Volume 1

Capitulo 3: Fogo e Pedra

O grupo segue pelas margens do riacho. Kanala se mantinha atrás de Ky, atenta a cada movimento dele. O velho homem caminhava à frente com passos calmos, como se passeasse em seu próprio quintal.

Eles chegam em um acampamento, parecia ter sido recentemente montado. Guerreiros de várias partes do mundo treinavam com suas espadas, outros ajudavam moldando armas e armaduras ou afiando flechas e lanças. Bandeiras negras com o símbolo de correntes partidas enfeitam o local.

Lá se mantinha uma grande tenda azulada. Eles arrastam Ky para dentro da tenda, o fazendo ajoelhas. O velho homem se senta em um trono de madeira, se espreguiçando confortavelmente e serve uma caneca de hidromel.

— Tão equilibrado, tão bom, se eu fosse um homem do sul beberia isso sem peso no coração — O velho experimenta a bebida antes de cuspir. — Mas eu não sou um homem do sul, tudo que sinto ao beber isso é o gosto do sangue de meus irmãos — Ele se levantou e foi na direção de seu machado cravado em uma mesa de carvalho. Ele o toma nas mãos e retorna sua atenção ao jovem. — Me diga, por que trai seus irmãos sendo espião?

— Eu não sei do que estão falando, eu venho de terras livres, perto da tribo dos Chono — Ky começa a ofegar. — Tudo que eu lembro é aqueles homens horríveis de pele de ferro arrancando o braço de minha Nair.

— Chono? Você disse Chono? — perguntou a garota. — Você é do Vale Frio e Quente?

— Não saberia dizer, não costumamos dar nomes para nossas terras — mencionou Ky.

— Meu povo passava por lá em nossas caminhadas antes de… — Ela suprimiu. — Não importa, como veio parar tão longe do norte?

— Eu não sei bem, acho que foi alguma magia de minha mestra — supôs. — Eu senti meu corpo sumir e quando eu vi estava naquele bosque.

O velho homem voltou ao seu assento, mantendo a expressão calma, mas severa. Ele bateu o cabo de seu machado no chão o usando como apoio enquanto se sentava.

— Uma bela história — comentou. — Daria um belo cântico infantil, mas eu não sou uma criança para acreditar em tudo que se diz.

— Eu juro pelos espíritos — Abaixou a cabeça até o chão. — Não sou um espião e muito menos sirvo os homens do sul! — expressou.

O homem o analisou com seus olhos enrugados, porém em excelente estado para sua idade. Um silêncio se instaura pela tenda. Kanala, embora se incline a acreditar no jovem, prepara sua lança, pronta para acatar qualquer ordem do velho homem.

— Muito bem — começou. — Vamos ficar de olho em você, mas por enquanto seja bem-vindo.

— Bem-vindo? — indagou. — Bem-vindo no quê?

— A Armada dos Não-Servos. — pronunciou. — Eu sou Baru, o Carrasco de Reis, se preza pela liberdade dos homens, me siga e lute ao meu lado — Estendeu suas mãos repleta de calos e cicatrizes. 

Suas palavras pegaram Ky de surpresa. Não esperava tal convite. Raciocinou por alguns minutos. Seu único objetivo era encontrar sua mestra, sabia que não poderia fazer isso sozinho, logo tomou sua decisão:

— Aceito — Apertou a mão de Baru.

A noite cai. Ky ajudava a afiar lanças. Suas mãos não eram tão habilidosas quanto as dos artesãos dali, mas toda ajuda era bem-vinda. Uma grande fogueira é feita em meio ao acampamento onde o javali recém-caçado seria preparado para o jantar. 

Uma movimentação incomum ocorre com a chegada de um batalhão dos Não-Servos. Alguns escravos recém-libertados são guiados até o ferreiro, onde seria tirado seus grilhões.

Homens e mulheres admiravam um belo homem, cabelos castanhos e cavanhaque pintado de vermelho. Seus olhos eram amarelos, vestia uma túnica negra e usava vários colares e aneis de ouro.

— Quem é aquele? — indagou para Kanala que esperava sua lança ser afiada.

— Tritan, ele é nosso único mago — contou. — Seu povo chama de servo espiritual, o dele chama de filhos da magia, mas a gente chama de mago para facilitar. 

Ele demonstra entender, apesar de ainda ter perguntas sobre aquele homem, porém guarda para si.

— Não nos apresentamos — comentou. — Sou Ky de Nair.

— Kanala de Baru. — disse de um jeito frio. — Antes que pergunte, não sou filha dele.

— Não ia perguntar isso, também não sou filho de minha Nair — Enfim afiou a lança por completo e a entregou para a Kanala.

A garota fica corada, contudo, logo pega a lança. Ky fica confuso e se atreve a perguntar:

— O que foi?

— Nada — Ela se afastou.

Ky permaneceu sem entender, mas ignorou e retornou ao seu trabalho. Começam a servir a carne de javali. O garoto se aproxima com timidez, lhe é entregue um prato de barro e ele se serve. Começa a comer num canto afastado. O mago encara Ky fixamente sem que ele notasse.

Ao cair da noite, todos vão dormir, exceto pelos vigias e Ky. O jovem se afasta do acampamento, molhando os pés no riacho. Ao som das cigarras, o garoto volta a treinar seus movimentos, sua respiração e sua concentração. Sua mente esvazia enquanto se movimenta com o vento.  

Sua concentração é interrompida pela fala suave do mago que o vigiava encostado em uma árvore:

— Tem que mover mais as pernas — Aconselhou Tritan comendo uma maçã — Embora não seja muito útil para você.

— O que quer dizer? — indagou.

— Você não tem ponte com os espíritos — revelou.

— Foi o que aquela mulher do sul disse, mas isso é impossível — disse nervoso.

— Era o que eu pensava até te ver hoje — Se aproximou. — Então te pergunto, o que diabos é você?

— Eu… — gaguejou. — Sou um humano, sou Ky de Nair.

— Seja o que for, não adianta tentar treinar — virou as costas. — Nunca será um mago, eu sinto muito.

Os olhos do garoto se enchem de desilusões, tentando se prender às palavras de Nair. Suas mãos tremem e seus joelhos se dobram. Ele golpeia as águas com frustração.

Afastada, acima de uma árvore, Kanala observa escondida. Por um momento pensa em ir consolá-lo, contudo, apenas se afasta sem querer se envolver.

No dia seguinte, Ky se mantinha silencioso, apenas fazendo seu trabalho. Ele entrega as flechas recém-preparadas para uma guerreira. A moça fica constrangida, porém, pega as flechas e se afasta. O garoto levanta a sobrancelha, sem entender novamente essa reação. Um homem de meia-idade que trabalhava ao seu lado riu.

— Essa é a segunda desde que você chegou aqui. Você se apaixona fácil — ironizou.

— Não entendo, estou fazendo algo errado?

— Você é do norte? — perguntou. — Você não deve saber — Ele gargalhou, antes de explicar. — No leste, é comum pedir uma garota em casamento entregando uma arma para ela.

Ky arregala os olhos, um pouco envergonhado.

— E o que eu deveria fazer? Eu tenho que entregar.

— Não entregue direto, só deixe no chão para elas pegarem — comentou. — Sabe, é o primeiro garoto do norte que eu conheço. — Ele fica pensativo. — Quando era escravo, pensava em fugir para lá, mas pelo visto Dracena chegou lá também.

— Por que vocês continuam aqui? — indagou. — Por que só não voltam para suas terras ou fujam?

— Alguns nasceram escravos, não têm para onde ir — ele explica. — Além disso, mesmo que fugimos, nossos irmãos e irmãs continuam acorrentados, por isso seguimos Baru.

Ky reflete as palavras do homem, pensando em Nair, agora cativa. Uma agonia toma conta de seu corpo junto com uma impotência nunca sentida.

— Ei — disse o homem. — Uma flecha de cada vez.

— O quê? 

— Uma flecha de cada vez e estamos mais perto de libertarmos a todos. — comentou. — Podemos não ser guerreiros, porém podemos ajudar.

— Tem razão — Respirou fundo. — Como se chama?

— Avan — Retornou a amarrar pontas de flechas a galhos. — Só Avan.

Gritos e pedidos de socorro são ouvidos perto da entrada do acampamento. Ambos correm até lá. Uma multidão se aglomerou, vendo um homem ferido, suas costas estavam repletas de flechas e seu corpo transbordava sangue fresco.

Baru é o primeiro a chegar, o pegando antes que ele caísse. Os olhos do homem estavam se apagando.

— Aguenta firme — implorou Baru.

— Soldados, no bosque… — Tossiu sangue. — Eles estão vindo… Os homens do Sul estão vindo.

A vida se esvai do homem. Murmúrios preocupados se espalham, Kanala olha com seriedade para Baru.

— Preparem as tropas — Ele carrega o corpo do homem em seus braços, o levando até sua tenda e o deixando em sua mesa. — Descanse em paz, irmão — Ele fecha os olhos do cadáver com os dedos e pega seu machado.

Kanala adentra a tenda determinada.

— Devemos ir logo, Tritan já tá reunindo as tropas. — avisou com excitação.

— Sim, logo irei — disse com seriedade. — Você ficará.

A determinação de Kanala se torna fúria, ela se aproxima a centímetros de Baru e o encara.

— Não vai me deixar de fora de novo! — declarou.

— Eu disse que não irá e assim será feito — Disse de forma dura, chegando até a entrada da tenda.

— O fogo não queima se você o sufocar! — Apertou os punhos.

— Fogo descontrolado só causa destruição — Virou as costas. — Eu voltarei, minha Kanala.

Ele sai da tenda com seu machado e mãos. Seus guerreiros todos estavam reunidos na frente do acampamento. Logo começam a marchar. Kanala os olha de longe ainda em fúria.

— Idiota — Suspirou. — Volta logo para casa, meu Baru — disse com uma voz mais calma.

Ky observava e sorria com nostalgia. Os ventos se intensificam, as folhas dançam pela floresta. Uma calmaria toma conta do acampamento. Horas se passam, todos imaginam que a batalha já teria começado.

Os vigias se mantinham em suas torres, pareciam mais desatentos devido ao silêncio. Flechas atingem o vigia da primeira torre, seu corpo cai e bate no chão com violência. Kanala estava na segunda torre e se virou para onde veio as flechas, para a parte de trás do acampamento.

Soldados de Dracena aparecem, seus corpos vão se tornando visíveis como camaleões se revelando. Um homem encapuzado e de sorriso repugnante se mantinha à frente, tatuagens de peixe brilhava em seu pescoço 

— Magia — Segurou firme sua lança. — É um ataque! — Berrou para todos ouvirem, descendo da torre.

Os artesãos e ferreiros que ali ficaram temeram, mas se armaram com o que tinham à disposição. Kanala se bota a frente. Ky estava confuso e pegou uma enxada para se defender.

O mago inimigo ri e os soldados se preparam erguendo seus escudos e indo na direção de Kanala, prontos para esmagar todos em seu caminho. Kanala gira sua lança e se mantém firme. Os outros se agrupam de perto, segurando armas que não sabem usar ou itens que usam em seus trabalhos que nada tem a ver com a guerra.

— Firme — Ordenou e começou a recitar o lema dos Não-Servos. — Somos fogo e pedra, Não se acorrenta fogo…

— Não se oprime a pedra! — Todos gritaram em uníssono.

Os berros, os simples trabalhadores correm em direção ao combate ou a morte certa. Liderados por Kanala.

Os dois exércitos colidem. A desvantagem é óbvia, porém os soldados caem, principalmente pelas mãos de Kanala. Ky se perdia em meio a batalha, os gritos de morte o atormentam.

Um soldado estava prestes a atacá-lo, Kanala arremessa sua lança, acertando no pescoço do guerreiro. O sangue jorra no rosto de Ky, o garoto cai para trás olhando para o soldado morto com a respiração irregular.

— Eu não... — pausou. — Eu não devia tá aqui.

 




Apoie a Novel Mania

Chega de anúncios irritantes, agora a Novel Mania será mantida exclusivamente pelos leitores, ou seja, sem anúncios ou assinaturas pagas. Para continuarmos online e sem interrupções, precisamos do seu apoio! Sua contribuição nos ajuda a manter a qualidade e incentivar a equipe a continuar trazendos mais conteúdos.

Novas traduções

Novels originais

Experiência sem anúncios

Doar agora