Volume 1 – Arco 1
Capítulo 9: Não são monstros
— O que fazemos com ele, maninha?
— Milene não tem tanta certeza… — disse ela, coçando a nuca — eles não queriam matar a amiga do papai, então não seria meio cruel dar o troco enquanto estão apagados?
Honestamente, Mirele estava mais preocupada com a condição de Vaia — ainda presa e amarrada ao mastro — não sabia se era seguro soltá-la, portanto, decidiu deixar a mulher ali.
— Bom, vou levar esse cara para os aposentos do navio e ficar de olho no monstro… Papai deve ter dado cabo dos outros dois, talvez até volte com a bebê que ele comentou.
— Ei… e-er — a bruxa estendeu o braço para a irmã — Milene agradece por ter me salvado, e… Estou orgulhosa de você, mesmo que não tenha misticismo.
— Milene… não fala desse jeito. Sempre foi assim, e eu tenho que me virar nessas horas — Mirele segurou as mãos de Milene. — Além disso, eu não sei o que eu faria sem você e papai.
…
— Só vê se não vai tão confiante na próxima luta, viu? — finalizou Mirele antes de rir em sussurros.
Milene respondeu com alguns socos leves nas costas da irmã enquanto bufava de raiva.
Mirele então puxou Lâmina, pelos braços, enquanto descia pelas escadas abertas do convés.
A bruxa ficou observando Vaia, ainda um pouco arrepiada pela incapacitação que sofreu de forma tão instantânea. Mais curiosa do que nunca, Milene contemplou quais seriam as origens de tanto poder.
Até que em determinado instante, ela sentiu outra Aura se aproximando do navio. Ela entrou em postura de luta e ativou os pentagramas de bruxo em suas mãos.
— Espera! Espera! Eu venho em paz — gritou Talyra enquanto mantinha os dois braços ocupados com as plataformas telecinéticas que carregavam Cálix e Heinrich, além de segurar a bebê.
A maga subiu pelo mastro derrubado por Lâmina mais cedo, mantendo sua Aura estável para não representar nenhum tipo de ameaça.
Por outro lado, Milene estava agitada, entrou em choque e soltou um suspiro ao ver Heinrich apagado e flutuando. Ela tentava se aproximar dele, sua Aura estava fraca…
Zzz…
— Milene suspeita que isso é magia de sono.
— Certa a resposta! — Talyra sorriu nervosamente para a bruxa — Olha, eu não tenho vontade de lutar e me arrebentar todinha. Vim apenas descansar um pouquinho.
— O espadachim de cabelos vermelhos comentou para Milene que vocês não queriam matar o alvo das cartas.
A maioria dos envelopes brilhavam em um vermelho fraco, com algumas esfarelando-se e sendo levadas pelos ventos de uma forma estranhamente sincronizada.
— Deixe o pai de Milene, pode levar seu amigo para os aposentos descendo aquelas escadas.
— Ah, ele é seu pai? Vocês dois não se parecem nadinha…
Milene ficou calada, encarando Talyra. Ela sorria com uma das sobrancelhas erguidas, parecia ser uma dúvida genuína.
Ela sabia que era adotada, mas se preocupava de uma menina de mesma idade que a sua não soubesse tanto a respeito, ou que nem se importasse.
— Seu pai se parece com você?
Talyra percebeu a mudança de tom na voz da bruxa, ficou envergonhada e começou a enrolar os fios de cabelo nos próprios dedos.
— E-Eu vou levar o Cálix lá para baixo… Desculpa.
A mudança do clima pesou o ar por um instante, tudo que se ouvia era o ranger da madeira e os passos da maga descendo às camas da tripulação.
Sua mente mostrava imagens turvas, sombras desconhecidas e momentos que nunca aconteceram. Tentava se lembrar de alguma coisa, mas era interrompido pelo próprio movimento que sentia.
Era o navio balançando.
Lâmina estava familiarizado com o interior dos navios de Heinrich, mas esse era maior, o que o levou a crer que fosse a nau-capitânia em que apagou.
Seus olhos se abriram lentamente e sua visão desborrou: Em sua esquerda, Talyra sentava-se numa cadeira velha sob uma das velas do navio. Ao se virar para o outro lado, viu Cálix olhando diretamente para seu corpo.
Lâmina tremeu pelo susto, mas ao olhar para seu corpo, percebeu que estava coberto por sua capa preta, e, sobre ela, estava a bebê, que engatinhou até seu rosto.
Ela estava sorridente, fazendo alguns barulhos de bebê como se tentasse se comunicar. Contudo, no caminho, acabou pressionando o joelho contra a ferida no peito de Lâmina.
— Urgh! Maldita…
— Ei, não fale assim com ela. Vai dar um mau exemplo com essas palavras. — disse Cálix enquanto pegava a bebê de cima do espadachim. — Como cê tá?
— O quê está acontecendo? Eles decidiram não nos matar?
— Ao que parece nós todos estamos aqui, bom, exceto por Vaia…
— Se me recordo bem, ela está presa ao mastro. — Lâmina pigarreou. — Eu não sei o que aconteceu com ela…
— Esquenta não, campeão. Se há alguém para agradecermos é a Talyra — Cálix apontou com os olhos para Talyra, que dormia pacificamente — Ela me disse que conversou com as filhas de Heinrich. Disseram para que ficássemos aqui.
— Mas, Vaia, nós temos que — Lâmina tentou se levantar, mas a dor dos ferimentos o fizeram soltar um gemido, antes de cair no travesseiro novamente.
Os grunhidos do espadachim despertaram Talyra do sono, ela balança a cabeça para tentar acelerar a circulação e acordar.
— Lâmina! Céus… pare com isso. O sangramento pode piorar! — disse a maga, indo até a borda da cama.
— Ele está péssimo, assim?
— Bem, ele levou um corte perto de onde fica o coração… deixo você adivinhar.
— Caraca, ele tá ficando mais pálido do que já é. — Cálix colocou a mão em sua testa — E ele tá… esquentando?
Ele continuou:
— Dona Vaia não disse que tinha conhecimentos médicos? Precisamos dela para ajudar ele!
— Cálix… eu não sei se soltar ela pode ser uma boa ideia. Você não sabe o que aconteceu, né?
— Sei que suspeitamos que ela é um monstro, mas não temos muitas escolhas, Lily.
Talyra mordeu os lábios e respirou fundo, ela não sentia mais aquela energia ameaçadora que explodiu no navio. Mas sabia que algo tão poderoso e asqueroso quanto um demônio poderia facilmente manipular os outros — é parte de sua natureza, afinal.
— Pode ficar perigoso, vamos deixar a bebê aqui?
— Vai ser um bate e volta.
Relutante em deixar a criança na cama ao lado. Talyra acabou por colocá-la debaixo das cobertas e foi junto de Cálix para as escadas que subiam para o convés. Ambos avisaram Lâmina de que retornariam em breve.
Estava de noite, e apenas as luminárias nas bordas do navio permitiam que parte do convés fosse visível naquele forte tom alaranjado que tremia com os movimentos do barco e os ventos do mar.
A nau-capitânia de Heinrich tinha dois mastros principais. O mastro no qual Vaia estaria presa era o mais próximo às escadas que subiam ao leme, sobre os aposentos de Heinrich.
Tanto Talyra quanto Cálix acreditavam que o capitão estava com suas filhas no momento. Uma oportunidade perfeita para libertar sua colega.
A maga ficou atenta para a Aura de qualquer indivíduo próximo que pudesse representar uma ameaça. Ela sentiu apenas as vibrações e movimentos fracos da Aura de quem acreditava ser Vaia, ainda presa numa vela branca, amarrada pela armadilha de Mirele.
Ainda tinha aquele ar misterioso que Talyra viu durante o despertar da “Vaia monstruosa”, porém, agora estava muito mais fraco. Tinha uma coloração carmesim, e ao invés de ser um fogo como normalmente é, parecia uma espécie de líquido que derramava e pingava pelo chão de madeira.
— O que você diz, especialista?
— Não representa nenhum tipo de ameaça, mas… é certamente algo que nunca vi antes — respondeu Talyra, ansiosa
— Bem, não podemos perder tempo… — Cálix apertou o passo em direção ao mastro — Ou salvamos ela, ou podemos perder um indivíduo vital para uma missão de escolta.
— Vital? Pelo que me contaram ele só apanhou até agora…
Cálix parou por um momento. Estava prestes a escalar a estrutura de madeira para remover as armadilhas, mas decidiu parar para contestar a afirmação da jovem.
Durante a batalha contra o Wendigo, Cálix sentiu algo durante a crise de Lâmina… Desespero. Ele lutava contra amarras impostas por si ao que parecia. Ele não se importava de fazer piadas com o fato dele não usar a espada ou de não conseguir controlar a própria Aura.
Mas Cálix sabia que ele era uma boa pessoa. E que não tomava essas atitudes egoístas por mal.
“Não foi uma observação que tive sozinho, entretanto…” pensou Cálix. Ele se lembrou do seu dever e de seu ofício como clérigo do amor. Sempre ficava surpreso com a versatilidade de poder ler as pessoas daquela maneira.
— Assim, ele nem saca a espada, e se fizer, ela quebra… — prosseguiu a maga.
Antes que Cálix pudesse responder, uma voz grossa familiar ressoou das sombras do convés.
Heinrich se aproximou de uma das lamparinas. E mexeu em uma pequena manivela que manipulava a força da chama para aumentá-la.
— Eu te garanto que ele sabe o que faz.
Talyra foi pega desprevenida e tomou um susto pela presença repentina do capitão. Ler a Aura dele era mais difícil do que o normal.
— Eu não sei exatamente de onde esse tal de Lâmina Gélida veio, ele sempre desviava o assunto. A princípio eu não confiava nele. Nos conhecemos num bar e ele nunca sequer deixou que tocassem em sua espada, também nunca a sacou em brigas ou duelos lá em Arquoia
Heinrich pegou um barril que estava solto e sentou sobre ele, antes de continuar em um tom suave e calmo:
— Talvez seja pela tal “honra” que ele parece servir… Mas eu acredito que tem uma razão mais profunda aí. Eu comentei que não houve ataques durante a viagem para Fajilla. Contudo, Milene me falou que era ele quem caçava os monstros marinhos durante a noite.
Cálix decidiu ficar em silêncio durante todo esse tempo, escutar o que Heinrich falava apoiava sua crença em Lâmina, e era assim que ele preferia o rumo da conversa.
— Heinrich, vejo que decidiu não nos matar…
— Minhas filhas esclareceram a situação, elas estão dormindo agora. Mas eu sabia que vocês não eram mal-intencionados.
— Nem vai nos impedir de soltar Vaia?
— Pouco me importa o estado dela quando for solta. Se Milene e Mirele conseguiram prendê-la, por que eu não conseguiria? — Heinrich se levantou do barril — Deixe-me ajudar vocês…
O capitão tomou frente para o mastro, e, com seu sabre negro, fez uma leve perfuração na vela, tomando cuidado para não ferir Vaia.
O tecido logo se transformou em centenas de pétalas de rosa que se desfizeram no vento oceânico, partindo para a imensidão do mar sombrio, apenas iluminado pela leve luz da Lua.
O corpo de Vaia caiu no chão, no mesmo estado em que foi presa: roupas queimadas pelos fios bruxos de Milene; E o manto que cobria todo seu corpo — agora em trapos.
Todas as características notáveis de Vaia como seus olhos vermelhos e caninos compridos agora eram sobrepostos por um enorme par de chifres demoníacos que saíam de sua testa.
Os três ficaram horrorizados com a visão, Vaia não se mexeu. Depois que o som do impacto passou, Cálix deu um passo à frente e se agachou.
Por ser um clérigo do amor, ele tinha uma certa afinidade para ler as emoções das pessoas, e isso com o auxílio de seu Deus, mas nada poderia preparar Cálix emocionalmente para o que ele estava ouvindo.
Leves suspiros e choros de Vaia, que estava agora tremendo. Ela não parecia ter despertado agora, estava presa ao mastro apenas com seus pensamentos. Talvez pudesse ter se libertado a hora que quisesse, mas de que adiantaria?
Ela só adiaria o inevitável. A revelação concreta para aquelas pessoas de quem ela realmente era.
Um monstro.
Uma vampira.
Um demônio…
Heinrich não sabia como reagir à situação.
Talyra estava paralisada, em choque. Mas, observou a Aura do colega ao lado, e entendeu exatamente o que se passava. A maga respirou fundo e se acalmou, prosseguindo junto a ele.
Cálix e Talyra… estenderam as suas mãos para Vaia.
Em meio aos soluços e fungadas da triste moça. Vaia olhou para cima, apenas para ver aquele clérigo brincalhão e a garotinha avoada. Eles implicavam para que ela aceitasse a ajuda.
A mulher estendeu a mão de volta, mas hesitou.
Vaia não queria ser vista daquela forma. Mesmo que, pela primeira vez, alguém tenha tentado a ajudar, ainda mais sob estas condições. Não havia interesse naqueles olhares.
Preocupação genuína em Cálix e inocência em Talyra.
Todas aquelas sensações positivas vindo de seus companheiros culminou no mesmo sentimento que teve ao pegar a bebê nos braços.
União.
Ela não estava sendo excluída naquele momento.
Vaia usou a pouca força que tinha para se levantar, ainda envergonhada, ela agarrou nas mãos de ambos os jovens.
— Me… Me desculpem! — Vaia abraçou os dois pelo pescoço com os braços. Apertando bem forte.
— Aiii…! Agradecemos dona Vaia, mas Lâmina está muito ferido e você disse saber de medicina… — disse Talyra com a voz rouca.
— E-Espera, vocês só me soltaram por isso?! — respondeu ela, em um tom melancólico.
— Não — Heinrich interveio — Eles tinham plena noção dos riscos de soltar você, e fizeram mesmo assim porque confiam em você… Não me leve a mal, mas, ninguém aqui sabe como você afirma saber.
— É verdade! Por favor, precisamos salvar o grandalhão!
Vaia limpou as lágrimas com as mãos e soltou os jovens de seu abraço.
“Monstros geralmente… não são… bonitos…” Vaia se lembrou do elogio discreto passado pelo espadachim, e retomou sua postura usando aquelas palavras e as ações dos jovens como seu único combustível.
— Tá certo, a bebê está bem?
— Deixamos ela com Lâmina lá embaixo.
Antes dos três conseguirem prosseguir para os aposentos sob o convés, Heinrich lhes interrompeu para falar uma última coisa:
— Eu ouvi que vocês não queriam matar a Jas, por isso não ordenei que matassem vocês durante o sono… Apesar de tudo o que ela fez, ainda é minha amiga, e é meu dever ajudá-la. — Heinrich se virou para seus aposentos, antes de finalizar. — Agora são vocês e ela.
Os jovens pararam para ouvir o breve aviso do capitão, antes de partirem em direção às escadas do convés. Ao observarem o canto onde estava Lâmina e a bebê eles não conseguiram conter o choque e surpresa.
Jasmyne estava sentada na cama ao lado da Lâmina — apagado — ela amamentava a bebê enquanto observava a chegada dos três com os olhos cansados e um sorriso sarcástico estampado em seu belo rosto.
— Queriam me ver?
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