Volume 1 – Arco 1
Capítulo 16: O Protagonista no Bosque dos Sussurros
Guilherme respirou fundo. Não conseguia entender as trilhas sinuosas daquele emaranhado de árvores velhas. Confuso e fraco, percebeu que os efeitos da falta de comida e cuidados eram mais severos na sua mente do que queria aceitar.
Ele não estava em condições de enfrentar nem mesmo uma aventura simples, quanto mais explorar um bosque como esse que, considerando a penumbra, o perigo espreitava atrás de cada tronco, e onde bocas famintas ansiavam por comida. Além disso, não poderia continuar nesse ritmo se quisesse encontrar os Ratos Cauda-de-Navalha.
Quem vou enganar…
Foi uma péssima ideia.
Se eu entrar mais nessa floresta vou morrer.
Vou voltar para cidade e pensar em outra coisa.
Não vale a pena!
Estava quase desistindo da caçada quando surgiu uma carroça seguindo pela trilha, avançando vagarosa sobre o esburacado caminho.
Guilherme inclinou-se, afastando para dar passagem, enquanto a carroça parou na sua beira.
O carroceiro era um homem magro e moreno, e apesar da aparência sofrida, tinha um sorriso amistoso, e uma estranha aura de tranquilidade e paz, que nada combinava com esse lugar. Ele tinha na cabeça um chapéu de aba reta que cresceu aos olhos do rapaz.
Na hora lembrou daqueles missionários sem noção da Terra, que gostavam de bater nas portas das pessoas aos domingos.
A carroça era puxada por um cavalo de cor caramelo, magro e muito calmo.
Dentro da carroça havia muitos ossos de animais.
— Olá, boa gente, que lugar sinistro, não? É como se estivéssemos mais perto do inferno! Se estiver indo para o leste — exclamou o carroceiro. — É minha direção, e muito me agrada a companhia para cruzar essas trilhas sinuosas.
— Não tem medo que eu seja um bandido?
— Nunca ouvi falar de bandidos que roubam ossos. Ah não, boa gente, sou um homem de fé, acredito que os deuses nunca nos abandonaram. Um homem que tem fé, não tem medo.
— Fé? Sei como é. Sou devoto do grande deus Skog.
— Cuidado com os deuses falsos, porque poderão enganar até os escolhidos. Suba na carroça, venha comigo, se seguir essa trilha poderá encontrar uma nova estrada. É só não ligar para o cheiro das carcaças, apesar disso, os ossos são todos frescos. Meu nome é Cristóvão, e gosto de conhecer pessoas.
Até parece que vou acreditar num cara tão estranho, babaca.
Vi todos os filmes dos jogos mortais.
Falar de fé e logo depois jogar uma falácia referente ao grande deus que é meu padrinho.
Não mesmo, esse enredo é expositivo demais, lixo, tô fora!
Por nada, nadinha nenhuma, vou subir nessa carroça!
— Não, obrigado, estou aqui para caçar Ratos Cauda-de-Navalhas.
— Um caçador? Não parece. Se não tiver nada melhor na sua bolsa, além desse bastão pontudo, é arriscado se aventurar nestas matas.
— Eu ainda não me decidi o que fazer.
— É melhor pensar bem, porque não vai achar nenhum dos ratos nessa trilha já que não tem a Taioba-Roxa. Os bichos gostam de fazer seus ninhos abaixo da sombra e roer as raízes dessas plantas. Vai precisar sair da trilha e entrar no bosque.
— Acho que foi uma péssima ideia, vou voltar para a cidade.
— Faz muito bem, boa gente, esse lugar é das trevas. O vento cria sussurros com os horrores que os homens escondem no coração. Até homens de fé, podem fraquejar nessas trilhas. Enlouquecer! No entanto, um homem não pode recuar na sua decisão, é ainda mais perigoso.
— Não decidi nada. Só que não seria ainda mais perigoso viajar sozinho?
O gentil carroceiro olhou-o com desdém, sorriu e pegou um dos ossos, um grande, toda a carne havia sido raspada, restava apenas resquícios de sebo.
— O trabalho é perigoso, é assustador, é doloroso, mas alguém tem que fazer.
O homem olhou para a trilha, seus olhos tinham um brilho vivo. Logo depois, jogou o osso de volta com os outros e finalizou:
— A grande deusa está do meu lado. Além disso, tenho uma maravilhosa mulher e algumas crianças famintas que estão esperando por mim.
— É… bem… — Guilherme não soube o que dizer, desviou o olhar porque não aguentou encarar os olhos determinados do carroceiro. — Eu vou decidir o que fazer.
O rapaz piscou o olho esquerdo, de forma incontrolável.
— É melhor cuidar desse olho, me parece mau-agouro.
— Não, é só uma coceira irritante, estou bem!
— Se decidir caçar os ratos, cuidado com a garganta. Me despeço, vou seguir meu caminho.
— Não preciso que ninguém se preocupe comigo, sei o que estou fazendo.
— Rogo a deusa Moren que tenha boa saúde, boa gente, e que Valhalla seja gentil com seu futuro. — O homem atiçou o velho pangaré, e devagar a carroça voltou a percorrer a sinuosa trilha. — Hooo, vamos, hooo!
Guilherme estava pensativo enquanto a carroça desaparecia em meio às curvas do caminho. Ele a observou com um olhar lânguido e perdido.
Vendo Cristóvão indo embora, ele sentiu um forte aperto no peito.
Esse homem apareceu nessa trilha com um papo furado.
Seiii!
É suspeito demais.
Já não estava muito a fim de encarar esse lugar, vou aproveitar e dar o fora, isso sim!
Que se dane as porcarias dos ratos.
Era admissível para qualquer um se precaver numa situação como essa. Mas para alguém numa situação onde estava apostando o futuro, seria ignorância.
Já era tempo de Guilherme achar soluções para os seus problemas sem fugir deles.
Verdade que era difícil para ele.
Parte de sua infância foi reclusa no sítio e, como solitário, sua atitude de procurar uma solução fácil tinha de ser considerada normal, pois, antes de conhecer o amigo, ele nunca havia se sentido confiante para realizar nada.
O grande amigo de infância. Um garoto que corria entre os pés de cafés. Um garoto que sorria sem motivos. Um garoto que foi o único amigo verdadeiro.
Por um tempo, Guilherme foi feliz, quando a inocência era flor imaculada, mas tudo foi arrancado dele.
Jamais poderia esquecer o choque que foi deixar o amigo para trás perdido entre os pés de café e o seu olhar de desespero, lutando pela vida.
Depois desse terrível acontecimento, ele havia perdido, de forma brutal, o desejo e o incentivo de seguir a vida como uma pessoa normal, privado do calor das amizades e da alegria das novas descobertas, e tornou-se uma casca vazia.
A vida dele na Terra era um grande fardo, onde se tornou uma criatura que só servia para desperdiçar oxigênio.
No entanto, ao morrer, foi abençoado por um deus e ganhou outra oportunidade, por isso não poderia cometer erros. Não os mesmos enganos, era uma possibilidade inadmissível.
— Pedra, vou desistir e voltar para a cidade. Foi uma péssima ideia vir para esse lugar.
Ele não podia desistir diretamente, sem despertar estranheza da sua besta, afinal, era o herói desse mundo.
— Aconteceu algo? Está com medo?
— Claro que não, idiota, só acho que podemos nos preparar melhor e voltar depois — esclareceu o rapaz com um tom de voz estranho. — Ouviu o que o carroceiro falou, é perigoso.
— Herói, em vez do ponto negativo, porque não se concentrar no verdadeiro exemplo daquele bom homem?
— Exemplo, de um carroceiro que usa carcaças para sobreviver, qual seria?
— Não ver o brilho do valor da coragem. Não ver as portas sendo abertas. Não fale assim dos justos, estou por duvidar de sua honra de herói.
— Não seja idiota, pedra, falei alguma mentira?
— Independente do que você acha, da dor ou dificuldades, temos que fazer a nossa parte. Ninguém fará por nós! E aquele bom homem o faz com um sorriso no rosto.
— Tá, tá, tá, entendi, droga!
— Além disso, se voltar de mãos vazias, será garantido a tragédia para o nosso caminho. Caçar é a oportunidade final.
Droga, pedra desgraçada, sempre dá a porra do jeito de piorar a situação.
Será que não pode concordar comigo uma vez?
Só uma.
Minha besta? Sabedoria?
Nah…
Ela tem razão, não posso voltar de mãos vazias.
Como vou comprar os morangos para aquela belezura?
Isso, vou conseguir.
É só matar ratos, qual dificuldade terá nisso?
São os bichos mais fracos em qualquer novel ou jogo de campanha.
Vou dar conta, moleza!
Guilherme adentrou na mata, mas não muito, na verdade, ficou bem perto da trilha principal, porque não queria perdê-la de vista.
Mesmo na boca da mata, não podia relaxar, porque o lugar era sinistro demais.
Nesta parte do bosque era arborizada com as árvores bem próximas umas das outras, criando um labirinto medonho.
Havia árvores de folhas largas e plantas rasteiras das quais não descobriu muito usando sua habilidade da avaliação de Química Orgânica, bem como eram venenosas ou as comestíveis deixavam brechas arriscadas. Outras árvores estavam mortas e secas, mas em pé e assustadoras.
Uma floresta escura, silenciosa e fria.
Não havia muito chão firme. Era tudo macio de forma estranha, ou ligeiramente mole. A base era ruim e as raízes saltavam acima do solo, o que dificultava a caminhada. Deixava a impressão que qualquer escorregão, o rapaz cairia num buraco e desapareceria para sempre.
— Covaaaarde, traiiiidor, assassiiiino....
O vento ao passar pelas cavidades ocas das árvores secas criava sussurros assombrosos.
Uma onda de medo inundou o coração de Guilherme.
Assombrações teriam alguma coisa a ver com isso?
A alma dele veio buscar vingança e me arrastar para a cova?
Perdão, perdão, perdão, perdão.
Não podia ser. Sacudiu a cabeça, decidido a acalmar-se, raciocinando com lógica, já que se fossem espíritos vingativos, eles já teriam tomado providências para liquidar com a vida do medroso quando colocou o primeiro pé naquele bosque amaldiçoado.
Mas era certo que tudo havia ficado para trás quando saltou na frente daquela carreta, e ainda pagou os pecados quando salvou o garoto, afinal, é assim que funciona a lei do carma.
O bem ou o mal, que praticamos durante a vida, nos trará consequências boas ou más, nesta existência ou nas próximas.
É isso!
Paguei com o bem… meu cheque está em branco.
Você fez só para se livrar da sua vida miserável, da culpa…
Droga, salvei o remelento, é o que importa!
Certo?
Não sei!
Droga, não vou ter paz?
Além disso, era uma vida nova. Guilherme estava usando um corpo diferente e não tinha como o passado reconhecer sua verdadeira aparência, de modo que na balança do destino seria pesado com um coração novo e puro, nem a culpa e nem o arrependimento poderiam ser contabilizados.
Calma, idiota, é só o vento.
— Covaaaarde, traiiiidor, assassiiiino…
Guilherme estremeceu.
— P-pedra, pedra, está ouvindo alguma coisa estranha?
— Ouvir? Não… não… não ouço palavras nenhuma, não, nada… o que seria?
— Os sussurros, não está ouvindo?
— Não ouço nada! É só palavras, precisa ignorar, e focar em achar os ratos para saímos desse lugar do mal!
Guilherme, embora já assombrado demais com seus temores, a resposta de sua besta o chocou.
A reação da pedra dava a impressão de uma figura fugindo de um conto de terror dos livretos de cordel.
Mas o rapaz não conseguia refletir sobre a reação da pedra, estava apavorado demais para qualquer coisa.
Ouviu ruídos atrás de um tronco de uma grande árvore.
Os olhos incrédulos do rapaz perambulam entre as árvores. Sua trêmula mão se fechou sobre o bastão, de ponta afiada, que ele carregava. A outra mão agarrou e em seguida abraçou a encardida bolsa de aventureiro que trazia junto do corpo.
— Covaaaarde, traiiiidor, assassiiiino…
Então, uma figura bizarra e enorme saiu das sombras. Os olhos do rapaz se arregalaram de pavor, ele segurou a respiração e saltou de supetão.
— NÃO… ME DEIXEM EM PAZ!!!
Descontrolado, desferiu como um louco o bastão em todas as direções, também rodopiou a bolsa de aventureiro transformando-a numa crava macia. Ele não se importou com o resultado, só queria afugentar o que fosse aquela coisa.
A criatura não reagiu e nem rosnou, não fez nada.
Depois de respirar, percebeu que o monstro era um grande galho seco que veio de trás do tronco empurrado pelo vento.
Você precisa se acalmar, cara, está deixando esse lugar afetar sua mente.
Se continuar a gritar dessa forma, essa pedra vai ter a certeza que não passa de um fracassado de merda.
Heróis não gritam como gatas ferradas!
Se essa pedra se revoltar contra você, as coisas serão ainda mais difíceis.
Isso não vai acontecer…
Ela precisa de mim, não é?
Está presa a mim, não é?
Se… se preocupa comigo, não é?
Idiota, pensa direito, por qual motivo alguém se importaria com um mentiroso imprestável?
No final, todos vão abandonar você!
Não, a pedra é diferente.
Eu sei!
Não vou falhar, tenho que encontrar esses ratos, tenho que mostrar meu valor.
E rápido!
A preocupação ofuscou o brilho nos olhos de Guilherme, como os raios implacáveis do sol que torram ainda mais a superfície de uma caatinga quente.
Os galhos entrelaçados das árvores mortas se esticavam em enormes formas torcidas, vários metros acima do solo coberto de musgo, e se misturavam com os galhos verdejantes das árvores vivas, deixando brilhar apenas uma fraca luz melancólica por entre os troncos gigantes.
O rapaz abaixou a cabeça e passou de leve a língua pelos lábios, coçou a cabeça, mas entendeu que não conseguia se acalmar e parar de tremer. Não disse nada, mas seus olhos exprimiam a frustração que sentia.
Deu uma meia dúzia de passos indecisos para frente e ficou admirado com o grande progresso que havia feito. Podia parecer pouco, mas se mover numa direção onde as pernas se recusaram a ir, não era fácil.
O bosque estava ainda mais sombrio, só faltavam as criaturas terríveis para ficar um horror completo.
Alguma coisa tocou o cabelo de Guilherme, que se virou bufando.
Mas era outra pegadinha do vento junto de um galho seco.
Já chega né, basta, que merda.
Cadê esses ratos?
— Não precisa adentrar mais? Você tem certeza que vai encontrar os ratos nessa parte da floresta? — perguntou a pedra.
— Eu não vou me enfiar nesse lugar, não mesmo. Além do mais, ouviu aquele carroceiro, os Rato Cauda-de-Navalha estão construindo os ninhos próximos da Taioba-Roxa, só temos que achar essa planta e achamos os ratos.
— Você sabe como é essa planta?
— Não faço ideia, bem… aposto que são folhas grandes e roxas.
Guilherme ouviu um som estranho, eram pássaros cantando, seguido por uma revoada e no fim, apenas restou o farfalhar das folhas por toda parte e os sinistros sussurros.
— Covaaaarde, traiiiidor, assassiiiino…
Báááááá, chega disso, droga!
Eu queria ver esses pássaros.
Pardais e gaivotas gordas, não seria de todo ruim.
Mas com essas árvores altas e a falta de luz, não consigo distinguir nada.
Se bem, com minha sorte desgraçada, esses passarinhos teriam dentes maiores que leões e uma fome ainda maior.
Vou focar só nos ratos!
O rapaz deveria estar mais preocupado, considerando a fama deste lugar, e esses sussurros.
Parecia que ele estava se acostumando e se deixando levar, como se estivesse no automático, no seu quarto antigo na Terra, e ao desligar o PC, fim de problemas.
Vou ficar bem, vou conseguir.
Bem, acho que não é nada demais.
Não é nada demais, né?
Seja como for, não é nada demais.
No entanto, por mais que procurasse, ele não conseguiu encontrar um Rato Cauda-de-Navalha. Ele também não encontrou nenhum ser vivo além de insetos.
Nenhuma era a lagarta de listras brancas que tinha a gosma ácida, até tentou com outras, mas não tinham a gosma que queria.
Voltou a ouvir os pássaros cantando. Ouviu ruídos vindos atrás dos troncos.
— Covaaaarde, traiiiidor, assassiiiino…
Mas onde estão esses benditos bichos?
Pela aparência deste lugar, deveria chamar jardim dos esquecidos, ou algo assim.
Não havia outras criaturas por perto porque a maioria havia fugido ou estavam no fundo de suas tocas. Mas havia um motivo para isso. Entre ramos e folhagem, num arbusto, uma criatura observava com olhos selvagens e vermelhos cada movimento do estabanado rapaz.
Um rosnado feroz vindo das sombras, assustou Guilherme, que tropeçou numa raiz, caiu e rolou alguns metros por um acentuado declive.
Parou um tanto atordoado, e depois de se recompor um pouco, conseguiu ficar de pé. Havia perdido o bastão pontiagudo.
Apesar do susto, os olhos do rapaz pareciam sorrir, mas ele não objetou à sua sorte e depois de avaliar o lugar onde aterrissou, se viu em meio a um pequeno campo com plantas da altura de samambaias, folhas grandes e roxas.
Seu cansado coração se encheu de alegria.
As Taiobas-Roxas.
Eu sabia, consegui encontrar.
Isso!
— Pedra, veja, pedra… eu consegui achar as taiobas.
Então os ramos das taiobas mexeram, num momento no lado esquerdo, depois algo correu em alta velocidade para direita. Pelo chocalhar seco e macabro de ossos sem carne, um bicho terrível espreitava naquele campo roxo.
Guilherme estalou a língua de nervoso.
Claro que tinha que ser um bicho assustador.
Rato Cauda-de-Navalha?
Cuidado com a garganta.
Bosta!
Aff!
Pedir um pouco de alegria é demais, né?
Não dou sorte em nada.
Droga, droga!
— Covaaaarde, traiiiidor, assassiiiino…
— CALA A MALDITA DA BOCA, DESGRAÇA!!!
...