Intangível Brasileira

Autor(a): Richard P. S.


Volume 1

Capítulo 6: O caminho de volta

Conforme se aproximavam do posto de guarda, a luz intensa do local quebrou a penumbra que os envolvia. Caelinus acelerou o passo, enquanto ajustava o peso de Phong em seus braços.

— Quase lá, Phong. Aguenta firme — murmurou, sem esperar resposta, apenas para manter-se em movimento.

Kilian adiantou-se, enquanto acenava com urgência para os guardas que estavam de vigia.

— Ajuda aqui! Nosso amigo tá ferido!

Um dos soldados se aproximou com passos rápidos. Ele olhou para os ferimentos de Phong, enquanto sua mão foi diretamente para o pau de fogo primo preso em sua cintura, como um reflexo.

— O que aconteceu? Como ele se feriu assim?

Antes que Caelinus pudesse responder, uma voz cortante interveio.

— São paladinos, soldado. Não é necessário seguir protocolo com eles. Ajude logo a carregar o ferido!

— Sim senhor.

O soldado acenou e chamou mais dois guardas. Em pouco tempo, Phong foi cuidadosamente colocado em uma maca improvisada. Caelinus respirou fundo, e seus ombros finalmente relaxaram ao ver o desfecho daquilo tudo.

— Ele vai receber ajuda agora — disse o paladino para Kilian com um olhar firme, enquanto eles entravam no posto de guarda.

O local era uma construção robusta e movimentado. Soldados treinavam no pátio, enquanto as bandeiras dos Beyaras tremulavam sob a brisa do deserto. Caelinus e Kilian seguiram os guardas para dentro. Eles atravessaram corredores iluminados por tochas, enquanto o sargento liderava o caminho até a enfermaria.

Lá dentro, o ambiente era mais calmo. Phong já estava deitado em uma das camas, com um conjurador debruçado sobre ele, enquanto conjurava encantamentos através da luz de suas mãos.

— Ele vai ficar bem? — Caelinus perguntou, depois de se aproximar da cama, a voz tensa.

— Estou estabilizando os ferimentos. Ele vai precisar de descanso agora — respondeu o conjurador. — O que aconteceu com ele? São muitos ferimentos, nunca vi alguém sobreviver a tantos cortes e perfurações.

Kilian e Caelinus trocaram olhares rápidos.

— Nós o encontramos assim — respondeu Caelinus, enquanto voltou os olhos para Phong.

— É, já tava machucado quando achamos ele — completou Kilian.

O conjurador esboçou um sorriso enquanto ajeitava os curativos. — O que importa agora é que ele vai ficar bem.

Kilian soltou um longo suspiro e colocou o peitoral da armadura de Phong sobre uma mesa próxima. Caelinus, de pé ao lado da cama, mantinha o olhar fixo em Phong, os lábios cerrados.

— Não se preocupem, vamos ficar com ele. — disse o sargento, antes de colocar uma mão firme no ombro de Caelinus. — Se precisarem vocês podem passar a noite aqui. O distrito foi evacuado, e pode ser perigoso lá fora com esses portais surgindo por todo lado.

Caelinus balançou a cabeça enquanto se levantava.

— Agradecemos a oferta, mas temos uma pessoa doente em casa que precisa de cuidados. Não podemos deixá-la sozinha por muito tempo.

O sargento assentiu, as rugas em sua testa se aprofundaram em um gesto de compreensão.

— Se precisarem de escolta ou ajuda no caminho, estamos à disposição. Cuidado com esses portais. Estão aparecendo em todo lugar hoje.

Caelinus esboçou um leve sorriso.

— Não se preocupe — disse, com uma leve risada. — Já atingimos nossa cota de problemas por hoje.

Com um último olhar para Phong, Caelinus e Kilian deixaram a enfermaria. Ao passarem pelos portões do posto, a brisa fria e noturna do deserto os envolveu mais uma vez.

— Vamos, Kilian. Precisamos chegar lá de uma vez — disse Caelinus.

Eles continuaram pelas ruas desertas, a noite os envolvia em um manto de escuridão. Caelinus conjurou uma magia, e uma luz suave na palma de sua mão, suficiente para iluminar o caminho à frente.

— Caramba Caelinus, olha isso. — disse Kilian enquanto apontava para a desolação do distrito.

— Sim, parece que todo mundo teve que sair correndo daqui. — disse o paladino ao ver casas abandonadas ainda abertas.

— Pois é, hoje você falou dela.

Caelinus o lançou um breve olhar hesitante, mas não respondeu imediatamente.

— Por que vocês nunca falam sobre minha mãe? — Kilian continuou, o tom carregado de frustração. — Por que você e Melangie sempre evitam o assunto?

O som dos passos de Caelinus ficou mais lento por um instante. Ele olhou para a rua à frente, como se as palavras pesassem demais para serem ditas de imediato. Após um suspiro, decidiu responder.

— Porque isso dói, em todos nós — respondeu finalmente, a voz arrastada, cada palavra carregada de algo não dito.

Kilian parou, e apertou os punhos. — E pra mim não? Como vocês dois acham que eu me sinto, com vocês fingindo que minha mãe nunca existiu?

Caelinus virou-se, o rosto endurecido pela seriedade da situação. — Ninguém está fingindo, Kilian! — sua voz saiu firme, mas logo amoleceu. — Nós só... tentamos seguir em frente.

— E por que então é tão difícil falar dela? O que realmente aconteceu?

Caelinus apertou os lábios, e desviou o olhar por um momento. — Ledígia não era apenas sua mãe, Kilian. Ela também era importante para todos nós. Para mim, que nunca tive uma família, ela era tudo.

Kilian encarou Caelinus, como se esperasse por mais.

— Nós, paladinos, somos treinados desde pequenos. Não temos nenhum familiar. Perder sua mãe foi como perder tudo. Depois veio o pai da Melangie. E agora, a doença vai levar ela também...

Kilian colocou a mão no peito e a apertou contra a sua roupa, como se algo o engasgasse. Ele abriu a boca, mas as palavras não saíram. Quando finalmente falou, sua voz soou hesitante.

— Eu... eu não sabia que eram assim como são.

Caelinus esboçou um sorriso triste, logo depois balançou a cabeça lentamente. — E para Melangie também. Acha que ela não sente a falta do pai? Eu sei que você não merece o nosso silêncio, mas essas coisas ainda são feridas abertas.

O silêncio voltou a envolver os dois enquanto continuavam a caminhar, até que as sombras das ruas abandonadas começaram a ceder lugar à luz dos lampiões do distrito vizinho. A mudança era imediata: ruas iluminadas, guardas em patrulha, e o som distante de conversas e risos retornava ao ambiente, como se trouxessem de volta uma sensação de vida.

— Desculpa por perguntar — murmurou Kilian, quase em um sussurro.

— Não se desculpe. Você tem o direito de saber... — disse Caelinus enquanto eles se aproximavam da rua onde moravam. O jardim simples à frente da casa de Melangie era uma visão familiar e reconfortante.

— Estamos em casa, Kilian. Vamos ver como ela está.

Conforme eles se aproximavam da casa, luzes suaves escapavam pelas frestas das janelas enquanto iluminavam seus rostos cansados. Caelinus, antes de um suspiro controlado, olhou para a casa com o alívio que aquele lugar trazia, e Kilian apertou o passo, indo à frente.

Kilian bateu na porta, que logo se abriu. Era Melangie, que se encostou levemente na madeira, o corpo mais frágil do que antes, como se o tempo estivesse cada vez mais pressa em consumi-la.

— Kilian! Onde você estava? — Sua voz soou suave, mesmo debilitada ainda tinha uma ponta de preocupação evidente.

Kilian cruzou os braços e desviou o olhar para disfarçar. — Não se preocupa com isso, Melangie. Já estou aqui.

— Passei a semana toda sem saber de você. Cheguei a pensar que... — Seus dedos tamborilavam no batente da porta, porem pararam antes que terminasse a frase.

— Ele estava no Vale do Suplício, catando lixo de novo — interrompeu Caelinus, com um sorriso que tentava aliviar o peso do momento.

Melangie piscou, surpresa ao vê-lo. — Caelinus... o que você faz aqui?

— Encontrei esse jovem perambulando perto do meu posto — respondeu, enquanto dava um tapinha de leve no ombro de Kilian.

— No seu posto dos Paladinos? — A surpresa dela se transformou em uma expressão mais séria. Ela encostou a mão no peito, como se algo a incomodasse. — Kilian, o que aconteceu, você fez alguma coisa errada?

— Nilego bateu nele. Uma provocação boba — disse Caelinus, antes de lançar um olhar firme para Kilian.

Melangie suspirou fundo, sem precisar dizer nada. Seu olhar para Kilian, desapontado, dizia o suficiente.

Kilian tentou aliviar a tensão com um encolher de ombros. — Estou bem, Melangie. Sério, não precisa se preocupar tanto.

— Amanhã eu falo com o pai de Nilego — interveio Caelinus, enquanto ajeitava sua postura. — Vou resolver isso de uma vez.

Melangie, ainda visivelmente preocupada, tentou esconder a fragilidade atrás de um gesto prático. — O importante é que, vocês estão bem. Vou pôr água no fogo pro banho. Já está tarde. — Ela começou a mexer na lenha do fogareiro, o sorriso que tentou exibir desapareceu rapidamente.

Kilian suspirou enquanto retirava os sapatos. — Depois de hoje, acho que um banho é tudo o que eu preciso. Salvei a vida dele hoje, sabia?

— Como assim, o que aconteceu? — Melangie lançou um olhar curioso para Caelinus, enquanto ignorava o comentário despreocupado de Kilian.

— Encontramos um tigre... enorme, vindo de um portal. A luta foi feia, achei que não viveria pra contar, mas Kilian foi corajoso. Muito mais do que eu esperava, na verdade. — Caelinus olhou de canto para Kilian, com um olhar de quem reconhece um valor inesperado.

Melangie franziu o cenho, enquanto buscava entender a gravidade do relato.

— Ainda bem que estão a salvos... Isso é o que importa. — Ela virou-se para a cozinha, o ritmo de seus passos mais pesado do que antes.

O cheiro da comida começou a encher a casa enquanto Kilian foi para o banho. Caelinus, silencioso, retirava, uma a uma, as peças metálicas de sua armadura.

— Kilian! — chamou Melangie da cozinha. — Os vizinhos deixaram uma muda de roupas para você. Experimente quando sair do banho.

Kilian respondeu de longe, a voz abafada pelo vapor. Logo ele apareceu, com a toalha pendurada no pescoço, e Caelinus foi em seguida tomar o próprio banho.

Após a refeição, Kilian despediu-se e foi se deitar, enquanto deixava Melangie e Caelinus sozinhos na sala. Ela se sentou perto do fogareiro, o cansaço evidente em cada movimento enquanto ajeitava as almofadas ao lado dele.

— Faz tanto tempo que não temos um momento assim, só nós dois — disse Melangie, os olhos focados no fogo que bruxuleava no fogareiro.

Caelinus olhou de lado para ela, seu semblante suave ao perceber sua vulnerabilidade. — Também senti falta disso.

Ele segurou sua mão delicada, a pele era fria e fina. Melangie não olhou diretamente para ele, mas seu corpo se inclinou de forma sutil, como se aceitasse o gesto em silêncio.

— Caelinus... você e Kilian são tudo para mim — disse ela, a voz era como um sussurro. Havia uma dor escondida em suas palavras, como se confessasse um peso que carregava há muito tempo.

Caelinus apertou a mão dela um pouco mais, sem querer deixá-la afundar naquela dor. — Nós nunca vamos te deixar, Melangie. Eu faria qualquer coisa por você. Não importa o preço.

Melangie deixou um sorriso triste surgir, enquanto seus olhos se enchiam de lágrimas. — Não seja bobo... — Sua voz vacilou por um segundo. — Não quero que desista de nada por minha causa.

— Mesmo assim, eu faria — disse Caelinus, antes de puxa-la suavemente para um abraço. Ele sentia sua fragilidade contra o próprio peito, mas ela aceitou o conforto sem resistir.

Eles permaneceram assim, abraçados, enquanto o silêncio tomava conta da casa, enquanto o fogo e a noite os envolviam como um manto de tranquilidade.

 

***

 

No telhado de uma das casas do distrito evacuado, seis figuras observavam o horizonte em silêncio, suas silhuetas mal se destacavam na escuridão. Moviam-se com precisão, quase invisíveis, como sombras flutuantes no vazio.

— Se continuar assim... — murmurou a figura à frente, a voz baixa, quase como um sibilo que cortava a quietude ao redor.

— Precisamos nos dividir — sugeriu outra figura ao lado, o tom grave e direto, sem espaço para dúvidas. — Três para o nordeste, três para o sudoeste.

O líder acenou com um movimento sutil, as mãos esguias delineavam um plano no ar. Ele então olhou para o horizonte escuro, onde as luzes distantes piscavam com fragilidade.

— Lembrem-se, se falharmos... — Ele fez uma pausa, os olhos ocultos fixos no vazio à frente, como se enxergasse além da escuridão. — Jillar pode não sobreviver.



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