Last Downfall Brasileira

Autor(a): VALHALLA


Volume 1 – Arco 1

Capítulo 24: O Protagonista Ladrão de Maçã

— Guilherme! — Sua mãe entrou no quarto com uma pilha de roupas lavadas e secas. Viu o filho agindo como um tomate, parado na frente do computador. — Seu tio falou que vai pagar o curso técnico de soldador para você, só precisa ir. Ele vai dar todo o material.

— Mah não, já disse que tenho os meus planos, mãe — disse Guilherme concentrado na tela brilhante. Ele estava no meio de uma raid importante do WOW.

— Jogos de computador não garantem futuro, meu filho.

— Diz isso para a Blizzard Entertainment, ou a Microsoft.

— Hã… não sei, mas aposto que esses meninos não ficam o dia inteiro trancados no quarto com a cara numa tela, brincando de joguinho. Seu olhos, meu filho, vai fazer mal.

— Bem… ah, esquece, tenho que terminar essa raid!

— Você nem pode parar para falar comigo. Seu irmão, ele nunca foi assim. Ele tá dando o rumo para a vida dele.

— Qui bom para aquele queixudo, metido. Agora deixa eu terminar, qsaco, a raid é difícil, vamos conquistar uma dungeon. A recompensa é um Loot raro: a Espada Sagrada do Dragão do submundo. Eu preciso muito disso! Ah, você nem faz ideia que isso, só perco tempo.

— Já é março, sabia? Os convites para o casamento da Thaisa chegaram. Vou colocar o seu junto das suas meias, não esquece.

Com um tremor involuntário, Guilherme apertou uma tecla errada.

— A mãe dela é uma boa amiga. Nossa, essa menina vai se casar. Quando ela não saia daqui de casa, pensei que vocês fossem namorar. — A mãe dobrava a roupa sobre a cama. — Lembra da cartinha que você escreveu para ela…

Guilherme teclou errado outra vez.

— Qsacooo! Para, mãe, não quero saber disso. Qui falação na minha cabeça, deixa eu jogar em paz. É importante para mim!

— A vida está passando, meu filho — ela disse, jogou o restante das roupas sobre a cama. — Pelo menos arrume essa bagunça.

Depois, sua mãe saiu do quarto.

Guilherme olhou para a pilha de camisas e calças. Por um momento sentiu um aperto no coração. Só que no jogo ele sofreu um ataque, e com os brados dos companheiros da raid, voltou para o jogo.

Qsaco! Qsaco! Qsaco! Qsaco!

(...)

Guilherme estava desacordado, e não conseguia escapar daquele sonho que não parecia ter fim, repetindo e repetindo.

— Luci! Preste atenção em mim! Os Pontas Vermelhas estão na rua de trás. Esse aí pode voltar a si de uma hora para outra, e bater na gente. Não faz barulho. Eu vou procurar nos bolsos e você olha na bolsa, certo?

Um menino muito jovem encarou uma menina ainda mais jovem que ele, os dois usavam trapos e estavam imundos.

— Mas irmão, não quero, você tem certeza que ele não tá morto, não quero mexer em gente morta.

— Quer comer, não quer? O irmão vai cuidar de você, não precisa ter medo. Esse aí só tem cheiro de morto, mas está vivo, está respirando.

A menina achou a pedra e puxou-a, mas não conseguiu tirar do pescoço, então disse chorosa: — Não quer sair!

— Luci, isso não, é só uma pedra, não vale nada, procura outra coisa.

Os toques e os ruídos abriram caminho no cérebro embaralhado do rapaz, então abriu os olhos.

— Aharrrrrrrrrr… — Por causa da boca seca e os vários machucados, emitiu um gemido assustador.

— É um morto que come carne — Luci disse espantada.

Com o susto, as duas crianças correram para longe, e desapareceram ao longo da viela.

Guilherme, desorientado e com a visão embaçada, olhou todo o lugar e não viu ninguém. Não ficou surpreso, as vielas escuras eram tão perigosas quanto o bosque dos sussurros. Achou que as vozes que escutou fossem coisa da sua cabeça.

Ele gemeu ao tentar se levantar, não tinha forças e os machucados pareciam ferros em brasa na sua pele.

Apoiou os braços com toda a força que tinha e, ajoelhando-se no chão, encostou o corpo numa parede, que o sustentou para poder se levantar.

Ótimo!

Agora o que vou fazer?

Que fome, fome, não consigo parar de pensar em comida.

Uma pizza de calabresa e uma garrafa de fanta-uva.

Com bastante queijo… que maravilha.

Besteira… daria um olho por qualquer coisa mastigável.

Uma balbúrdia generalizada e tumultuosa, parecida com as feiras livres da Terra, ecoava distante, além da viela.

Guilherme seguiu o som com ansiedade, e descobriu que não muito longe ficava a boca da viela e a algazarra vinha de lá.

Caminhou com dificuldades, mas dentro de instantes, saiu numa rua onde tinha um agitado comércio de legumes e frutas. Muitos comerciantes, fregueses e escravos.

Onde estou?

Hã?

É a rua das baratas.

Aquele lugar era o principal centro de comércio da cidade de Carrasco Bonito, e sempre estava movimentado. O rapaz já havia vagado por ali várias vezes buscando um trabalho, ou para ver de longe a Guilda dos Heróis.

Ignorando a cara de nojo das pessoas, ele se enfiou entre os fregueses e pedestres, e olhou, ansioso, as várias barracas. Até onde conseguiu enxergar, estendia-se uma avenida pavimentada com blocos de pedras que terminaria numa praça, e depois dela, ficava a Guilda dos Heróis.

Deu uma volta vagarosa e acabou no meio de uma aglomeração de pessoas, todas bem vestidas, alguns pareciam da nobreza. Tonto e sem saber bem o que estava acontecendo, Guilherme passou por alguns dos espectadores e reparou que havia vários postes de madeira manchados com sangue, todos pregados no chão.

O que é isso?

Não lembro dessas coisas.

Toda essa gente.

O que querem?

Seu coração disparou. Foi como encontrar um pesadelo que não se lembrava mais. Então, lembrou do pobre homem-cão que teve a mão decepada na sua frente, logo que chegou nessa cidade.

É verdade.

Foi aqui perto.

Será que aquele furry ainda está vivo?

Quando saiu da toca do coelho, já estava no meio da multidão e não demorou para perceber que demi-humanos, diversos deles, estavam sendo arrastados para os postes e acorrentados. Tinha homem-cão, garota-gato e um bando de crianças, que eram uma mistura de meninos com camundongos.

— Os homens-feras parecem saudáveis — comentou um barrigudo.

Sendo acorrentados, Também tinha anões e um grupo de elfos. Todos eram açoitados pelos feitores.

É uma maldita feira de escravos!

O que é isso, esse corpo, não para de tremer.

Vou desmaiar?

Vários gritos eufóricos e uma estranha comoção se alardeou no lugar.

Então, em três postes que permaneceram vagos, na frente, os comerciantes de escravos acorrentaram três jovens elfas. As meninas estavam vestidas com uniformes de empregadas, curtos demais, indecentes demais.

As elfas lutavam para escapar das correntes e choravam sem parar. As suas súplicas para voltarem para as suas famílias eram ignoradas. Os outros escravos estavam num misto de ódio e desespero.

A multidão fervilhava de prazer.

Guilherme ficou horrorizado ao ver que os comerciantes estavam com intenções sórdidas. A ferida no rosto começou a arder, era uma sensação que rivalizava com o nojo que estava sentindo daquela gente. Algo queria rasgar a sua carne e escapar.

— Hhe… hhe…

Os ânimos se afloraram. A multidão não aguentava mais esperar.

— Isso, não perca mais tempo. É do conhecimento de todos que depois de adestradas, as elfas serão eficientes cortesãs — gritou um homem, sorrindo e sacudindo uma algibeira cheia de moedas. — Meninas tão novas, é ainda melhor para os negócios. Quero olhar esses corpos.

— Não seja idiota, vai encarecer a mercadoria — outro respondeu. — Não precisa gritar para todos os seus gostos pessoais, porco sorridente. Todos sabem que as elfas só prestam para abrir as pernas.

— Porco? — Lançou um olhar de desprezo. — A muralha de rubi dificulta conseguir mercadoria de qualidade, sabe muito bem disso. Maldita seja a Rainha Vermelha, e toda sua linhagem traidora. Por isso, homens sem recursos não deveriam sair de vossas camas. Eu vou comprar as três elfas!

Os comerciantes, vendo a euforia do público, decidiram inflamar ainda mais os ânimos nutrindo a lascívia de toda aquela gente. Os canalhas se aproximaram das elfas e rasgaram os vestidos, deixando-as nuas.

A multidão foi à loucura, e os lances começaram a disparar.

Essa gente é podre!

Esse mundo é podre!

Guilherme sentiu um ódio descomunal, que o preencheu por inteiro. Ele era uma pessoa que tinha seus pecados, mas até para ele, havia um limite. Orgulhava-se de ter os desejos sexuais bem distintos. Na Terra, nunca gostou das novels apelativas, e sempre recusou o padrão loli abusivo.

Ficou revoltado com aquela cena grotesca. Só que sua agonia era mais profunda. Ainda havia alguma coisa dentro dele se debatendo para escapar, era difícil de definir.

Mesmo antes de assistir aquilo, sentiu uma rejeição quase mística, como se ele mesmo já tivesse sido uma daquelas vítimas, sendo essa inquietação, uma simples reação do corpo contra antigos traumas.

Esse corpo foi de um escravo…

Será uma sensação fantasma.

Droga, que coisa horrível.

Não aguento isso!

Não tenho nada a ver com essa confusão.

Já tenho problemas demais.

Não quero acabar com aquelas correntes envolta do meu pescoço.

Reconhecendo-se inútil, forçou-se a desviar o olhar, a ignorar.

O leilão de escravos transformou-se num turbilhão de soberba, desejos e luxúria. Centenas de homens aglomerados num rodopio frenético e gastando todas as moedas, e Guilherme não queria fazer parte daquilo.

Nauseado, desceu a rua, até que parou de ouvir os gritos ensandecidos da multidão. Só queria esquecer a imagem das jovens elfas com correntes presas a várias partes do corpo, faiscando sobre as desnudas peles brancas.

Então encontrou uma parte, menos tumultuada, onde o comércio principal era de frutas e verduras.

Além das barracas de frutas, havia homens vendendo galinhas e porcos, e a guarda da ponta vermelha sempre alerta, com as feições cruéis sob o fio afiado dos machados.

Guilherme se deparou com uma pequena quitanda de maçãs, e de forma instantânea foi atraído pelo aroma doce daquelas frutas, todas vermelhas e suculentas, como uma reação normal causada pelo estômago vazio.

As maçãs estavam ao alcance da mão do rapaz, tão perto, tão cheirosas.

O dono da barraca viu o imundo mendigo e esfregou o nariz, enojado, mas não fez nada e foi atender uma mulher na outra extremidade do balcão.

Guilherme pensou em roubar só uma daquelas inúmeras frutas. Era tudo familiar e ignorado por ele desde a vida na Terra, mas agora sentia um arrepio percorrer sua pele suja.

Lembrou de todas as pessoas que encontrou na sua jornada decadente. Lembrou da pedra.

Lembrou de todos os avisos sobre a aspereza deste mundo, os quais rejeitou a todos para poder satisfazer o fantasioso desejo de ser um herói, de ser uma pessoa melhor além do resto humano que foi um dia, como se pudesse realizar nessa nova vida todos os sonhos, sendo assim, o seu direito de nascença.

Mas será que os heróis roubam?

Droga, é só uma maçã!

O que a pedra ia falar disso?

Droga, ela não liga mais!

Se eu não comer nada vou morrer.

Mas vai roubar?

Eu posso pagar depois, droga!

Da mesma forma que pagou sua mãe todo o dinheiro desperdiçado?

Droga, droga, droga…

É só uma maçã, preciso comer!

Os músculos moveram-se sozinhos, e o braço esticou agarrando uma grande fruta.

Guilherme pulou para fora da toca do coelho e imaginou o sabor doce daquela deliciosa maçã.

Porém, antes que pudesse levantar o braço, o vendedor agarrou-o pela mão e apertou com força, não se esquecendo de torcer o pulso, fazendo-o soltar o roubo.

Aquele sujeito era forte demais, e o rapaz não conseguia se soltar de forma alguma.

— Rato miserável — disse o vendedor, com os olhos transbordando de ódio. — Vou arrancar sua mão e dar para os cães comerem!

Foi uma sensação aterrorizante. Um pensamento repentino quase o destruiu. Se aquele homem-cão teve a mão decepada porque comeu um pedaço de linguiça, não sobraria muita esperança naquela situação.

Tentou tanto se libertar e não conseguiu porque era fraco, um miserável à espera da morte lenta e dolorosa. 

O que vou fazer?

...



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