Volume 1 – Arco 1
Capítulo 25: O Protagonista encurralado.
Guilherme sempre foi uma pessoa fraca e dependente, mas na Terra conseguiu esconder essas fraquezas graças a vida pacífica e moderna, só que agora percebeu que ele não tinha forças para cuidar de si mesmo nesse mundo, de modo que sua esperança foi destruída.
Como poderá ser um Guerreiro se nunca ganhou uma briga? Força e coragem nascidos da dor? Talvez. Por certo nunca saberá até onde poderia ter chegado, de maneira aventureira, pois quando teve a oportunidade de ser melhor, escolheu repetir os mesmo erros, se acomodando com facilidades, assim, arruinando a sua segunda vida.
Olhou para o vendedor de maçãs, e o sujeito bufava furioso.
O que ele vai fazer comigo?
Será que vai me perdoar se eu implorar por perdão?
A pedra teria uma ideia para me salvar?
Me salvar…
?
Nada sabia sobre aquele vendedor, ainda assim, sentia que estava correndo um grande perigo.
— Rato — disse o homem, estalando os dentes —, quer comer de graça, miserável?
O sujeito era puro ódio.
— N-não, não sou rato, só tenho fome.
Guilherme deixou a maçã escorregar pelos dedos e fechou os olhos entorpecidos de pavor.
O vendedor avistou que a guarda ponta vermelha estava próxima e ameaçou o rapaz com um porrete enorme, ainda o segurando firme para não fugir.
— Suas maçãs estão com uma cara ótima — disse um homem de cabelo azul, aproximando-se da barraca.
— Pode escolher quantas quiser, bom homem, agora estou ocupado com um rato, preciso acenar para os Pontas Vermelhas.
Guilherme reconheceu a voz do homem que acabou de chegar e levantou a cabeça, girando o pescoço logo depois, com os olhos cheios de lágrimas.
— Dick… — A voz dele saiu da boca fina e fraca.
Encostando na barraca, Dick fez um aceno com a mão, para que Guilherme ficasse calmo. O atrito das suas luvas de couro na pele fizeram um som engraçado. Então direcionou a atenção para o vendedor, olhou-o nos olhos e cumprimentou com um amistoso sorriso.
— O bom homem conhece esse rato? — perguntou o vendedor, engrossando a voz.
Os dois se olharam por alguns segundos, sem saberem o que fazer, até que Dick deu um leve tapa nas costas do rapaz.
— Ora, claro, é meu tolo irmão. Sabe como é a Valhalla… ele, ainda criança, uma aranha bolha-amarela picou sua perna, o coitadinho ardeu com febre por dias, desse jeito, olha só: a mente derreteu. Agora vive rolando pelo chão, se machucando e tocando em tudo que vê.
O vendedor encarou o rapaz.
— É verdade isso? Cadê a marca da ferroada?
Guilherme cerrou os olhos e tentou resistir às ameaças daquele homem intimidador. As gotas de suor, que escorriam pela testa, foram parar em cima dos olhos e lhe turvaram a sua visão. Ele empacou de vez.
Droga, o que vou falar?
O que, o que?
Dick, você que inventou isso, faz alguma coisa.
Não, ele me passou a bola, tenho que matar no peito e fazer o gol.
Diz alguma coisa, seu inútil!
— Éééééééééé… — Foi tudo que conseguiu expressar.
— Foi uma tragédia. O cérebro do pobrezinho virou patê. Ele nem consegue falar direito — confirmou Dick com sarcasmo.
O vendedor, intransigente, fitou-os e apertou mais forte o pulso do rapaz.
Dick enfiou a mão na algibeira que tinha amarrada no seu cinto e tirou algumas moedas.
— Essas duas moedas de cobre são pela maçã. — Ele entregou duas moedas para o vendedor, depois entregou mais duas, sobrando apenas uma em sua mão. — Essas outras duas são pelo inconveniente que meu irmãozinho causou.
O vendedor dissimulou a ganância tossindo, cerrou os olhos e fitou a moeda que sobrou na mão de Dick.
— Ah, claro, quase me esqueço. Muito bem… e essa moeda é pela sua boa vontade e compreensão.
Dick estendeu-lhe a última, mas a segurou entres as pontas dos dedos. A cor do cobre se destacou entre a cor bege da luva de couro.
O vendedor não conseguiu puxar aquela moeda de forma alguma, mesmo usando toda a força do seu braço musculoso, parecia que ela estava presa entre uma prensa hidráulica.
— Mas… — falou Dick, num tom grave, e lançou um olhar ameaçador — não haverá mais uma única moeda, entendeu?
O vendedor não reagiu à provocação, limitando-se a concordar acenando a cabeça.
Com um suspiro relaxado, Dick soltou a moeda na mão do sujeito ganancioso. O vendedor soltou Guilherme e disse:
— Pegue seu rato e desapareça!
Eu sou o único rato aqui, canalha?
— Claro, agora mesmo — concordou Dick, sua voz havia voltado a ser amistosa. — Vamos irmãozinho, digo, meu ratinho. Com sua licença, bom comerciante.
Ele puxou o rapaz pelo braço descendo a rua correndo o mais rápido possível.
— A maçã — lembrou Guilherme, vendo que a fruta havia ficado para trás. — Você pagou por ela.
— Não vale a pena.
Dick acelerou ainda mais os passos, desviando das inúmeras pessoas naquela feira.
— Aquela maçã terá um gosto horrível no fundo do calabouço dos Pontas Vermelhas — finalizou o atrapalhado homem de cabelo azul.
Ainda arrastado pelo braço, Guilherme procurou dentro da camisa por sua pedra atrás das sábias palavras para lidar com aquela situação, mas ao lembrar que ela havia parado de falar com ele, desistiu.
Dias atrás tinha destratado o companheiro, onde jogou sobre as costas da besta todo o peso emocional dos inúmeros fracassos, tentando se sentir melhor.
Não há solidão mais triste do que a da pessoa ignorante.
Com movimentos nervosos, que era tudo que podia fazer naquele momento, travou o corpo como uma âncora.
Dick percebeu que não tinha mais motivos para a afobação, pois, já estavam bem longe daquele bruxo e suas maçãs envenenadas, e parou também.
O rapaz mordiscou os lábios, ao ver que eles estavam na frente de uma choupana que vendia pães recheados com carne de porco. Salivou agoniado, olhando para uma fornada de pães quentes esfriando sobre o balcão de vendas.
— Tá com fome, né? — Dick perguntou para o rapaz, olhando-o. — Meus recursos são poucos, já gastei todo o bronze que a muquirana me dá para passar o mês. Aquela mulher mesquinha, malvada, bem… se o vendedor não ficou com as minhas últimas moedas, irei comprar alguns pães.
Ele entrou na choupana. Guilherme, como puxado por um ímã, foi atrás dele.
— Você é idiota? É claro que é! O que está fazendo?
— Vou entrar também.
— Não aprendeu nada com aquelas maçãs. Com esse fedor vai azedar todo o estoque do mês da choupana. Espere na praça no fim da rua. Vou comprar e te encontro lá. Certo?
— Tudo bem.
Querendo retardar a chegada na praça, Guilherme cruzou a rua em curtos passos, pensando que se a fome não o matasse, sua besta o faria, já que decidiu acreditar nas palavras do Dick. A pedra tinha o avisado para não confiar naquele homem.
Você não está mais comigo, pedra.
Por que estou pensando nisso?
Estou tão cansado, tão faminto.
O Dick salvou meu pescoço.
Mas…
Ô doidera, para com isso, idiota.
Qual motivo ele teria para te enganar agora? Uma pegadinha?
Hum... era tudo o que precisava, aparecer um apresentador das bochechas coradas, gritando, pera, pera, pera… só depois dos comerciais.
Rs..r..s.
— Ai, ai… ai! — Quis rir, mas ele não conseguiu.
Respirou em série de lufadas.
O ar quente golpeou as entranhas, áspero, fazendo o estômago doer, quando era contraído, e com isso os machucados arderam de forma insana, como se fossem navalhas rasgando sua pele.
Chegou na praça e sentou debaixo de uma imponente estátua de mármore. Era a figura de um cavaleiro robusto vestido com uma imponente armadura em forma de urso. Na base da estátua tinha uma placa de bronze.
Sentado abaixo da sombra da estátua, Guilherme estudou por um tempo os contornos e os detalhes, isso ajudou a distrair os pensamentos pessimistas.
Esse cara é o sujeito que Liel e seus amiguinhos admiram.
Tenho certeza.
Que cara amassada, o sujeito é feio que dói.
A pedra ia gostar de ver, esse pedaço de rocha é pior que ele… esquece!
Aqui diz que esse país já foi invadido por hordas de elfos. Hordas de elfos?
O que é isso?
Fala sério…
Deve ser por isso que essa gente odeia os orelhudos.
Mas essa gente não é o melhor exemplo de bons samaritanos.
Droga!
Horda de elfos? Não tá certo. Que loucura é essa?
Não estou entendendo nada.
Será que vim parar nos disparates de uma maluca?
Droga!
Algum tempo depois, enquanto ainda estava na toca do coelho, o rapaz ouviu passos leves se aproximarem dele. Olhou de sobressalto e avistou Dick com um embrulho entre os braços e comendo um pão.
Era difícil segurar a ansiedade, mas a imagem dos pães dançando em sua mente deu-lhe forças e, contorcendo os dedos e mordendo a língua, conseguiu aguentar até que Dick lhe entregasse um dos pães de dentro do embrulho.
Ao pegar o macio e quente pão, uma alegria invadiu seu coração, e de início não entendeu, mas logo percebeu a simplicidade da vida, como algo tão simples era capaz de ser tão maravilhoso.
Na Terra, na antiga vida, nunca passou por dificuldades verdadeiras e entendeu que todos os seus dilemas só foram as birras de um fracassado.
Não dava para dizer se isso o fazia uma pessoa melhor ou não, no entanto, ele se sentia o maior idiota de todos.
Eu joguei a minha vida no lixo!
Então, enfiou o pão na boca, mordeu, mastigou e engoliu. Engoliu rápido. Pegou mais um e depois outro. Nessa hora não se preocupou com o cheiro e nem gosto. Quando a massa deformada chegou no estômago e encontrou um grande vazio, de imediato veio uma vontade de vomitar, mas engoliu ela também. Se sentiu mais disposto e vigorado.
— Que guerra foi essa? — Guilherme apontou a estátua.
— Não foi nada, apenas a Rainha Vermelha que decidiu invadir esse país para castrar todos os homens, aquela velha é horripilante. — Por um momento pareceu uma piada, mas Dick ficou sério, e continuou: — Foi há doze anos.
Guilherme não soube o que falar. Fez uma conta básica, então ficou claro que estava no ano 550, desse tal ciclo lunar. Juntou esse cálculo com o que sabia: as lendas e os heróis sem memórias.
Ainda posso vencer esse jogo.
Se conquistar Last Downfall vou poder consertar tudo, e ter a vida de um rei que sempre sonhei.
Só… nada faz sentido!
Lembrou que a pedra falou que esteve fora desse mundo por mil anos e a última vez que viu o sol foi há quinhentos anos, falou também de um herói que a rejeitou.
Estas pontas soltas levam para algum lugar… mas não consigo pensar em nada.
O que não tou vendo?
Minha mente tá tão confusa, não funciona direito.
A falta de comida está me matando aos poucos.
A pedra avisou…
Droga!
Guilherme olhou para Dick, um pouco de lado, querendo esconder a ferida no rosto.
Será que posso confiar nesse homem?
Se for outro psicopata maluco?
— Você conheceu esse cara da estátua? — Ele decidiu iniciar a conversa, e depois continuou a devorar os pães.
— Vi ele algumas vezes. Mas não é bom falar da assombração, porque sempre aparece para sorrir — desconversou, passou a mão com a luva de couro pelo cabelo azul. — Guilherme!
Parado ao lado do rapaz, intrigado, comendo também um pão, observou o esfomeado devorar tudo como se fosse a última refeição de um condenado. Analisou bem o estado deplorável dele.
— O que aconteceu com você? — então, ele perguntou. — Onde está aquele rapaz esperto que me surpreendeu? Faz tão pouco tempo desde a nossa conversa. Todos esses machucados, e esse talho no seu rosto, é horrível, está infeccionado e se não cuidar, vai perder o olho esquerdo.
Tudo isso é culpa sua, maldito.
Você me empurrou para aquela maldita guilda da caveira.
Não, não… não, o meu poder mágico são as trevas, não tinha outra solução.
Tudo foi escolha minha.
fui eu…
Guilherme engasgou, quis chorar, mas se conteve, e quando terminou de engolir o último pedaço de pão, desabou sobre si todo o peso da sua dor. Tudo o que aconteceu na Terra e nesse novo mundo tornaram-se as manchas de sua alma.
...