Last Downfall Brasileira

Autor(a): VALHALLA


Volume 1 – Arco 1

Capítulo 17: O Protagonista vs O Rato

Guilherme olhou todo o campo de Taioba-Roxa, então coçou a cabeça.

— Covaaaarde, traiiiidor, assassiiiino…

Os sussurros eram uma funesta melodia do bosque sombrio.

O rapaz havia perdido a sua bolsa de aventureiro e a sua única arma, o bastão pontiagudo, e estava naquele campo que parecia uma grande cova. 

Entre a vegetação, não muito distante, ele encontrou a bolsa.

Beleza, o que vou fazer com um pedaço de pano?

Droga!

Tenho que achar o bastão.

As Taiobas-Roxas eram plantas mais baixas que os arbustos, e alcançavam a altura dos joelhos do rapaz, eram densas e com grandes folhas roxas.

Ele passou a mão pelo chão buscando o bastão e sentiu tocar em algo estranho e quando pegou, se deparou com as cavidades escuras de um crânio humano.

— Uh? Quê, quê, quê, quê… — Ele arremessou para longe o osso sinistro.

— O que foi? — perguntou a pedra.

— U-um crânio. Há ossos por toda a parte.

— Aqui é o ninho dos ratos. Preste atenção, a brincadeira acabou. Precisa daquele bastão, por isso esqueça todo o resto, e se concentre apenas em encontrar sua arma.

Uma criatura correu rápido abaixo das folhas de Taioba-Roxa.

Covaaaarde, traiiiidor, assassiiiino…

Droga, droga, droga.

A merda de um rato vai me devorar.

Sou a vergonha dos heróis de ISEKAI.

Guilherme chutou as moitas das taiobas na esperança de esbarrar no bastão. Ouviu um som áspero e localizou sua preciosa arma.

Foi como um copo de suco gelado num dia quente, porque suspirou aliviado. Então abaixou para pegar e se levantou assustado.

— AAAHH!

— O que foi agora? — a pedra se preocupou.

— Não sei, alguma coisa esbarrou na minha perna.

Guilherme deu alguns passos para trás.

A criatura que estava oculta pelas grandes folhas roxas saiu das sombras e revelou o grotesco corpo.

Guilherme passou as mãos nos olhos para ter a certeza que aquela visão era real.

A criatura tinha um corpo pequeno e esguio, semelhante às ratazanas que vagavam nos esgotos da Terra. Sua pele era coberta por pelos cinza-escuro e suaves, que forneciam a camuflagem ideal para aquele ambiente irregular.  

Os olhos eram pequenos e redondos, com íris negra que pareciam brilhar na escuridão do seu esconderijo. Orelhas pontudas e a boca repleta de dentes pontiagudos como agulhas. 

No entanto, o que chamava a atenção naquele bicho era a cauda, que era mais longa que o corpo e tinha o formato de uma navalha. A extremidade era afiada, tanto, que cortou com facilidade o caule de um dos pés de taioba.

A criatura mirou o rapaz, seus pelos se arrepiaram, e levantou a cauda pronta para atacar.

Guilherme se deu conta que aquelas caudas secas que o comerciante mostrou nada lembrava a cauda que o rato sacudia frenética.

Ele balançou a bolsa de aventureiro para espantar o bicho.

Percebeu que havia cometido um erro de julgamento, que seria impossível derrotar aquela coisa.

Como eu imaginei que poderia ser um caçador nesse mundo?

Mané…

Ei, mané!

Você lutou com lobos e venceu!

Eu vou conseguir.

Vou ter que matar essa coisa.

(...)

Matar…

???

O rato se moveu, e usando a folhagem dos pés de taiobas, desapareceu. Porém, a movimentação entre as plantas indicava que avançava feroz contra o inimigo.

Guilherme, surpreendido, e com medo de perder um dos dedos do pé, começou a levantar as pernas para cima e para baixo, como numa espécie de dança desengonçada.

— Ai, ai, ai, ai, ai… sai de mim coisa feia.

Quando se deu conta que aquela dança era mais vergonhosa que eficiente, percebeu que a criatura estava no seu pé esquerdo, tentando se agarrar à sua perna, mastigando e arranhando a sapatilha de couro.

De perto, o rato era ainda mais feio, com o focinho escorrendo uma meleca esverdeada, o pelo crespo, e a cauda despelada que terminava na formação óssea em forma de navalha.

O bicho é feio que dói.

Lembra um maldito Chihuahua deformado.

Que falta de criatividade nessa merda, enredo fraquinho.

Cadê os slimes macios ou as bolinhas de pelo fofinhas.

Todos os bichos vão ser uma fusão bizarra de escorpião com outra coisa, fala sério, hein?

Droga!

Guilherme sacudiu a perna, mas não conseguiu se livrar da coisa feia. Bateu nela com a bolsa, e nada. Até pensou em espetar a ponta do bastão, só que não o fez.

Então, percebeu que o bicho se preparava para usar a cauda.

— FILDAPUTA!!! — Ele soltou um grito, em seguida se jogou para fora do campo das Taiobas-Roxas.

Aquele sagaz caçador não se jogou de uma forma planejada, isso precisa ser ressaltado, na verdade, ele tentou fugir desesperado e por consequência, colidiu contra uma árvore.

Não foi uma pancada suficiente para perder os sentidos, mas atordoou as ideias já em frangalhos, e até conseguir recuperar a noção, a criatura havia desaparecido.

— Onde está o bicho? Tem mais? Ai, ai, ai, minha cabeça. — Ele passou a mão na região onde bateu contra a árvore. Não estava sangrando.

Covaaaarde, traiiiidor, assassiiiino…

— Dá um tempo para mim… ai, ai, esses sussurros não param, que bosta, vou enlouquecer.

— Herói, concentração, é ignorar as vozes e focar no inimigo. Onde ele está?

Guilherme olhou ao redor. Passou o bastão pelos pés de Taioba-Roxa, quebrando algumas e cortando outros.

Um vulto passou rápido de uma planta para a outra.

— Ele é muito rápido, não dá!

— Calma, até então é só um inimigo, é focar nele e preparar o golpe fatal.

— Aí que é o problema, pedra idiota, droga, não estou vendo nada. Um rato não deveria ser problema para uma besta lendária. Ei! Me ajuda aqui, pedra! A sua principal prioridade é me ajudar. Você tem que me proteger. Droga! Faça alguma coisa.

— Não posso, sou apenas uma pedra idiota. A luta é sua, herói.

Guilherme não tinha outra escolha, e continuou a brandir o pedaço de bastão contra as plantas, parecia uma fera ensandecida, mas ele não conseguiu acertar nada.

Se pelo menos tivesse uma lâmina, em vez de um pedaço de madeira.

Antes, ele até pensou em comprar algo, qualquer coisa simples, mas com apenas uma moeda de cobre, não conseguiu nem mesmo uma agulha para costurar as calças.

O metal era muito valioso naquele mundo.

Com habilidade, a criatura raivosa deslizou pelo terreno, contornando a presa, de um lado para o outro.

Desesperado, o rapaz tentou ativar sua habilidade.

Nada aconteceu.

Funciona porcaria!

Eu não tenho destreza o suficiente, também não tenho a minha arma.

Que belo mestre de facão eu sou, nem mesmo tenho o bendito facão.

Vovô iria ter vergonha de mim!

Guilherme tentou tudo que sabia, ou achava que sabia.

As técnicas mortais de luta que ele aprendeu nos videogames na Terra nada adiantaram, porque era meio difícil quebrar a lei da gravidade sem um console. Suas ideias mirabolantes foram inúteis.

Não tinha um facão, a sua arma. Não podia usar as outras habilidades porque não tinha nem a mana, nem o vigor suficiente.

O rapaz se perdeu sem a menor noção do que fazer.

Quem eu quero enganar?

Olha o que estou fazendo.

Sou imprestável.

Eu poderia ter uma UZI com munição infinita que nunca iria acertar essa coisa!

Nunca mesmo.

Para tentar alcançar um resultado melhor, ele mudou de tática e começou a balançar o bastão para baixo e para cima, com isso, acreditou que pelo menos manteria o bicho afastado, porém, como era de esperar, nem sequer serviu para revelar a localização da criatura.

Esse troço parece ligado com a bunda numa tomada, não fica parado.

Droga!

— Pedra, tem alguma ideia?

— Você irá fincar o bastão no coração e matar o inimigo!

Guilherme estremeceu.

— O que? Isso? Eu ainda pergunto. Como vou fazer algo assim, Idiota? Deus Skog, me dê paciência.

Covaaaarde, traiiiidor, assassiiiino…

O rato parou de se mover e resolveu atacar o rapaz em alta velocidade.

Com um grito, Guilherme usou o bastão para varrer tudo na sua frente. O rato se esquivou com um salto simples e se agarrou na perna esquerda dele.

— AHHH! — Guilherme gritou outra vez. — O bicho grudou na minha perna. Solta carrapato, ai, ai, ai.

Ele começou a pular com uma perna só.

— Não — avisou a pedra. — Ele entrou no alcance da ponta da sua lança. Traga a glória de um herói. Irá cravar o bastão em um dos olhos, e só vai parar quando atravessar todo o corpo, empalar a criatura!

Guilherme até armou o bastão, sendo que podia acabar com tudo naquele momento, mas olhou o bicho mordiscando a sua calça, tão cheio de vida, os olhos brilhavam, que o corpo travou, e não conseguiu aplicar o golpe.

Ele lembrou do seu coelho branco.

Então acreditou que poderia fazer diferente, sem violência, assim, de algum modo bizarro essa luta terminaria sem um banho de sangue. Havia ignorado o fato de que ainda precisaria arrancar a cauda da criatura para receber as moedas.

Na sua mente não importava, nada importava.

Então esticou o braço e agarrou o rato pelo pescoço como se agarrasse um filhote de cachorro, e por um momento até que pareceu que funcionaria, então veio a feroz lapada da cauda em forma de navalha.

— A cauda — gritou a pedra.

Guilherme conseguiu soltar o bicho bem a tempo, se não o alvo seria a garganta.

A navalha acertou o braço e uma ferida profunda se abriu. O movimento continuou e o afiado osso passou zunindo pela sua vista esquerda, por milímetros não teve o olho arrancado.

O rato parou a menos de um metro.

Com um grito e um movimento descuidado, Guilherme tropeçou e caiu para o lado, assim que o bicho preparou outro ataque.

Ele caiu rolando, sujou a cara de musgo e sentiu dor. A ferida no seu braço parecia estar queimando. O bastão parou do lado dele.

— O que há com você, herói? Entenda de uma vez que hoje, nesse bosque, você ou o rato, um vai morrer — afirmou a pedra. — A vantagem era sua, por que não finalizou a batalha?

O rato se preparou, aproveitando que o inimigo estava caído no chão, saltou alto, e desta vez foi para alcançar a cara do caçador confuso.

Guilherme agarrou o bastão e o levantou acima do corpo, com a ponta para cima.

Foi um movimento de reflexo, uma ocasião desesperadora, uma ação clichê, e tantas lembranças dolorosas, mas isso era tudo que aquele covarde conseguiu fazer.

D-Droga!

Você quer mesmo me matar, é isso?

Me matar!

Droga! Droga, droga!

Um rato está tentando me matar.

Que mundo é esse?

Um horror distorcido?

Nada está indo do meu jeito…

nada!

Covaaaarde, traiiiidor, assassiiiino…

O rato sacudiu a cauda com ferocidade. Voou o mais alto que pôde. Estava decidido, sem sombra de dúvidas. Fez tudo para defender sua vida, mas não conseguiu evitar aterrissar sobre a ponta afiada.

O bastão entrou na região do peito e atravessou todo o corpo da pequena criatura.

O corpo amoleceu instantaneamente e o bicho não fez mais nada. Virou-se e caiu ao lado do rapaz exibindo a ponta do bastão, varada através da carne e pele, encharcada de sangue.

Um sangue vermelho, viscoso, e pesado demais.

Guilherme engatinhou para longe daquele cenário, não quis ficar perto e não suportou olhar.

Era como se fosse uma testemunha de um assassinado, que nada tinha a ver com o ocorrido, e que só estava passando na hora errada.

— Você conseguiu — disse a pedra. — Dê o golpe final!

— Não quero!

— O que?

— Estou cansado, meu corpo dói, quero ir embora. Não quero dar golpe nenhum, não, não!

Covaaaarde, traiiiidor, assassiiiino…

O corpo de Guilherme estava acabado, era verdade, mas esse não era o problema real.

O rato soltou um suspiro ao tentar expulsar o ar dos pulmões perfurados. Sangue escorria por sua boca. O corpo do bicho tremia em espasmos intercalados, tentando levantar, enquanto os dentes arranhavam o musgo do solo, como se estivessem mordiscando a vida.

Se podia ouvir um som agudo e ranhoso, que se misturava ao som do vento sacudindo as folhas e dos terríveis sussurros. O cheiro ferroso do sangue impregnou todo o ar.

Mas a visão do corpo não deixou de criar um vácuo, e assim entorpecer os sentidos do rapaz, para ocasionar um silêncio mordaz e angustiante.

Se pudesse, Guilherme não teria tido a menor dúvida em deixar tudo aquilo para trás.

Sangue, quanto sangue.

Esse som horrível que esse bicho tá fazendo, é a pior coisa.

E como aquela vez.

Outra vez não, não…

Para, rato maldito!

Por que não para?

É só morrer.

Nos jogos não era assim, não tinha esse barulho, não tinha esse cheiro.

Era só matar.

Para!

— É só deixar ele aí, não vou fazer nada, vamos embora!

— Não! A criatura lutou sem medo. Respeitar a morte é dar um fim justo para os corajosos. É honrar a vida — afirmou a pedra. — Tem que dar o golpe final e arrancar a cauda! As moedas de bronze, precisamos delas.

— Não, não, não foi minha culpa. Por que fica me acusando?

— O que?

— Não! — Guilherme sacudiu a cabeça, e depois de ver o rato estendido no chão, sorriu seco ao lembrar do motivo que estava naquela floresta. — Não quero ter que fazer isso mais quatro vezes, não vou aguentar. Quero voltar!

— Não temos para onde voltar, aqui não é a Terra, estamos vivendo na sarjeta. É glória ou derrocada, será que não entendeu isso?

Um momento de silêncio. Os suspiros agonizantes do rato se tornaram mais altos.

O corpo de Guilherme tremia todo, mas não era de medo, era outra coisa, algo mais profundo e assustador.

— Mas esse não é o problema, não é mesmo, herói? Todos os pecados terão que ser pagos — continuou a pedra. — Você também não quis buscar a morte para o líder da matilha de lobos cinzentos. Você já ceifou uma vida em batalha… não, nem isso… já matou?

Guilherme foi tragado para uma escuridão sem fim.

Matar?

Droga!

Eu era apenas uma criança.

Não foi minha culpa, não foi minha culpa.

Enquanto o rapaz se debatia contra as garras do passado, inimigos ferozes rodeavam todo o lugar, se deliciando e aproveitando cada momento.

...



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