecados nunca nos perdoam, nunca nos esquecem. Faça o que quiser comigo, e pode apostar que mereço isso mais que qualquer um.
Guilherme encolheu-se, dando um sorriso de quem pedia desculpas. O açougueiro e os outros dois homens o encararam, enquanto o rapaz começava a soluçar e chorar.
— O que este rato está resmungando? É louco? O que há de errado com ele? — perguntou o aprendiz, encarando o homem mais velho. — Parece uma donzela assustada.
Houve um momento de silêncio, enquanto os dois sujeitos tentavam entender a situação.
— Os ratos costumam mostrar as presas antes de serem esmagados, outros, apenas choram — disse o açougueiro, enquanto colocava uma colher de ferro sobre brasa quente de um fogareiro. — Coloquem ele no tronco.
Os dois homens arrastaram o rapaz e colocaram um de seus braços sobre a tora de madeira ensanguentada, do lado do cutelo cravado. O metal frio era brilhante.
Vão tirar um braço de mim… levem, levem!
Só um braço é tão pouco para pagar por meus erros.
Podem levar!
Os soluços diminuíram e Guilherme aceitou seu castigo de bom grado, e se acomodou mais uma vez na miséria de espírito.
— E agora? Vai usar o cutelo, cortar acima ou abaixo do cotovelo? — perguntou o homem mais velho.
— Não! Esse ratinho é especial. — O açougueiro retirou o cutelo e o colocou sobre a bancada. — Coloquem a cabeça dele sobre o tronco, e segurem firme, entenderam, firme?
— Sim! O que vai fazer?
O homem velho pegou Guilherme pelo cabelo e o suspendeu, colocando a cabeça dele sobre aquele lugar de tortura, enquanto segurava os dois braços por trás da espessa tora de madeira e travou segurando pelo couro cabeludo.
O aprendiz, empolgado demais, agarrou pelo pescoço enquanto travava a cintura e as pernas do pobre rapaz.
Com o coração aos pulos, Guilherme percebeu que não podia mexer um centímetro do corpo. Aqueles sujeitos foram capazes de chegar naquele extremo, e só podia mexer os olhos e ver o teto, um pouco das laterais e a cara dos dois homens, que o olhavam de volta com expressões de cobra.
Então o açougueiro entrou no seu campo de visão, e mesmo incapacitado podia reconhecer o brilho maligno nos olhos que o fitavam.
— Vejam que belo corte. — O açougueiro mexeu na ferida infeccionada no rosto do rapaz. — Um corte reto, profundo e firme. Uma pena que gangrenou. Isso acontece porque não cauterizaram local depois do corte. Juro que o teria feito melhor.
O açougueiro mostrou a colher incandescente, tão vermelha e quente como a língua do demônio. Aproximou devagar o metal quente da pele.
Guilherme sentiu o calor, perdeu toda a calma, toda a passividade de antes desapareceu, e entrou em pânico.
— Não. A colher tá muito quente. Não, não, o que vai fazer?
Os dois homens riram ainda mais, dessa vez não pouparam as gargalhadas.
— Não entendo, não estava pronto para o castigo? — comentou o jovem loiro entre as risadas.
— Vou tentar salvar a beleza na arte desse corte — o açougueiro explicou.
Ele então, bem devagar, enfiou a colher incandescente dentro da ferida e a contornou espremendo cada canto, queimando cada parte apodrecida. O cheiro era nauseante. O chiado da carne fritando se misturou com os gritos de Guilherme:
— HAAAA, NÃO, PARA, PARA… HAA… PELO AMOR DO QUE HÁ DE SAGRADO, SKOG, SKOG, EU IMPLORO, ME SALVE… PARA… HAAAAA!
Ele virou os olhos para desmaiar.
O aprendiz deu-lhe um violento soco na altura do estômago. A dor do soco, junto da dor da costela quebrada, trouxeram-no de volta. Quis vomitar, mas tudo que saiu foi uma saliva grossa e fedida. Então respirou fundo porque estava outra vez consciente nesse pesadelo.
— Não pode desmaiar, ainda não acabou — disse o loiro, empolgado.
— Antes de tudo, vamos ver como ficou o acabamento. — O açougueiro retirou a colher do inferno da ferida, e a colocou de volta na brasa. — Hum... não ficou perfeito, mas está muito melhor.
— Para, para, por favor, para… não aguento mais, só peguei um pedaço de carne para não morrer de fome.
— Depois que comem, os ratos sempre pensam que foi pouco. Ladrões não respeitam o trabalho alheio. — O homem mais velho não tinha um sinal de arrependimento.
— Andem logo! Segurem esse rato miserável direito! — o açougueiro ordenou. — Chega de conversa, vamos acabar com o tratamento.
— Ah… não, não, esse não é meu mundo, não é o isekai que sonhei, quero voltar para casa.
— O que ele está falando, senhor? — perguntou o jovem loiro, travando-o mais na tora. — Só diz sandices.
— Quem se importa com as besteiras de um miserável? — O homem mais velho colocou o rosto do rapaz um pouco de lado. — Fecha a boca, nossa, que fedor… vira essa cara!
— Eu nunca namorei, jogar RPG era tão divertido — Guilherme misturava as frases —, queria amigos, minha aventura nunca aconteceu, coelho, coelho, desculpa!
— Olha, olha… — o loiro começou a rir —, o rato tá chorando.
— Por favor, parem…
— Parar? — perguntou o açougueiro, atiçando a colher de metal na brasa ardente. — Não posso parar. Você ainda não pagou pela linguiça e nem pelo tratamento na ferida, no seu caso, o preço será dobrado. É ingênuo demais, miserável, se pensou que fosse só isso.
O açougueiro franziu a testa, pegou a colher incandescente, e começou a estendê-la na direção do olho esquerdo de Guilherme, acima da ferida cauterizada.
— Eu costumo cobrar um braço, uma perna, mas no seu caso é especial. Sabe… — ele dizia, enquanto se concentrava na melhor região para enfiar a colher —, não sou apenas um cortador de carne, sou um artista, e um olho arrancado iria combinar com esse corte no rosto.
Guilherme começou a passear os olhos de um lado para outro, até que avistou o homem-cão com ar apavorado.
— Eu te imploro, me ajuda — gritou.
O homem-cão se encolheu atrás da pilha de toras e tampou os ouvidos, usando a mão boa e o cotoco do outro braço. Ele gemia e sacudia a cabeça.
Guilherme lembrou do dia que aquele mesmo infeliz olhou-o suplicante, no momento que tinha a sua mão decepada. Sentiu um vazio tão grande que parecia não ter fim.
Hummm… é isso.
Então é assim, o verdadeiro sentimento de ser ignorado, de ter dificuldade, de não ser nada.
Desespero e solidão.
Deus SKOG, porque me abandonou?
Porque tá deixando isso acontecer?
Não sou seu herói?
Eu joguei minha vida fora quando tudo que precisava era olhar para frente.
Fui um miserável.
Lembrou da sua vida na Terra.
Eu tinha meus jogos, tinha comida boa e liberdade, tinha minha família, papai, mamãe e meu irmão.
Será que ele já casou?
Tinha a Thaisa, ela era tão linda como nenhuma elfa será em mil anos.
E tive você, meu velho amigo.
Minha vida era boa…
E eu não vi!
— Vou começar! — O açougueiro posicionou a colher incandescente acima do olho. — Você aí… — disse para o homem mais velho —, abra bem a pálpebra dele. Não deixe se mexer, quero tirar o olho inteiro.
O sujeito, mais que depressa, usou as pernas para travar os braços do rapaz contra o tronco, para ficar com as mãos livres e assim poder escancarar as pálpebras.
Desesperado, uma após a outra, Guilherme usou suas habilidades, só que foi inútil, ele não tinha a capacidade para usar de forma efetiva.
O açougueiro aproximou a colher do olho arregalado e vibrante.
— NÃO, NÃO, NÃO… Dick, Dick… SOCORRO… GUILVE, CRISTÃ… ALGUÉM, POR FAVOR, CÃO MOLESTADOR… SOCORRO… PEDRA, PEDRA… NÃO DEIXE ELES ARRANCAREM O MEU OLHO, PEDRA!
Guilherme engoliu os gritos e focou no metal quente que se aproximava lento da sua córnea.
O açougueiro não tinha pressa, oh… ele não tinha pressa nenhuma, e nem tremia a mão, bem devagar começou penetrando a córnea fazendo um movimento circular começando da íris superior.
A íris rompeu instantaneamente, e o líquido que envolvia o globo ocular, junto com sangue, começaram a borbulhar.
Guilherme sentiu o líquido que envolvia a pupila ferver. E da forma que a colher se movia, parecia que iria extrair um pedaço do seu cérebro junto. Desejou que alguém cortasse sua garganta para acabar com aquela dor insuportável.
O açougueiro contornou todo o globo ocular, rompendo a retina e todos os ligamentos, para que não restasse nenhum vestígio de membrana. Por fim, puxou de uma vez, trazendo todo o olho, redondo e cozido, e deixando para trás apenas uma cavidade vazia e escura.
— Que lindo. — O açougueiro admirou o olho sobre a colher. — Com essa pupila dilatada, deveria ser um belo olhar.
Guilherme respirou fundo, não suportou mais a dor e caiu para a escuridão dos sentidos.
...