Last Downfall Brasileira

Autor(a): VALHALLA


Volume 1 – Arco 1

Capítulo 23.6: O Retorno do Aventureiro Humilhado - Parte 2

A Atendente da Guilda dos Heróis descansou os braços sobre o balcão de madeira com um suspiro de frustração. Com a sua reputação mal vista pelo Conselho das Guildas e os seus aventureiros preocupados apenas se os barris de vinho estavam cheios, e aquela maldita missão encalhada, estava enfrentando uma maré de má sorte.

Ela notou que a poeira havia se acumulado no balcão e decidiu limpar, quando viu o grupo Manoplas da Força.

— Vejam só o que os bons ventos trouxeram — disse enquanto limpava o balcão com um pano bordado e muito bonito. — Já faz alguns dias que não via ninguém do grupo Manoplas da Força. Pensei que tivessem seguido viagem para outra cidade.

Até onde a Atendente sabia, o líder desse grupo era o tipo de pessoa que não suportava a vergonha, e preferia um banho em óleo fervente do que voltar para aquele salão. Pelo menos, não durante o período em que a trapalhada deles ainda estivesse fresca na mente de todos.

Ela estava acostumada a lidar com aventureiros, não homens com honra.

Liel a encarou.

— É uma sugestão? Achei que a guilda da cidade de Carrasco Bonito representasse a glória e coragem. Até porque, nunca passou pela minha cabeça deixar essa cidade. Gosto da sua podridão.

O loiro forçou uma série de risadas sutis.

— Você ainda não tem prática no jogo das guildas, aventureiro, deixou isso evidente na última vez que veio aqui.

Liel franziu o cenho e empertigou-se, ficando grande, quase meio metro a mais do que o normal; ao menos foi a impressão da atendente.

— Para um aventureiro, parece que estou mais disposto que o bando de bêbados que têm nesse salão. Esse lugar é uma guilda ou uma taberna? — O líder do grupo manoplas bateu a mão que segurava o cartaz da missão sem nome no balcão. — Meu grupo não quer comer e nem beber, vamos ficar com essa!

Uma veia pulsou na testa da Atendente, acima do olho direito.

— Liel, vai com calma — pediu Ramsdale.

Liel resmungou alguma coisa e não respondeu ao pedido do companheiro, porque estava afundando até a cintura na poça de lama da vergonha. Talvez acreditasse que poderia mostrar um pouco de valor para a responsável daquele lugar, mas percebeu que não iria adiantar porque aquela garota só era uma estátua de decoração.

Arrumou a espada na cintura, aquele aventureiro era teimoso demais para se deixar ser tão fraco, meu grupo já foi humilhado nesse salão, pensou, não vai resistir a outra derrota.

A Atendente viu qual era a missão na mão do aventureiro, então a veia rebelde da testa desapareceu, e cedeu lugar a um discreto e controlado sorriso.

Ela sabia que aquele rapaz obstinado tinha valor, era o tipo de herói que a honra representava a maneira como um homem lidava com as situações difíceis, não com o que enfrentava ou lugar da disputa. Recuar nunca poderia ser uma opção. Só por essa noção, o grupo Manoplas da Força tinha motivos para se orgulhar do seu líder.

Porém, esse tipo de pessoa é a mais fácil de ser manipulada,  e com a mexida no lugar certo, a provocação discreta, ele seria a resposta de um problema que já estava se arrastando tempo demais.

Liel permaneceu intransigente, encarando a Atendente.

Ramsdale tinha que admitir, pelo menos desta vez, que a forma irresponsável como o amigo lidou com a situação funcionou. No entanto, se for levar em consideração as outras situações caóticas que haviam sido causadas pelo temperamento explosivo dele, essa equação entre honra e prudência não era vantajosa.

Apesar do amigo, momentos antes, afirmar que ele não sabia matemática comum, o cálculo para a situação deles era simples demais: a ousadia nunca irá compensar a irresponsabilidade; o instinto não será equivalente a glória.

Irritado com a forma como seus avisos foram ignorados, o arqueiro se recompôs, porque tinha que entender o tamanho da encrenca que o líder do grupo os enfiou dessa vez, apesar que já tinha um leve suspeita só pela forma ardilosa que a atendente olhou o cartaz.

— Muito bem, vão aceitar a missão? — perguntou a Atendente, voltando aos trejeitos desafiadores do início da conversa.

Liel assentiu com a cabeça dourada.

— Certo! É uma missão nível bronze; valor: 40 moedas de cobre. O contratante é a vila Gurupi. É uma missão de caça e eliminação. A missão só será concluída quando mostrarem para guilda uma prova da morte da fera.

— Espere um momento — solicitou Ramsdale, encostando-se no balcão. — Você não falou qual é o tipo da criatura.

Era difícil identificar o brilho que dançava nos olhos da Atendente, mas Ramsdale permaneceu firme a encarando.

— A guilda não sabe qual é a natureza ou espécie da criatura. A única informação é que surgiu no início do solstício da lua azul, caça pelas redondezas da vila e que já tirou a vida de uma dúzia de moradores inocentes. A missão já está no quadro de avisos há um mês, nenhum grupo aceitou, claro, além de vocês.

A atendente sorriu e adicionou: — É uma bela demonstração de coragem.

— Um mês no quadro de aviso, hum, por que será? — Ramsdale esfregou o dedo indicador sobre o balcão, e disse de forma calma: — A criatura pode ser perigosa, até ser de classificação prata ou ouro.

— Pode ser, mas é isso que vamos descobrir, ora, com o trabalho de vocês. — A atendente falou da forma mais normal do mundo. — Se vocês morrerem, vamos aumentar a recompensa e enviar um grupo nível prata, se eles também morrerem, aumentaremos mais a recompensa e mandaremos um grupo nível ouro.

—Nhec… — os dentes de Ramsdale fizeram um som engraçado quando se chocaram um contra o outro dentro da boca — é uma forma ardilosa de agir. A guilda usa seus aventureiros como cavalos para arar a terra, é isso? Que todos nós tenhamos essa dignidade, porque no mundo só há vilões. 

Liel abriu a boca para falar, mas não sabia o que dizer. Mesmo sendo cabeça dura e bastante teimoso, já havia aceitado como o mundo funcionava. Sacudiu um pouco o corpo, cabeça de couve, esse é o preço da inteligência, é isso? Pensou, a simplicidade da vida se torna insuportável!

— Viva como um herói, ou morra como um vilão! Não sabe onde está, aventureiro? Em nenhum momento disse que seu grupo é obrigado a aceitar a missão, ou qualquer outra. Pode recusá-la. — A Atendente olhou para o líder do grupo e sorriu. — Claro, terão que atravessar todo salão e pregar de volta o cartaz no quadro de avisos. Pois foi de lá que o arrancaram, e não somos bárbaros, os bons modos são bem vistos.

— Muito bem… vamos pegar a missão de matar goblins, então — disse Ramsdale, satisfeito.

Era a sua tentativa de atenuar o tom da conversa, mas o jovem loiro estava sério demais para relaxar também.

— Não! — afirmou Liel.

— Essa missão é arriscada, é um golpe. Vamos aceitar a dos goblins, será melhor para todos. E vamos logo, antes que algum dos abutres resolvam parar de encher vossas barrigas e queiram trabalhar.

— Melhor para quem, Ramsdale? Pode me dizer?

Liel olhou para o salão, e num estalo, percebeu como o quadro de avisos ficava longe, longe demais.

Ele foi jogado contra os olhares dos outros aventureiros como se fosse empurrado por um golpe invisível. A sua agonia retornou tão rápido para o seu coração, que quase arrastou a sua coragem e a sua determinação para a escuridão da vergonha. 

— O que está acontecendo? — perguntou Ramsdale, e mesmo o som alto de sua voz quase foi abafada pelo peso daquele salão resignado.

Ele sabia que o amigo era teimoso como a mula chifre-azul, porém, mesmo ele, não poderia teimar contra os prenúncios dessa missão perigosa.

Liel passou a mão sobre o balcão, os dedos longos e as unhas bem aparadas. — Eu já tomei a minha decisão — disse ele.

As suas vestes, camisa branca e calças marrons estavam grudadas no corpo por causa da transpiração excessiva. O punho de sua espada tinha um brilho diferente sobre o brilho do salão da Guilda dos Heróis.

— Mas não vê que podemos morrer?

— Chega! — Liel cerrou o punho e bateu contra o balcão de madeira. — Eu prefiro morrer, que voltar para a vergonha!

Toda a guilda parou suas atividades por causa do som agudo do balcão de madeira que reverberou por toda parte.

— O que posso fazer? — perguntou Ramsdale no mesmo instante, perturbado pela preocupação que tudo aquilo representava.

— Ora, meu amigo... — respondeu o loiro, concentrado demais na Atendente para se importar com qualquer cara assustada daquele lugar — conto com você para não me deixar morrer.

Ramsdale sentiu um nó na garganta. Se a situação não fosse tão grave, teria dado risadas. Mas sabia que o líder do grupo não iria voltar atrás naquela decisão, então, apenas assentiu com um movimento da sua cabeça.

Liel estendeu o braço e jogou o cartaz da missão sobre o balcão, e disse para finalizar o assunto: 

— O grupo de aventureiros Manopla da Força irá aceitar essa missão!

— Muito bem… quando retornarem com a prova da excursão da missão, irão rasgar esse cartaz. — A Atendente pregou o cartaz num quadro atrás dela, e depois olhou para o Loiro. — Não pense de mim, que tenho algo contra vocês. Eu sou a responsável por essa guilda, e respondo a pessoas muito poderosas. Olhe para esse salão e verá o tamanho da minha vergonha. Vocês são bons aventureiros, espero que não morram!

◈◈◈◈◈◈

Liel e Ramsdale atravessavam o salão da Guilda, o atrito das solas de suas botas contra o piso de pedra criava sons puros. Só que era abafado pelas bufadas e gritaria dos outros aventureiros. 

Quando eles se aproximaram da porta de saída, ouviram o estalo de uma das mesas de madeira e a gargalhada impiedosa de um homem grande e gordo.

— Esses malditos. — Liel cerrou os dentes.

— Eles estão apostando — respondeu Ramsdale. — Espere um momento.

Ramsdale andou rápido, rápido demais na opinião do líder do grupo, e para sua surpresa ele foi até o homem gordo.

— Quanto tá a cotação do peso, negativa ou positiva? — perguntou o rapaz de cabelo verde ao homem sentado, rindo, e jogando dados sobre uma mesa.

O sujeito bufou, e em seguida as avantajadas orelhas moveram, para escutar melhor as palavras daquele rapaz de expressões ousadas.

— 1 para 5 que vocês vão morrer! — Ele sorriu, mostrando os dentes sujos com restos de comida. 

Ramsdale pôs a mão de forma não muito delicada no ombro do gordo. Enfiou a outra mão dentro da camisa e retirou a algibeira com moedas, e depois a jogou sobre a mesa.

— Aposto que vamos voltar vivos, e vitoriosos! Aumenta quantos?

O gordo sorriu ainda mais largo e disse: — Banqueiro, anote no pergaminho essa aposta, 1 para 8, negativo. — Ele disse para um homem do outro lado da mesa, em seguida desapareceu com a algibeira dentro da sua larga camisa. — Eu aceito sua aposta, garoto!

Ramsdale voltou para junto do amigo.

— O que foi isso, você nunca foi de apostar? — Liel perguntou. — Você não tava preocupado com os nossos recursos?

— É, né… — O arqueiro riu.

 — Qual era a cotação?

— Alta, eles acreditam que vamos morrer.

— Só covardes e crianças voltam com suas decisões. Desculpa, não podia negar essa missão.

— Eu sei!

Liel encarou o amigo e depois agarrou a porta da guilda e balançou a cabeça de forma positiva. — E o Clint que não apareceu ainda? — Ele perguntou.

— Talvez ele largou a vida de aventureiro e casou com a senhora da barriguinha de espertinhos.

Ramsdale começou a rir ainda mais. Liel abriu a porta e ambos saíram, e para a surpresa deles, o descabelado estava sentado na escadaria. 

— Clint, onde você estava esse tempo todo? — Liel perguntou, com um tom pesado.

— Estava aqui, faz um tempão que cheguei.

— Por que não entrou? Se a gente estivesse precisando de ajuda?

— Estavam?

— Não!

— Então tudo bem. Com a barriga cheia, é bom descansar, para um bom uso da comida. Não gosto muito de lugares fechados, então resolvi ficar aqui fora e esperar. Algum problema nisso?

— Agora não! Mas na próxima vez, vá nos encontrar, não importa onde for.

— Tá bom!

— Certo — chamou Ramsdale. — Cadê as moedas que sobraram. 

— Ir, desculpe, Ramsdale, mas não sobrou nada.

O rapaz de cabelo verde torceu os dedos da mão, afastando-se para fitar melhor aquele esfomeado.

— Você comeu todo aquele bronze, nossa, a dona da barraca deve ter dado cambalhotas de alegria.

Era difícil identificar as marcas e linhas que surgiram como brotoejas na face daquele arqueiro, mas uma coisa era certa, criou uma expressão de espanto.

— Verdade, a velhota ficou muito feliz. — Clint começou a rir.

O coração dele bateu forte ao ver o rosto surpreso e franco do companheiro.

— Depois de comprar os suprimentos, não vamos mais ter recursos — Ramsdale declarou passando a mão sobre o rosto. — Isso não é brincadeira.

— Chega, o que comeu, foi comido, o que se apostou, foi apostado, depois disso, só sobra bosta ou ganhos da sorte. — Liel encarou o horizonte. — Temos uma missão, e quando retornarmos, não irá mais faltar moedas. 

 O loiro avançou descendo as escadarias da guilda, uma mão sobre o cabo da espada e a outra esfregando as madeixas douradas. Os dois companheiros também desceram as escadarias. Num momento, muito rápido, Liel encarou Ramsdale, e depois voltou com a atenção para os degraus.

— Escute, Clint, aqueles espertinhos estavam mesmo gostosos? — Ramsdale mostrou afetividade.

— Sim! O tempero da velhota era salgadinho. A carne parecia derreter na boca. 

— Nossa, falando agora, também estou com fome. Bem, para você deve ter sido muito bom, imagino? Você disse que nunca tinha comido a carne do lagarto língua-verde. 

— Sim. E posso dizer que é a coisa mais gostosa que já comi na vida. Obrigado, foi por causa de vocês.

— Não agradeça, somos companheiros, tudo é dividido de igual para todos do grupo. É, vendo por esse lado, lembrei que não sei nada de você. Que tipo de companheiro eu sou? Um terrível, é certo!

Clint riu e bateu a mão no ombro do jovem de cabelo verde, num gesto amistoso: — Não se preocupe, amigo, ninguém é perfeito.

— Verdade, verdade. — Ramsdale também riu, mas interrompeu as risadas muito rápido. — Mas vamos resolver isso, ora, se vamos. Quero um relatório completo sobre sua vida, onde nasceu, nome de família, o que gosta e não gosta, e por que estava vagando sozinho naquela estrada.

Ele voltou a rir.

— Tudo? — Clint ficou surpreso, e interrompeu as risadas. Passou a mão pela vasta cabeleira, balançou sua maça como se fosse um pêndulo, e então disse: — É uma história longa!

— Sério? Hum... se não estou enganado, você é da tribo cabelo-duro, não? Seu cabelo é mais curto, cortou? Estou curioso para saber como chegou nesse país e ainda mais, para saber por que disse que era de um vilarejo nas redondezas daquela estrada. — Ramsdale tinha o olhar de um gavião. — A história é longa, não se preocupe, a nossa viagem também será, conte tudo, conte tudo!

Não se pode afirmar se foi bom ou ruim, porque os ventos da aventura são incertos, mas esse foi o começo da primeira missão do grupo de aventureiros Manoplas da Força.

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