Volume 1 – Arco 1
Capítulo 19: O Protagonista e A Cigana - Parte 1
Os olhos de Guilherme lacrimejaram de emoção.
Eu amo esse ISEKAI!
Ele já estava em seu limite, verdade, mas enchia o coração de esperança enquanto seguia a misteriosa garota pela viela escura; mil coisas passavam por sua mente, mil desejos atropelaram os sinistros pressentimentos.
Estava encantado demais para perceber qualquer coisa.
Minha hora chegou.
Minha cama de rosas.
Isso! Isso!
As lembranças da Terra eram os piores pensamentos, já que sentia falta da antiga vida e tudo nesse novo mundo passou a ter o gosto amargo do erro. Porém, sua realidade estava prestes a mudar, porque iria realizar o seu maior sonho.
Um fôlego a mais para a sua cansada realidade.
Era verdade que um ISEKAI só era divertido sendo um ISEKAI.
Esse mundo não tinha nada de ISEKAI; era um mundo novo, fato inegável… mas os setes infernos eram novos mundos para os pecadores.
O que um entusiasmado e fraco rapaz poderia fazer?
A sua esperança era quebrada a cada descoberta.
A fantasia de Guilherme sobre explorar um mundo novo tinha três pilares fundamentais dos ISEKAIS:
Primeiro pilar: chegar num novo mundo e obter um poder incomparável. Viver como um herói.
Foi um pesadelo!
Segundo pilar: chegar num novo mundo e ser aclamado como o escolhido. O filho de uma profecia qualquer. Viver como um rei.
Pesadelo, pesadelo, pesadelo.
maldição!
O sonho do rapaz avoado recaiu então sobre o terceiro pilar, o principal, o magnífico, o único motivo para existir um ISEKAI, na realidade.
Até agora esse mundo não passou de uma trama meia-xícara para me castigar.
Sou a vítima!
Minhas habilidades não valem nada.
As guildas deixaram claro que não valho nada.
Mas quem precisa disso ao degustar o verdadeiro mel de um ISEKAI.
O terceiro pilar: charme, tesão, sensualidade infinita, ser amado e desejado pelas mulheres. Criar um harém.
TIFUDER!
É isso que eu quero.
Esse mundo e todo o resto que se exploda!
No meio do caminho, Guilherme olhou para o céu que tinha tons de cobre, porque já estava quase escurecendo. E, depois, enquanto viajava pela toca do coelho e suspirava abobado, num piscar de olhos, a noite mostrou as garras frias.
Pela estreita abertura da viela se podia ver, tímida, entre nuvens, a pequena lua azul.
Essa garota é a minha última cartada.
Se for outra quebra de perspectiva, não vou aguentar. Juro!
Vá se ferrar!
Vou jogar a toalha. Quero voltar para casa.
Que casa…?
Não há casa para voltar.
Você jogou tudo no lixo.
Droga!
Não pode ser isso.
Não sou a bucha de canhão para um enredo medíocre e diferentão.
Não sou!
Mexer nas sagradas regras dos ISEKAIS é sacanagem.
Não, dessa vez é diferente!
eu acredito!
Save game… minha heroína.
Me mostre meu verdadeiro destino.
— Herói, herói, me escute, não vá — disse a Pedra. — Volte agora.
— Cala a boca, pedra, não aguento mais você. Eu vou fazer o que eu quiser!
— Não, volte, não vá. As Novels e os jogos só foram refúgios para sua fraqueza, uma forma de suportar a dor e a solidão. Ainda não aceitou que todo esse seu conhecimento de fantasia não vale de nada para o inferno.
— No meu ponto de vista, esse mundo é a fantasia. E você é a porra do grilo falante, merda. Eu vou sim! É a minha oportunidade para encontrar o meu paraíso.
— Veja a verdade, o tempo acabou. Não terá volta. Não vou poder ajudar. Se lembre das noites solitárias, da dor. Eu imploro, não desperdice sua segunda chance.
— Nunca ajudou mesmo. Eu mereço uma segunda chance? — Segundos de silêncio. — Por que continuar?
As palavras de derrota saíram da boca do rapaz com vontade própria.
Um grito involuntário da alma.
Só aí que Guilherme deu atenção total ao seu verdadeiro eu, aquele que pensou ter deixado morto na Terra. Lembrou como aquele miserável estava cansado e queria desistir de tudo. Era o maior dos miseráveis.
— Suas palavras são reflexos da culpa, mas é um passado que não importa mais, herói, é sua chance de ser o que sonhou, lembra, aquela criança feliz… abra os olhos, veja além de você mesmo.
— Você não entende, pedra. Não tem o direito de dizer nada. Eu conheço a sua ver…
— Querido, o futuro sempre é incerto! — A garota parou e examinou toda a viela. — Com quem está falando?
Guilherme revirou os olhos, forçou um sorriso.
— Pare! — Ele respondeu, arrancando de si a agonia que queria dominar seu corpo. — Eu sei o que pretende.
É agora, o grande clichê.
Ela está passando por dificuldades, tem homens maus que a perseguem.
Eu vou derrotá-los e ela cairá nos meus braços maravilhada e agradecida.
Simples!
Mas nada deu certo nesse ISEKAI de terror, será que vou conseguir?
— É mesmo. Ainda assim entrou nessa viela. — A garota encarou o rapaz. — Estou maravilhada e agradecida. É um aventureiro corajoso, mas que não sabe ver o futuro. Eu sei!
Os olhos negros dela fixaram-se num canto da viela, em portas ocultas pela escuridão. Seguiu o espetáculo macabro e tirou de baixo do vestido um punhal de cabo preto. Parecia que tinha sangue na lâmina… parecia refletir a imagem do corpo ensanguentado da última vítima.
O que, um punhal?
Não, não é maluquice minha.
Meio que posso dizer que estou numa situação de risco.
Ela é a vilã arrependida?
É isso, é isso.
eu sei!
O personagem dos ISEKAIS responsável por transformar a jornada do protagonista.
Mas consigo trazer ela para o meu lado?
Guilherme empalideceu. Na boca tinha uma gosma amarga que não conseguia engolir. Pensou em dar meia volta e fugir, mas não podia deixar passar esse momento porque era tudo ou nada.
Nunca consegui lidar com as garotas.
Era tanta vergonha.
Na Terra, as únicas garotas que falavam comigo, eram as caixas de supermercado interessadas nas moedas para facilitar o troco.
Ei, bundão, seu miserável… lembra daquela, da vendinha do bairro, tinha um sorriso doce?
Ela gostava de você.
Aquela menina era para ter sido sua namorada, mas deixou escapar porque preferia a tela do PC.
Qual era o nome dela?
Thaisa.
Uma vez você se engraçou com a garota, o que aconteceu?
O namorado dela me deu uma surra que perdi o rumo de casa.
Nada dava certo para mim.
Aprendi a chorar sem lágrimas, a sorrir sem felicidade e a viver sem vontade.
Para, para, para!
Eu consigo!
Droga!
Consigo?
Meu atributo carisma nesse mundo é alto.
Suficiente?
— B-bem, então… — Guilherme começou da melhor forma que podia — é melhor desistir e se unir a mim. Vamos derrotar os homens maus que a perseguem e juntos encontrar os grandes tesouros perdidos. Vou cuidar de você.
— Não, não! O que você está fazendo? — perguntou a pedra. — Não existem caminhos fáceis. Ela é inimiga, terá que derrotar. Até matar. Não esqueça o que aprendeu com aquele rato: matar ou morrer!
Essa pedra fica tagarelando no meu ouvido.
Droga, não dá para me concentrar.
A pior coisa foi aceitar aquele contrato estúpido.
Como eu queria que esse pedregulho calasse a boca para sempre.
Não serve para nada e ainda só me atrapalha.
Eu sei o que estou fazendo, dessa fez não tem erro.
Ela será a primeira garota do meu harém.
Será todinha minha!
— Ela é uma mulher linda, eu vou cuidar dela — disse Guilherme, confuso, meio dentro da toca do coelho, meio fora.
— Cuidar de mim? Eu vejo um belo futuro para você, meu herói, um rio vermelho.
A garota parecia ultrajada, não gostou nada de ouvir aquelas palavras.
Guilherme não notou o desprezo dela ao ouvir aquelas insinuações tão deprimentes. Ele estava perdido em suas fantasias e mais nada importava.
— Posso, sou o grande herói do mundo. Vou cuidar bem de você e salvar as pessoas!
— Sim… sim, agora eu vejo o futuro que terei ao lado de um herói fabuloso.
— É isso, isso, você entendeu. Que bom!
— Riririri… vou largar tudo, deixar de ser quem sou e pular nos seus braços. Te encher de beijos e transformar sua vida num paraíso. Será um mar de prazer. Tenho irmãs lindas. O que acha? Quer um harém? Por que não? O mundo será melhor com sua visão e proteção. Você é um herói irresistível, irá conquistar o futuro!
Guilherme esboçou um sorriso de satisfação enquanto contemplava a concretização de suas fantasias nos olhos da garota. Entretanto, sua expressão mudou quando ouviu passos ecoando pela viela.
Ele olhou de canto de vista, descrente, e avistou dois homens se aproximando e o cercando por trás.
— Ou só quer me fuder? — A voz da garota foi mais cruel que uma dose de veneno. — Não há futuro para você!
— Miranda! — Dois homens que saíram das sombras a chamaram. — Esse é o tal aventureiro com os bolsos cheios de moedas?
Com o corpo dominado por calafrios, Guilherme analisou a situação.
Isso!
É agora!
Não vou perder!
É a grande cena clichê dos ISEKAIS.
Esses são os bandidos malvados.
São fracos, são apenas degraus para justificar um enredo vazio.
Só preciso derrotar esses caras e essa garota irá se jogar nos meus braços.
Desta vez tudo está acontecendo da forma certa.
Olhe bem, pedra idiota, porque vai ver um grande herói nascer!
O rapaz saiu da toca do coelho, e ficou nervoso ao perceber que a situação guinou para um desfecho assustador, já que a garota tomou o controle da cena. Não era a vítima incapacitada, mas sim, a própria diaba desejando as almas dos pecadores.
A viela lembrava uma cena dos contos de Edgar Allan Poe, cheia de bichos revirando o lixos, e não havia nem sombra de alguma pessoa que pudesse ajudar, mas aquele rapaz de outro mundo acreditava que conseguiria lidar com a situação, embora suas pernas não parassem de tremer.
Seus pensamentos eram outros, mas preocupado em não parecer um fracote na frente da garota. Teria que juntar toda a sua coragem, isso é, se houver alguma coragem naquela carcaça frágil, para assim ter uma chance de impressioná-la.
Não posso fugir.
Vou lutar!
Guilherme lembrou do rato cauda-de-navalha, o cheiro de sangue ainda estava fresco em seu nariz. Lembrou do medonho líder da matilha de lobos cinzentos. Lembrou do aventureiro Liel.
Eu não consegui fazer nada.
Tal perspectiva o apavorou mais que a presença dos dois homens na sua frente. Mas termia ver o desprezo naqueles adoráveis olhos negros quando ela descobrisse o quanto era covarde e fraco.
É diferente.
São dois velhotes.
Posso vencer?
Tenho que vencer.
Só um susto e eles vão fugir.
A pedra poderia…
Ah, esquecer esse inútil.
Vou vencer!
...