Last Downfall Brasileira

Autor(a): VALHALLA


Volume 1 – Arco 1

Capítulo 18: O Protagonista no Jardim da Aflição

O interior de Guilherme estava quente e abafado.

Ele continuava parado no bosque dos sussurros, com a mente tomada pelas lembranças do passado. O vento frio do lugar soprava em seu rosto, mas ele mal notava. Seu coração doía com a intensidade da tristeza e remorso.

Quando o deus Skog lhe deu a opção de escolher algo da Terra para levar para o outro mundo, e o rapaz escolheu as memórias, foi porque não queria esquecer dele.

Mas não podia imaginar que o sangue ainda teria um peso tão grande.

As lembranças vinham como uma enxurrada, inundando sua mente e sua alma. Ele se lembrava do sítio de café dos avós, do garoto que gostava de correr pelo cafezal, dos sonhos que tiveram juntos.

A raiva e o ressentimento borbulhavam em seu peito, misturando-se à tristeza e à dor. Ele queria gritar, queria lutar, queria mudar as coisas. Mas tudo o que podia fazer era continuar parado entre os pés de Taioba-Roxa, continuando a ser o miserável covarde.

As lembranças dolorosas se agarravam a ele como garras afiadas, rasgando sua mente e seu coração, puxando-o para o fundo do mar das trevas.

E lá…

— Hhe… hhe… oolhe ppara mmim… — a escuridão falou.

— Herói, herói… Guilherme, saia das trevas!

Hã?

É a voz da pedra.

Por que ela tá me chamando?

Guilherme não conseguia entender, tudo era confuso demais.

Ele sempre buscou banalizar a noção da morte através dos jogos e histórias, até que tudo se justificasse na sua mente, tanto que acreditava que se algo o ameaçasse, era só socar até que parasse de respirar, mesmo que nunca tivesse sido capaz de ganhar uma briga na vida.

Só queria esquecer, fazer da morte algo comum. Algo suportável. Até que conseguiu, durante anos, na Terra, e pagou um alto valor por isso.

Ele se tornou um recluso solitário, sem futuro; um fracassado.

Eu não estou na Terra.

Eu tenho a chance de mudar a minha vida.

Eu sou um herói!

Guilherme piscou, e as sombras daquele bosque o intimidaram de forma poderosa.

— Pedra, o que foi?

No entanto, ali, viu a criatura que lutava para viver, o gosto amargo voltou a entalar na garganta.

É mesmo…

Eu preciso matar aquele rato!

Respirou depressa, deixando entrar nos pulmões o ar gelado daquele bosque. No caminho das memórias, tirou os grampos e aceitou a verdade para arejar sua realidade cruel: matar ou morrer.

— Eu não quero matar nada. Vim para esse mundo viver uma aventura. Só queria amigos, uma namorada. Só queria ser alguém.

— Herói, julgas que isso é um jogo? O que você irá fazer quando os poderosos tirarem tudo de você? Seu tempo está acabando.

— Hã… Pedra, você quer mesmo que eu mate aquele bicho? Mais sangue, não quero isso, não é certo. Não dá para fazer de outra forma?

— Não seja decadente, herói. O que você é, uma criança? O que julga que aquela criatura queria fazer com você? — zombou a pedra. — Tudo que é vivo morre! Vida consome vida! Se algo precisa morrer para que você possa sobreviver, não há nada de errado nisso!

— Se isso for verdade, posso escolher. Está tudo bem se deixar ela assim, vai morrer logo. Droga, pedra, você tinha que me ajudar. É… é pelo meu bem!

— Não! Você só entende o que quer. Só vê o que quer. Dê uma morte digna para aquela valente criatura. Isso é para o seu bem. Porque, quando o adversário brandir uma espada, não terá tempo para escolhas.

Covaaaarde, traiiiidor, assassiiiino…

Juntando o resto da disposição que ainda tinha, Guilherme caminhou na direção da criatura. Suas chances de conseguir fazer algo concreto eram mínimas, mas precisava continuar, não podia negar que a pedra tinha razão.

Resolveu pensar que era melhor assim, que rastejar como um covarde.

O que significa isso?

De certo zero…

vou ter que passar por tudo isso, não tem graça, não é bom.

Próximo da criatura agonizando, era ainda pior, o som dos gemidos mesclavam com o cheiro ferroso de sangue.

O rapaz levantou os olhos ao ver o corpo de perto e examinou o rosto através de um lampejo de comoção. Desta vez ele conseguiu até se acalmar e até achou que o rato tinha uma expressão de paz.

— O que foi? — indagou ele para a criatura desfalecida. — Não é minha culpa, não é minha culpa. Não queria…

Ele sacudiu os ombros e continuou avançando para arrancar o bastão do corpo.

De repente um rosnado e então, como um fantasma, um lobo de pelagem cinza saltou da vegetação mais alta e mordeu o rato pelo pescoço, e o arrastou para longe.

A fera estendeu a criatura moribunda como um troféu e encarou Guilherme com um olhar diabólico. Travou o pescoço do rato entre os dentes, com vontade de partir ao meio, mas resolveu primeiro zombar sacudindo a desfalecida criatura.

Entre os dentes da feroz fera, o rato que antes era altivo, só parecia um frágil bicho de pelúcia macabro.

Só depois, satisfeito, o lobo mordeu forte e o som dos ossos se partindo foi inconfundível.

— Maldito — disse Guilherme, dominado por um acesso de raiva. — Você não tinha o direito de fazer isso com ele.

— Qual é a situação? — Perguntou a pedra.

Ele era meu, eu lutei.

Não, não, você é sujo e covarde.

Não precisava matá-lo dessa forma.

Respeitar a morte!

Não é isso?

Guilherme atacou o lobo, mesmo desarmado, mesmo cansado, e mesmo sem ter a mínima ideia do que fazer.

Outro lobo saltou e deu uma cabeçada contra o rapaz.

Guilherme cambaleou e caiu no chão. A pancada foi muito forte. Pela sua frente, outra fera estava vindo. Um lobo cinzento enorme, a intenção era arrancar a cabeça dele.

O rapaz estendeu o braço esquerdo apavorado. Então um poderoso uivo alardeou o bosque.

O lobo na frente do rapaz apenas lambeu a sua face passando a língua por cima da vista esquerda, a sensação era como se uma colher quente fosse arrancar o seu olho. O maldito quiz mostrar que o rapaz não iria morrer agora, mas poderia arrancar a cabeça dele a qualquer momento.

O hálito daquela fera era podre, e Guilherme sentiu enjoo no mesmo momento.

Então, o lobo se afastou, e ficou encarando e mostrando os dentes de longe.

Guilherme viu, entre as árvores, a terrível criatura, de tamanho imenso, olhos vermelhos, um ferrão afiado na cauda e uma medonha cicatriz abaixo do olho esquerdo. O líder da matilha observava toda a ação. Tinha um sorriso sinistro.

— Isso é mau. É a matilha de lobos cinzentos, querem vingança! — avisou a pedra.

— Por que não atacam?

— É como o corpo do rato. Querem brincar, e querem que você saiba que sua vida pertence aos dentes deles!

Um lobo agarrou o pé de Guilherme e o arrastou por um metro. Outro correu e deu uma cabeçada num dos ombros dele.

— Ai, droga, cachorros malditos. O que vou fazer, pedra?

— Esqueça as caudas dos ratos. Não há outra escolha, é fugir para viver. Sua esperança é alcançar a cidade.

Até que fim essa pedra falou algo que posso fazer.

Isso!

Sem um pingo de hesitação ou vergonha, Guilherme usou o restante da força para se levantar e fez bom uso dos quatro pontos de agilidade, porque correu como louco.

Os lobos não mantiveram uma perseguição feroz, e debandaram ao longo do caminho, sumindo entre as árvores. Mas isso não importava, tudo que o rapaz queria era deixar aquele bosque amaldiçoado.

Covaaaarde, traiiiidor, assassiiiino…

Ele não havia se afastado demais da trilha principal, por isso não demorou para chegar nela, e num piscar de olhos tinha deixado tudo para trás e voltado para cidade.

Parou e conseguiu respirar em segurança, então sentiu toda a fadiga de uma só vez.

— Pedra, não conseguimos as caudas, o que vamos fazer agora?

Ouviu um uivo. No alto de uma colina, viu o líder da matilha, grande, forte e com ódio. A ferida no rosto com a luz do sol era ainda mais horrível.

— São lobos cinzentos, o que esses bichos querem. — Era a voz de um comerciante distante. — Avisem para a guilda dos heróis.

Aquele lugar não vai ajudar.

A não ser que tenha uma algibeira cheia de moedas.

Por um momento, a fera prometeu horrores ao rapaz com um olhar intenso, rosnando, então desapareceu adentrando para o bosque.

— O que aquela coisa feia quer?

— Ver você definhar!

— Cachorro maldito.

— Você não vai poder voltar a caçar nesse bosque até derrotar o líder — alertou a pedra. — A partir de agora, não haverá espaço para escolhas erradas, entendeu? Herói, por favor, diga que entendeu. O círculo está se fechando.

Que porra de círculo?

Que porra de cachorro mutante?

Essa pedra só inventa história, e ainda quer ditar o que devo fazer.

Eu consegui sair daquele bosque dos infernos.

Ainda sou o herói, o protagonista.

PUTAQUEMEPAROLAS!

Dei meu jeito e escapei, sei que vou me virar.

Acredito que ainda há uma surpresa para mim nesta cidade.

Tem que ter, senão nada faz sentido.

Ah, caramba!

Tifuder, cachorro burro.

Perdeu otário.

Nem por um pacote de salgadinhos de queijo, aquelas maravilhosas bolinhas, eu vou voltar para esse bosque.

Não mesmo, vai apodrecer esperando.

Quando meu valor de herói for reconhecido, vou contratar uma dúzia de aventureiros classe SS para arrancar seu couro.

Pode esperar.

Vou pendurar sua cabeça no alto da lareira do meu castelo.

Isso!

◈◈◈◈◈◈

Naquele dia ainda, Guilherme rodou pela cidade sem rumo até o sol começar a se pôr. Apesar da soberba das atitudes, não tinha ideia do que fazer, e o corpo não aguentava mais nada.

Ele estava arrasado, sujo, com as roupas rasgadas. A ferida no braço da luta contra o rato não parava de arder.

Será que aquele troço tinha veneno?

Não!

Não vi nenhum ferrão.

É só a fadiga desse corpo.

Já ultrapassei todos os limites.

O trabalho para conseguir algumas moedas não funcionou. Não tinha para onde ir. A vontade dele era deitar num canto e dormir, assim a fome cutucando o estômago lhe deixaria em paz por um tempo.

Passou por um lugar que vendia uma espécie de caldo, parecia viscoso e nutritivo, e o cheiro era divino. Pelo valor de uma moeda de bronze poderia comer uma profunda tigela daquela comida reconfortante.

Eu ainda tenho uma moeda de cobre.

Não!

Não posso gastar!

Preciso aguentar o máximo que posso.

É minha última ficha.

— Herói, já beira a loucura preservar essa moeda, você tem que comer!

— Não vou gastar o meu último recurso. Pedra, não estamos tão mal, ainda estamos vivos.

— Quem pode realmente dizer?

— O que…

— Hã, querido, licença, poderia me ceder um pouco de sua graça? — Uma voz feminina chamou Guilherme. — Você é um valente aventureiro?

O pobre rapaz esqueceu de tudo e mergulhou nas doces fantasias.

Eu sabia, sabia, isso.

Estava certo.

É a minha salvação, o momento que tanto esperei.

Deixa ver se bate:

Misteriosa, linda, cintura fina, peituda.

Isso!

Tudo confere.

O maior clichê dos ISEKAIS: é a garota sem noção que vai resolver todos os problemas do protagonista.

Tem que ser ela!

Se não for?

Esse mundo não é o ISEKAI que tá imaginando.

É ela, tem quer ser!

Eu mereço um pouco de alegria.

A garota possuía olhos doces e ingênuos, de um tom de castanho suave, que poderia se assemelhar a um lírio seco. Suas sobrancelhas eram finas e bem desenhadas, curvas, representando uma personalidade curiosa e forte. O cabelo era curto, que chegava na altura do pé do pescoço, de cor negra como carvão.

Ela vestia-se com espartilho preto e vestido cor de vinho. Lembrava uma misteriosa cigana. A tintura vermelha nos carnudos lábios, junto de um tímido sorriso, servia como contraste para as vestes de cores pesadas.

— S-sim! — Guilherme engasgou.

— Não! Somos mercenários — indignou a pedra.

Ela não sabe disso, infeliz…

Pedra inútil!

A garota ficou alguns segundos mordiscando os próprios lábios e encarando Guilherme, ela parecia que não sabia o que dizer. Depois expandiu ainda mais o sorriso num aceno delicado.

— Quero sua ajuda, tem homens maus que me perturbam a pureza — disse ela por entre os dentes. — Posso pagar muitas moedas de prata por seus serviços, valente aventureiro!

O coração de Guilherme disparou e quase saiu pela boca, por muito pouco não teve um piripaque de tanta emoção.

O emocionado rapaz havia esgotado todas as possibilidades que serviam para conseguir sobreviver naquele mundo, por isso tinha a certeza que era a hora da ajuda externa. O ponto sem retorno. O grande prêmio. Além disso, seu anjo salvador tinha uma beleza inigualável e muitas moedas.

Moeda de prata?

Foi isso que ouvi?

Linda e rica?

É mais do que esperava.

Bem, tanto faz.

Nada menos que isso para o herói desse mundo.

Ela é maravilhosa.

Estou salvo!

— Claro, vou resolver todos os seus problemas — falou com uma voz forte, mesmo se esforçando ao máximo para manter o ar de grande aventureiro.

Sendo que não podia esconder o estado lamentável das roupas, e nem os inúmeros cortes e hematomas, muito menos toda a sujeira.

Mas para ele nada disso importava porque era algo programado, o seu destino.

A fadiga e machucados da luta contra aquele rato eram visíveis, mas nem isso preocupava o rapaz que acreditava que apenas o brilho do seu olhar era suficiente para causar um encanto avassalador e sem sentido. Afinal, aquela garota era o prêmio do protagonista.

— O futuro é o espelho de nossas vidas. — A garota parecia estranha.

— O que?

— Digo… não é nada. Que bom que vai resolver meus problemas  — ela disse, enquanto as mãos deslizavam pela cintura. — Ainda há aventureiros com coragem.

— Eu sou um desses, pode confiar, a coragem em mim, transborda como água fresca numa nascente. Qual é o trabalho?

— Não posso falar aqui, você entende, né, bravo aventureiro?

— Sei como funciona... ameaças?

— Sim.

— Qual é seu nome?

— Não há tempo para isso. Venha comigo!

A garota saiu da rua principal, muito rápida, e seguiu por uma viela deserta e escura.

Guilherme franziu a testa, surpreso. O momento chave dos ISEKAIS estava o chamando para dar lhe um beijo doce.

Mas ainda assim, tinha um péssimo pressentimento.

Na verdade, toda aquela situação era uma grande surpresa. Por causa das séries de desventuras, imaginava que tudo era como uma história, por isso, só iria receber algum tipo de sinal no fim do arco dessa cidade; apenas teria que suportar até lá.

Só que estava acontecendo, diante dos olhos cansados, a sua libertação.

Depois de uns segundos de hesitação, escutou.

— Vamos? — A garota já estava um pouco mais à frente, e também bastante ansiosa.

— Certo!

Guilherme a seguiu para dentro da viela. Era estranho como reconheceu imediatamente aquela sensação fria e perigosa, a mesma sensação que sentiu no bosque dos sussurros.

— É perigoso. Independente dos seus conhecimentos da Terra, não entre nesse lugar — avisou a pedra. — É uma armadilha!

— Claro que é uma armadilha, idiota!

— Mesmo assim, vai segui-la?

— Eu… — Mas o rapaz entusiasmado já havia desligado o cérebro, e apenas ia para frente. — Eu vou cuidar de tudo, pedra.

Nem vou tentar explicar.

Esse pedregulho não iria entender.

Eu não perderia isso por nada.

O sonho realizado de todos os amantes de ISEKAIS.

Vou conseguir moedas de prata, e de quebra, arranjar a primeira garota para meu harém.

Ela é um pouco sombria demais, mas não vou reclamar.

Alegria, só alegria…

Já estava na hora de virar um ISEKAI de verdade.

Finalmente!

...



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