Last Downfall Brasileira

Autor(a): VALHALLA


Volume 1 – Arco 1

Capítulo 26: O Sofrimento de Ser Um Protagonista.

Encostado na estátua de mármore do herói nacional do império, o Grande Urso, Guilherme sentia-se o próprio Rudeus Greyrat no papel de cínico arrependido. Tudo à sua volta lhe transmitia a sensação de um soco na cara.

A praça central tinha o encanto das narrações de RPG ou a perfeição fantasiosa das novels de heróis, nada tendo a ver com a mágoa que tinha no coração. Mas lá estava, desempenhando seu papel num enredo distorcido e ruim, transformado num mendigo na sua odisséia pessoal, de modo que ninguém pudesse dizer que ele não pertencia àquele mundo.

Uma piada de mau gosto: o fã de ISEKAIS que irá sofrer num maravilhoso mundo novo.

Maldição!

Dick continuava a observar, vendo-o contorcer os pensamentos num labirinto de desespero. Uma sutil mudança ocorreu no rosto do homem, embora continuasse surpreso com aquele estado deprimente, no entanto, havia um perigoso fato sobre a atitude irresponsável desse rapaz que ele não podia ignorar.

— Toda essa sujeira, esses trapos, dá para ver que sua jornada não foi fácil. Nossa, a sua bolsa de aventureiro, está destruída. O que aconteceu? — ele tinha um olhar incrédulo. — Entretanto, nada justifica roubar. Aquela maçã ia custar muito mais do que podia pagar.

Guilherme lembrou da maçã em sua mão, e com dor, lembrou do sentimento que consumiu seu orgulho.

Eu tava com tanta fome!

— Esse mundo me odeia!

Não aguentou segurar, e foi como mergulhar num lago sombrio. Então contou sua história, tragédia após tragédia. Falou sobre as bestas lendárias, sobre o deformado querubim com pernas de bode e sobre LAST DOWNFALL.

Aumentou um pouco a seu favor, mas relatou com detalhes o caso com a matilha de lobos cinzentos e o rato cauda-de-navalha, falou do carroceiro que transportava ossos, Cristóvão, e também contou sobre a Cigana e o punhal afiado, e não se esqueceu da Menma, Tulipa de Sangue, a maluca dos morangos.

Entre tudo que contou, só omitiu que vinha de outro mundo e a fracassada vida passada. A omissão não foi por causa de alguma estratégia… ah não.

A razão de esconder foi simples: vergonha.

Mesmo depois da viagem pelo inferno, não estava pronto para enfrentar a verdade.

Ele é classe G, o ponto mais baixo do rank das guildas.

Ainda assim…

Esse cara bonitão nunca entenderia os motivos dos fracassados e covardes.

Não aguento mais ser julgado por pessoas que não conhecem a dor de verdade.

Saindo da toca do coelho, Guilherme deu uma explicação meia-xícara de que era de um reino distante e não podia voltar para casa; uma espécie de herói exilado.

— Esse mundo maldito é o culpado! — Finalizou o relato de forma amargurada.

— Você encontrou muitas pessoas interessantes, algumas bem perigosas. O que fez para terminar assim?

— Não tenho vergonha de ser inocente, droga. ESSE MUNDO ME ODEIA. É isso, sou a vítima.

— Os estúpidos continuarão a tropeçar nos próprios passos, enquanto os inocentes serão devorados. O mundo não odeia e nem ama ninguém — disse Dick, e depois engoliu o último pedaço de pão. — Hu… enchi a barriga. Estava uma delícia. Só faltou uma gostosa caneca de cerveja escura e uma gracinha ainda mais gostosa para me fazer companhia.

— Velho tarado!

— Ah, não sou velho, já disse que só tenho 30 anos, estou na flor da idade.

— Droga, isso não importa, tá pensando besteira, não ouviu a minha história?

Passando a mão sobre a barbicha no queixo, Dick examinou de cima a baixo o rapaz, então disse:

— Hum… perdeu a eloquência? Não lembro do seu palavreado de camponês, ou apenas escondeu quem é de verdade? — ele deu de ombros e sorriu. — Bem, é melhor assim, e não ligo para isso, porque todos escondem alguma coisa.

— Eu não escondo nada. Não estou falando disso. Tira a porra da cerveja e garotas da cabeça, é só isso que quero. Ouviu tudo que contei?

— Eu ouvi cada palavra.

— E não vai fazer nada?

— O que você está fazendo aqui?

— Hã? O que? Eu sou o herói escolhido, já disse, é sudo?

— Lá no seu reino distante, se um mendigo quisesse lhe vender o segredo da vida. — O homem de cabelo azul ajeitou as luvas de couro, e coçou a pele por baixo delas. — O que você iria fazer?

— Pera, que besteira é essa? — Guilherme afirmou sem pensar. — Nunca iria acreditar num miserável!

— Então, é a mesma coisa, como me pede para acreditar e comprar todas as suas palavras. Lembra, lá na Guilda dos Heróis… você pode provar?

— Mas que inferno! Não sou um mendigo, sou o herói, o protagonista escolhido por um deus! Quer provas? Aqui… — ele mostrou a pedra —, eu tenho a besta lendária da sabedoria!

— Faz ela falar!

Guilherme travou, então percebeu, olhando aquela pedra sem valor na sua mão, que sem sua besta, não passava de um miserável.

Ela me abandonou.

Vendo o rapaz travado, Dick disse: — Você não pode ser um herói, porque os heróis não roubam! Pelo meu ponto de vista, só é um miserável!

Eu sou o herói!

Isso, isso, isso.

Ainda estou sob as graças do deus Skog.

Ah é, idiota, cadê ele então? 

Droga!

Não posso deixar esse Papai Smurf me influenciar.

Sou o herói escolhido por um deus.

Pronto!

Guilherme ficou mudo de raiva e espantado pela grande ignorância daquele homem, mas resolveu manter a calma. Afinal, esse sujeito poderia representar segurança nesse inferno, se soubesse manter a compostura. O único problema era encontrar utilidade para uma mente limitada, que estava afundada na lama, e longe de suas mãos.

Com a barriga cheia conseguiu recuperar um pouco do orgulho, tanto que esses últimos dias apenas lhe pareceram um pesadelo horrível, e foi capaz de reacender o velho brilho no olhar.

Esse maldito Papai Smurf quer me fazer de idiota.

Vai cair do cavalo.

vai sim!

Ele será uma das minhas ferramentas para alcançar a minha glória.

Sou o protagonista deste ISEKAI!

Duas crianças pedintes, um menino e uma menina, pararam do lado de Guilherme e Dick.

— Ei, moço, moço — chamou o garoto, puxando um lenço negro que o homem de cabelo azul tinha amarrado no braço.

— Garoto tapado, cuidado! — Dick, cuidadoso, ajeitou o lenço de volta no lugar.

— Minha irmã tá com fome, vocês têm um pouco de comida? Qualquer coisa serve.

— Muito bem, pode pegar. — Ele entregou o pacote para as crianças. — Ainda tem três pães. São gostosos.

Trincando os dentes de irritação, e com os olhos arregalados, Guilherme avançou contra as crianças tentando tomar o pacote das mãos delas, mas elas foram mais rápidas e fugiram antes.

O garoto, animado, rasgou o pacote e pegou os três pães, deu dois para a irmã, e ficou com um.

— Obrigado, velho de cabelo azul — ele agradeceu, enquanto corria para longe com a irmã. — Vamos Luci, vamos…

— Quem é o velho aqui, fedelho ingrato? — Dick gritou furioso.

— Quando você estiver dormindo na viela, vou fazer xixi na sua cabeça. — Luci mostrou a língua para o rapaz.

— Oh, não! — Guilherme estremeceu de raiva, balançando a cabeça de um lado para outro, olhando as crianças irem embora com os preciosos pães. — Maldito, não era para você ter dado os pães para aquela dupla de trombadinha, eu queria comer mais.

— As crianças também estavam com fome.

— Ninguém me ajudou nesse mundo, na verdade, nunca tive ajuda em lugar nenhum. Não vou ajudar ninguém.

— Os pães que você engoliu, fui eu que comprei, e o vendedor horrível de maçã que ficou com todas as minhas reservas de moedas para a semana, o que foi isso?

— Que se foda. Os pães eram meus. Queria comer até o último farelo. Pouco me importa que aqueles pirralhos estejam felizes, com fome ou mortos.

— Não lembro de dizer que todos os pães eram seus…

Num movimento brusco, Dick deu um passo e parou do lado do rapaz, mas não fez nada.

Guilherme sentiu o corpo ser pressionado, parecia que o ar tinha textura e volume, e pesava uma tonelada.

— O que você falou, não são palavras para serem ditas ao lado dessa estátua — Dick olhou para o rosto esculpido no mármore. — Peço desculpas, grande herói; os jovens desconhecem o sabor amargo do sangue.

Toda a situação ficou em suspenso, e Guilherme, sentindo-se pressionado e pequeno, mostrou-se um pouco arrependido, mas, recuperando-se, deu de ombros.

Dick encarando o rapaz, deu um resmungo de repreensão, enquanto endureceu, ainda mais, o olhar.

— Você sentiu a fome e o medo — ele disse sem alterar a voz. — O egoísmo é a fera que devora sua vida. Seus olhos estão fechados para o restante em sua volta, por isso é incapaz de sentir prazer na aventura.

— Desde a primeira vez que pisei nesse mundo, digo… nessa terra, só senti fome e medo. Tenho uma besta lendária que não presta para nada; é a porcaria de uma pedra. E ainda estou preso nessa cidade imunda, tanto que seu fedor está grudado em mim. — Guilherme falou, como se estivesse cuspindo as palavras.

— Se não está gostando da sua jornada, é só mudar a direção, ora, é só tirar o colar, é só deixar essa cidade.

— Droga, não dá, esse troço tá preso em mim. — Guilherme puxou a pedra para todos os lados. — Quer trocar por outro pão. É só tirar essa bosta do meu pescoço. Uma besta lendária em troca de um pão, que tal, um bom negócio, não? Droga… estou preso nisso até morrer!

No rosto de Dick surgiu uma expressão triste.

— Na Guilda dos Heróis, você queria viver uma aventura. Você ao menos tentou sair dessa cidade?

Sair dessa cidade?

MAS…

Mas os lobos? Mas os pedágios? Mas os ladrões? Mas a guilda da caveira? Mas o meu poder mágico negativo? Mas as minhas habilidades inúteis?

— Mas não dá para fugir dessa cidade, ela é a minha maior inimiga, Dick.

Guilherme era bom em arranjar desculpas para seus atos. Pensou mais um pouco, e disse indignado:

— Não estou muito certo a respeito desse inferno. Quem o criou? Por que quer me destruir? Não vejo futuro, e nem vida, para deixar claro como me sinto a respeito da cidade de Carrasco Bonito: é um inferno impossível de escapar!

— Você diz ESSE MUNDO; diz ELA, como se a cidade fosse viva e fosse mostrar os dentes afiados. Não vai! Se não é feliz, já disse, só tem que se levantar e ir embora.

— Você não entende — murmurou o rapaz, observando seu reflexo nos olhos daquele homem. — Eu sou o perseguido.

Dick estava chateado. Seu cabelo azul, cortado baixo, brilhava com  a luz do sol. Pegou na espada encostada na sua cintura.

— Hum… — ele suspirou —, você está enganado! Conhece o significado da palavra aventura?

Guilherme refletiu sobre o significado daquela pergunta sobrecarregada de eufemismo, sabia muito bem que tinha algo por trás. Mas não se esquivou, já que na Terra, conhecia o significado dessa palavra do velho dicionário Aurélio, e também, um dos seus grandes sonhos era viver uma grande aventura.

— Não tem relação nenhuma com os meus problemas. Mas vou esclarecer: é um acontecimento imprevisto e repleto de risco, onde a sorte e destino interfere no resultado.

Guilherme fez um malabarismo mental e concluiu supresso:

— Não, eu fiz uma afirmação errada… a AVENTURA tem tudo a ver com esse inferno que virou minha vida!

Dick bateu no cabo da sua espada, rindo, enquanto o rapaz confuso coçava a própria cabeça.

— Só mesmo você, Guilherme, errou feio. Quem disse que a aventura é isso? Na sua terra natal tudo era o oposto? Suas palavras são as definições de estabilidade e marasmo. Aventura significa: IR EM FRENTE!

— É loucura, as pessoas não podem sempre ir para frente.

— Ora, o que conta é a jornada, não entende? Quando uma pessoa aposta tudo o que tem e segue para o desconhecido, independente das dificuldades ou dos perigos, é quando a magia acontece. A aventura se tornará uma realidade!

Guilherme respirou uma grande quantidade de ar e tentou decifrar aquele tanto de baboseira enigmática do homem com o cabelo azul como lápis de cera. Nele, havia qualquer coisa de mistério, além da empolgação.

Para alguém, que na antiga vida apenas se escondeu, era doloroso demais tal possibilidade.

Aquela falácia significava ainda menos na nova vida, depois de passar fome e perder a esperança, Guilherme queria moedas e comida, era tudo o que importava.

Na Terra eu era um idioata sonhador.

Nesse mundo eu vou sobreviver e vencer!

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