Volume 1 – Arco 1
Capítulo 10: Todos os problemas num só navio
O choque era indisfarçável. Talyra e Cálix tinham os dedos formigando para agir; invocar uma arma ou sacar alguma magia. Estavam perplexos com a visão.
A assassina que massacrou todo o vilarejo em que a bebê nasceu; que, por ser uma Xamã, podia carregar o peso de muitas outras milhares de mortes. Ela estava parada diante dos três.
Segurava em seus braços e amamentava o bem mais precioso para aqueles jovens, a única coisa que juraram proteger, em união.
Por mais que Talyra tentasse forçar uma visão racional da situação, ela acabava tendo a mesma repulsa que os outros dois ao seu lado, afinal, ela presenciou a pilha de corpos da mesma forma que todos eles.
— Afastem-se! Ela pode usar algum truque… — alertou Cálix, colocando o braço na frente das garotas.
Talyra tentou observar com mais calma, a Aura de Jasmyne não crescia, nem se modificou, ela estava calma, um sinal claro de que ela não estava preparada para um combate. Nenhuma flutuação irregular das bordas, nem pulsação anormal daquela energia mística.
Talyra colocou a mão sobre o ombro de Cálix e deu um passo adiante. Sem tirar os olhos de Jasmyne guardou sua varinha dentro do casaco que usava.
— Lâmina… o que você fez com ele? Você o matou?
— Deve ser o caso, e agora está apenas nos provocando…
— Eu não o matei — Jasmyne retrucou com uma força decisiva na voz — Não mato sem razão… E, sobre a provocação: esta criança não se alimenta há horas, vocês deveriam estar me agradecendo.
A Xamã se levantou, virou-se para a cama e levantou parte do seu vestido após colocar a bebê de volta na cama.
— Mentirosa! — disse Vaia num tom trêmulo pelo choro mais cedo — E sobre todas aquelas pessoas no vilarejo? Havia um motivo para tantas mortes?!
— Vocês teriam feito o mesmo no meu lugar…
— Eu nunca estaria em seu lugar, pra começo de conversa — respondeu Cálix, andando na direção dela.
— Hmpf! — bufou a Xamã — A minha chama de conflito está apagada há um tempo. Prometi à Heinrich que não causaria problemas na viagem de volta, então, se querem falar comigo, recomendo que tomem essas duas semanas como oportunidades únicas.
Jasmyne deu uns tapas na própria saia e caminhou para fora dos alojamentos, ignorando a presença dos jovens por completo.
Talyra ainda lia a Aura de Jasmyne, notando alguns traços de espinhos se formando da fumaça, talvez algo a preocupava no fundo, mas ela o escondia de forma sutil.
Cálix tentava identificar as emoções vindas daquelas palavras, recebia sinais de seu Deus como leves sons que sibilavam pelas entradas de madeira do navio… Amargura… Rancor… não deles, mas de si mesma.
Vaia tinha instintos afiados, e sentia apenas o cheiro do suor de Jasmyne e ouvia seus batimentos cardíacos, ela parecia nervosa… temerosa.
Os jovens deixaram a mulher passar, quando seus passos se distanciaram o bastante, Vaia pediu para que Talyra e Cálix fossem até Lâmina para ver sua situação. A jovem olhou para o canto do cômodo, onde localizou suas malas, e nelas, começou a procurar por seus suprimentos médicos.
Cálix colocou a mão na testa de Lâmina, e rapidamente a removeu. A testa do espadachim estava muito quente, tanto que deu uma leve queimadura na mão de Cálix.
— Caramba! Que tipo de febre é essa? Parece que ele tá bem, Lily, é só doente…
O corpo de Lâmina estar quente era um péssimo sinal, já que o comum é ele estar frio.
— Com licença — Vaia interveio carregando uma maleta igual a todas as outras. Abriu a do lado da cama e tirou um par de luvas de borracha.
Cálix imediatamente notou que só havia um par dentro da mala, preocupado, ele indagou a colega:
— Isso não é meio insalubre?
— Eu sempre as limpo numa mistura antibacteriana mística. Não me pergunte como eu sei, eu só… sei.
Após vestir ambas as luvas, Vaia pediu para que os dois jovens se afastassem — e que não olhassem também, afinal, não devia ser uma visão muito confortável.
Talyra pegou a bebê e foi para longe deles junto de Cálix.
Vaia retirou a capa de Lâmina sobre seu corpo, ele ainda estava desacordado, portanto, a moça decidiu dar um andamento rápido.
Abrindo o casaco do espadachim, Vaia notou que ele ainda usava um suéter cinza de lã, manchado no peitoral. Parecia que algo o perfurou completamente por trás, não acertou o coração, felizmente.
Vaia olhou para o ombro de Lâmina, vendo também um enorme e profundo corte, ainda escorrendo sangue por sua roupa.
A jovem não conseguia sentir nada além de decepção; ao inspecionar o corte mais afundo, notou alguns leves traços de um veneno terrivelmente familiar.
Ela era a causa daquele ferimento, provavelmente durante seu descontrole.
Vaia não conseguia se perdoar por ter feito aquilo, mesmo que não fosse realmente “ela mesma”. Reminiscente da conversa que teve com Lâmina, de ser elogiada e aceita, tanto por ele quanto pelos outros dois jovens.
Ela não poderia deixá-lo morrer ali.
Agarrando alguns frascos da maleta, Vaia usa um pilão para amassar os conteúdos de ácidos, líquidos e ervas juntos para a formação de substâncias impossíveis de se identificar. De alguma forma, todos aqueles conhecimentos estavam impregnados em sua cabeça, não por memórias, mas por imagens fixas, como se tivesse visto imagens de receitas e de processos milhares de vezes, como se tivesse treinado e errado… até acertar.
Ela levantou o suéter de Lâmina, seu peitoral e abdômen todos sujos de sangue coagulado, sentiu o cheiro metálico… quase enjoativo, mas de certa forma… viciante.
Vaia não poderia deixar seus instintos tomarem conta de seu corpo novamente, precisava se concentrar, e isso para salvar o jovem. Por sorte, também carregava um prendedor de roupa que trouxe junto de si para esta ocasião.
Ela pressionou a peça de madeira e ferro no nariz para que não conseguisse mais inalar o odor do sangue suculento de Aura de Lâmina — outro fator que atraía os instintos monstruosos de Vaia.
Realizou uma sutura simples no peito e limpou a área com um pano molhado, agora era possível ver a pele pálida do espadachim por baixo das grossas camadas de roupas.
Realizou a injeção das substâncias que produzia nas áreas onde faria outros remendos, sempre limpando logo após. Vaia não sabia como médicos ou cirurgiões de verdade realizavam esses processos, mas nunca deu muita importância para os meios, se Lâmina conseguisse se recuperar dessa, ela estaria satisfeita.
Vaia não era perfeita, já deixou algumas pessoas morrerem em suas mãos quando trabalhou por um tempo como curandeira anônima pelo continente. Ela sempre sentiu o peso dessas mortes.
Por isso que, ao encarar Jasmyne frente a frente, a jovem não conseguia nutrir um pingo de remorso por aquela alma suja, contudo, quantas vidas será que Vaia não havia retirado enquanto estava descontrolada? Será que poderia culpar a Xamã, quando — mesmo sem saber — poderia ser uma assassina tanto quanto ela?
A experiência de Vaia era o suficiente para ter esses devaneios na própria mente enquanto realiza uma tarefa tão delicada quanto a do momento.
Ela levantou a cabeça para ver onde estaria Cálix, Talyra e a bebê.
Estavam do outro lado do alojamento, em outra cama, Talyra parecia tentar fazer uma leitura de Aura na bebê, mas sem sucesso.
Pessoas tão estranhas, mas tão familiares. Vaia nunca havia se sentido tão enturmada quanto agora. Mesmo com a bebê não tendo praticamente nenhum tipo de força mística — ainda menos que um desconexo — Vaia não podia deixar de notar uma sutil mudança no ar quando ela estava por perto.
Seria uma das propriedades de um alvo de escolta d’O Círculo?
Seria apenas seu instinto que a guiava para proteger um ser indefeso?
Ou algo diferente…?
Após finalizar as suturas na perfuração das costas de Lâmina. Vaia havia garantido estabilidade temporária para a saúde do espadachim.
As mãos de Vaia tremeram, ela hesitou por um momento, ao tentar pegar o suéter de Lâmina com sangue seco.
“Não deve fazer mal…”
— Ei, vejam se conseguem achar uma troca de roupa pro Lâmina! — Exclamou Vaia para os dois jovens que se encontravam próximos às malas.
Cálix rapidamente atendeu ao pedido, trazendo outro suéter cinza que estava numa mala quebrada.
— Caramba! Ele é trincado demais! — Cálix ficou de queixo caído ao ver o corpo de Lâmina.
Vaia nem havia notado, talvez estivesse muito focada nos próprios pensamentos, no sangue e nos ferimentos. O porte de Lâmina não passava de uma trivialidade. Mas, parando pra olhar…
— Tem razão… — concordou Vaia com um sorriso de canto de boca.
— Tô falando sério. Coloca logo essa blusa brega antes que eu morra de inveja! — brincou Cálix
A única pessoa que era mais alta do que Lâmina era Jasmyne. Com Cálix tendo pouco mais de um metro e sessenta, era previsível que ele ficasse um pouco nervoso diante daquela Xamã gigante. Apesar de Jasmyne não ter características corporais que um homem desejaria.
— Certo, me ajude a levantar os braços dele.
Com um bom esforço, Cálix e Vaia juntos conseguiram vestir Lâmina novamente. Para servir de toque final, o clérigo pegou o chapéu do espadachim e o colocou ao contrário na cabeça dele, como uma forma de pregar uma peça quando acordasse.
— Não tinha nada mais maléfico para fazer, não? — disse Vaia
Talyra se aproximou dos três segurando a bebê nos braços.
— Boas notícias, a bebê não foi envenenada!
— Espera, por que ela estaria envenenada?
— Sei lá! Xamanismo é a força mística na qual eu tive menos contato, também é a mais rara. Vai que os fluidos corporais de quem faz um pacto com o senhor da morte podem estar impuros.
— Senhor… da morte? — perguntou Vaia, escondendo discretamente o suéter sujo dentro de sua maleta, enquanto guarda os suprimentos médicos.
— Pelo que estudei, faz parte do primeiro estágio do xamanismo. Uma vez que você vincula o pertencimento de sua alma e Aura para Thuzaryn, é possível seguir o caminho dos mortos e do outro lado. — Talyra sentou-se na cama ao lado — Por isso a Xamã que está entre nós tem o sobrenome Thuzaryn, como dizia a carta de missão d’O Círculo.
— Ele é um deus?
— Não exatamente… — disse Cálix, cruzando os braços — pessoas que servem ou fazem pactos com deuses acabam tendo a força mística da Teurgia, como é o meu caso.
— Quase todas as forças místicas conhecidas acabam tendo esse princípio de dependência com uma entidade maior… Bruxaria, Xamanismo, Teurgia… — continuou.
— Mas e você, Talyra? — indagou Vaia, ajoelhada com as mãos sobre as coxas.
Talyra não conseguiu conter as risadas e o olhar arrogante, começou a coçar o nariz enquanto dizia num tom esnobe:
— Ah, a Magia é a exceção da regra. Somos donos de nosso próprio destino.
— Curiosamente, eu vi pouquíssimos magos durante minhas andanças… mas nunca ouvi falar de uma escola de magos, Lily.
Talyra ponderou por um momento, mas chegou à conclusão de que não se importava em revelar a verdade.
— Magos geralmente devem proteger essa informação por sigilo ou contrato, mas, meu pai sempre disse que eu era meio rebelde então… Como devem, ou não, saber, magos são encontrados com mais facilidade na posição de conselheiros, ou professores em academias e escolas por todo o continente. Eles são enviados após se graduarem em escolas de magos, de uma terra bem distante.
— É por isso que você chamou aqui de “Velho Mundo?”
— Mhm!
Isso explicava muitas coisas, principalmente a peculiaridade que era o misticismo de Talyra. Não é à toa que todos aqueles camponeses ficaram tão surpresos com o show que a maga fez em Fajilla.
Cálix percebia o quão calma Talyra parecia agora em comparação à quando estavam na praça da cidade. A maga ainda parecia extremamente nervosa e aflita mesmo após os infinitos elogios que recebeu no espetáculo.
O clérigo não conseguiu esconder um sorriso sincero e caloroso de seu rosto.
— Mas então, Vaia, quanto tempo até Lâmina se recuperar disso?
— Não sei dizer ao certo… Misticismo e Aura bruta influenciam muito nos valores de recuperação de qualquer pessoa. — disse ela se levantando e pegando sua maleta — Chuto entre 1 ou duas semanas… no total seria até chegarmos em Arquoia. Mas eu precisaria dos números da concentração de misticismo no corpo dele para um resultado mais exato…
Duas palavras-chave no discurso de Vaia atiçaram Talyra, antes de dormir ao trazer Cálix para os alojamentos, ela passou um tempo lendo a Aura de Lâmina mais a fundo. Tentava estabelecer algum tipo de lógica com a bebê não possuindo nenhuma Aura e o espadachim tendo uma assustadora.
— Se a fórmula que eu imagino… dá um índice de mais de quinhentos!
— Você é bem espertinha, não é? Mas acho que você deixou um “zero” passar. Um índice de 500 é muito alto, isso daria 8 horas de recuperação.
— Podem usar palavras de gente, por favor? — intrometeu-se Cálix — Por falar nisso, agora estou curioso, qual é meu índice?
— Algo entre 15 e 24.
…
Cálix corou ao receber a resposta, e não conseguiu impedir um “Hã?!” de sair de sua boca quando Talyra fala um número tão baixo com tanta firmeza.
Vaia caiu na gargalhada, não conseguiu se conter, tanto com a informação quanto pelo rosto boquiaberto do clérigo, que não tinha onde enfiar a cara.
Em meio aos risos da moça, ouviu-se murmúrios suaves — a bebê, que até então dormia sossegada nos braços de Talyra, acorda aos resmungos, como se reclamasse do barulho.
Os três pararam e começaram a encarar ela, o cômodo se silenciou como se as ondas quisessem ouvi-la.
Mais uma vez, aquele senso superficial de familiaridade e calor permeou pelos corpos dos jovens. Vaia secou as lágrimas que restavam em seu rosto pela tristeza de mais cedo. Enquanto Talyra acariciava o rosto da criança, Cálix — ainda mal-humorado — disse:
— Ok, Talyra, você já falou besteiras demais por hoje.
— Essa aqui já nasceu há tão pouco tempo, mas já viu tanta coisa…
— Vamos deixar Lâmina e a bebê dormirem, se ele acordar provavelmente vai querer se levantar…
Os três se entreolharam mais uma vez e colocaram a menina — enrolada em cobertores — próxima ao espadachim, decidindo deixar a conversa morrer naquele momento agradável, e guardar as preocupações para o dia seguinte.
— Como foi a conversa com eles?
— Sequer foi uma conversa… eles estava se borrando de medo de mim.
— Jas… — Heinrich se aproximou da mulher após ela fechar a porta de sua cabine e a segurou nos braços — Talvez você devesse mostrar a eles esse lado que mostra para mim. O povo de Fajilla sabia quem você era, por isso se esconderam. Agora, aqueles jovens nem te conhecem.
— Eles sabem que eu já matei diversas pessoas, e que sou capaz de fazer isso de novo…
Jasmyne fechou o pulso diante do peito, forçando os lábios num semblante angustiado pela própria atitude. Ela não sabia se tinha a coragem de revelar para Heinrich sua verdadeira natureza, revelar a verdadeira condição de Zaltan…
— Jas, por que está tão nervosa? O que houve?
Jasmyne encarou o capitão com os olhos marejados e um sorriso forçado, que tremia junto de seu corpo quanto mais ela forçava.
Em meio a um impulso emotivo, Jasmyne abraçou Heinrich, mais forte do que na noite anterior, e disse, com uma voz desafinada:
— Me perdoe, Heinrich… mas eu sou má… E o pequeno Zaltan vai me matar por isso. — “É isso que eu mereço, afinal.”
Talvez seja isso que falte para Jasmyne, ela ouviu as risadas de Vaia vindas do outro lado do navio. Cerrava os punhos internamente e não conseguia se conter ao ver a relação que aqueles jovens estabeleceram em tão pouco tempo.
Seria mesmo por conta da bebê que “está degradando os mundos”?
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