Intangível Brasileira

Autor(a): Richard P. S.


Volume 1

Capítulo 5: Redenção

O tigre avançou com passos pesados e calculados, suas garras enormes se chocaram contra o escudo do paladino. O impacto quase o arrancou de suas mãos. O metal rangeu e reverberou em seu braço. Ele golpeou com a espada em um arco, enquanto tentava afastar a fera.

— Malditos portais! — resmungou sem desviar o olhar da criatura. — Kilian, quando eu mandar, você corre. E dessa vez, não discuta.

A fera não deu trégua. Com um bote feroz, suas mandíbulas se fecharam ao redor da cintura de Caelinus, e o ergueu do chão. O felino o sacudia brutalmente, prestes a partir seu corpo ao meio.

— Vai, Kilian!

O garoto não hesitou. O tigre o fitou por um instante, mas antes que pudesse persegui-lo, Caelinus inverteu a empunhadura da espada e a cravou no olho do animal. Um rugido ecoou pelas ruas enquanto o sangue jorrava, e manchava a pelagem roxa da criatura.

A fera soltou Caelinus no chão. O paladino, arfante, forçou-se a ficar de pé.

Uma vez em posição, ele passou a mão sobre o local da mordida. Porém, nada de sangue sob a armadura. O tigre, agora sem um olho, rugia inquieto. Sua cauda metálica chicoteava o pavimento com faíscas.

Caelinus ergueu seu escudo amassado, e avançou novamente.

***

Kilian corria pelas ruas estreitas, os rugidos da fera cada vez mais distantes.

— Eu não posso fazer isso... — disse ele, quando deteve sua fuga. Seus olhos vasculharam a infinidade de escombros. — Ele não vai aguentar.

Ao avistar os destroços de uma casa, Kilian se apressou. Entre as pedras e restos de madeira, ele encontrou uma viga quebrada.

— Isso é pesado... — resmungou, enquanto levantou a viga com as duas mãos. — Mas vai servir.

Sem perder tempo, ele voltou apressado à luta.

Quando Kilian chegou no local, Caelinus já estava no chão. O animal abocanhava o escudo, que já estava todo amassado em torno do braço do paladino. Com o outro braço e as pernas, Caelinus tentava se proteger das garras, que a cada golpe rasgavam sua armadura como se ele fosse um pedaço de papel.

— Droga! — disse Kilian ao observar aquela cena. — Tenho que conseguir...

Ele se aproximou pela lateral, pé a pé, enquanto aproveitava o ponto cego do tigre. Aos poucos ele tomou velocidade, e logo ele disparou, a ponta da viga direcionada para o alvo.

Com um grito, ele cravou a estaca.

Kilian enterrou a ponta de madeira no flanco da criatura. O animal se contorceu violentamente. Kilian, sem tempo para soltar a viga, foi arremessado longe; seu corpo colidiu contra os pedaços de metal de uma construção destruída. A dor o atingiu como uma onda, e sua visão começou a se turvar enquanto ele lutava para manter os olhos abertos.

Caelinus aproveitou a distração, e golpeou o focinho do tigre com o escudo amassado.

A criatura recuou com um grunhido de dor.

Com um movimento de sua espada, Caelinus cortou as tiras do escudo. Seu braço estava livre daquele pedaço inútil de metal retorcido. O tigre se preparava para outro ataque, mas antes que pudesse saltar, Caelinus estalou os dedos. Um clarão ofuscante iluminou a rua inteira, e o tigre virou o rosto por instinto, ao mesmo tempo que fechou o único olho que lhe restava.

Caelinus não perdeu tempo. Com um encantamento rápido, sua espada brilhou com uma luz pálida. Ele desferiu uma série de estocadas no peito do animal. O sangue jorrava, e o tigre recuou, cambaleante. Seus movimentos se tornaram erráticos, seus olhos se vidrados.

— É o seu fim...

Com um último grunhido de agonia, a criatura tombou no chão, os espasmos sacudiram seu corpo antes de se aquietar por completo.

Caelinus ofegou, enquanto guardou a espada de volta para a bainha. O silêncio que se seguiu à batalha pesava no ar. Ele observou o tigre morto, seu sangue escorria pelo pavimento. Caelinus, por instinto, levou sua mão até o próprio ferimento.

— Que? — Sua mão pressionou a área do corpo, os olhos arregalados. — O que será que aconteceu?

Caelinus então se virou. Seus olhos focaram os escombros.

— Kilian!

Ele correu em direção ao garoto, as barras de ferro da construção desmoronada atravessadas em seu peito como lanças. Sem hesitar, Caelinus ajoelhou-se ao lado dele, as mãos tremulas enquanto puxava com cuidado o corpo do garoto.

— Aguenta firme, eu vou te curar.

Assim que retirou Kilian das hastes, Caelinus o deitou no chão. Contudo ao levantar a sua camiseta, nada. Ele passou a mão pelo peito do garoto enquanto procurava por um corte, uma perfuração ou qualquer sinal de ferimento.

— Não faz sentido...

— O que não faz sentido? — Kilian abriu os olhos, antes de se sentar no chão, como se procurasse por algo que não estava lá.

— Tinha um ferro enorme atravessando o seu peito, e agora... Nada!

— Deve ter sido por causa... — Kilian passou a mão pelo corpo como se também procurasse algo.

— O que houve?

— Antes de desmaiar, eu... eu vi um fio dourado... preso em mim... — A voz dele soava fraca, mas as palavras carregavam urgência. — Mas agora, se foi.

Caelinus franziu o cenho, enquanto encarou o garoto por um momento. Sem dizer mais nada, ele passou a mão pelo rosto, como se tentasse afastar algo invisível.

— Fio... dourado? — repetiu, em um tom de dúvida.

Kilian se levantou devagar. Ele olhou ao redor, e então apontou para um beco à frente.

— Veio dali.

Caelinus estreitou os olhos naquela direção. O lugar estava mergulhado em sombras densas, quase impenetráveis pela luz fraca das luas.

— Quer saber de uma coisa? É melhor deixa isso quieto, Kilian. Vamos embora. Já tivemos problemas demais hoje.

— Vamos até lá antes. Tem alguma coisa lá... eu sei que tem!

Caelinus soltou o ar pelo nariz, relutante. Após alguns segundos, ele assentiu, depois de passar a mão na nuca.

— Certo... vamos ver o que tem.

Eles caminharam em direção ao beco, o ar parecia cada vez mais frio, enquanto as sombras se tornavam mais densas. Ao se aproximarem, uma silhueta começou a se formar na penumbra. Uma figura encostada na parede se tornava cada vez mais clara.

— Tá vendo? Eu te disse que tinha alguma coisa aqui! — disse Kilian, com a voz trêmula enquanto se aproximavam.

Os dois caminharam cautelosos até a figura imóvel, sentada no chão. O rosto pálido e os lábios entreabertos emitiam uma respiração pesada devido ao esforço.

— Phong? — Caelinus se abaixou ao lado do colega enquanto examinava seus ferimentos, o rosto tenso.

— Ele passou por nós agora há pouco... como... como isso aconteceu? — Kilian murmurou, a voz entrecortada, os olhos arregalados enquanto olhava para o paladino.

Phong, mesmo debilitado, ergueu os olhos para os dois com um sorriso frágil nos lábios.

— Não se preocupem... são só arranhões — ele falou com um tom tranquilo, como se zombasse de sua própria condição.

— Assim ele não vai aguentar, precisamos curar ele, rápido! — Kilian olhou ao redor, como se procurasse por uma solução imediata, as mãos inquietas.

Caelinus balançou a cabeça, a mandíbula travada.

— Sim, só tem um problema... eu esgotei toda a minha magia de cura — ele passou os olhos pelos ferimentos de Phong, a tensão visível em seu corpo enquanto tocava de leve um dos cortes.

Phong tentou levantar a mão, mas ela caiu sem força, o sorriso fraco ainda presente.

— Meus amigos... não se preocupem tanto... não vale a pena — ele disse, a voz baixa e serena, quase como se estivesse em paz com a própria situação.

Kilian, de repente, ergueu a cabeça, o tom urgente.

— O posto! Os guardas! Eles devem ter algum conjurador de magia divina por lá.

Caelinus assentiu rapidamente, os olhos indo de Kilian a Phong.

— Phong, meu amigo, você ainda consegue se mover? — A tensão no corpo de Caelinus era evidente, mas sua voz tentava se manter firme.

Phong não respondeu, apenas ficou em silêncio, os olhos semiabertos, a respiração cada vez mais pesada.

— Vamos tirar ele daqui — disse Caelinus, que sem perder tempo começou a remover a armadura de Phong.

Logo após, ele entregou as partes da armadura para Kilian, que fez uma careta enquanto tentava segurar o equipamento.

— Isso pesa! Como vocês conseguem usar essa coisa o dia inteiro?

— Anos de treinamento — respondeu Caelinus com um sorriso de canto, enquanto ajustava Phong em seus braços, enquanto usava de uma técnica para carregar feridos.

Com um esforço visível, ele ergueu o colega, depois ajustou sua. O rosto de Phong se contraiu levemente, mas ele não reclamou.

— Segure firme, Phong. Vamos levá-lo ao posto de guarda.

Phong tentou esboçar um sorriso, mas estava fraco demais para responder.

Enquanto começavam a caminhar, Kilian seguiu na frente, como se procurasse por qualquer problema entre os becos escuros ao redor.

— Precisamos ser rápidos. Nunca se sabe o que pode aparecer por aqui.

— Acho difícil. Já atingimos nossa cota de problemas por hoje — respondeu Caelinus, o tom leve, mas os passos firmes e cuidadosos.

A caminhada até oposto Beyara parecia interminável. O sangue de Phong escorria pelos braços de Caelinus, suas roupas estavam encharcadas, mas ele não diminuiu o ritmo. Kilian seguia ao lado, os olhos sempre em alerta.

— Caelinus, você acha que ele vai? — Kilian perguntou, a voz baixa, quase abafada pela tensão ao redor.

Caelinus ajustou o peso de Phong nos braços, sem tirar os olhos da frente.

— Ele vai ficar bem. É um paladino. Nós suportamos coisas piores desde criança — respondeu, o tom firme e confiante. — Além do mais, o posto é aqui perto, como você mesmo viu.

Kilian olhou para a armadura que carregava, intacta, sem sequer um arranhão, e logo depois para Phong, que não parava de sangrar.

— Mas o que você acha que aconteceu com ele, de verdade? Olha isso aqui, não tem um arranhão — Kilian falou, enquanto observava o peitoral.

Caelinus ficou em silêncio por um momento, a expressão fechada.

— Eu... pensei em algo, mas... é bobagem.

Seu tom de voz denunciava que algo o incomodava.

Kilian arqueou uma sobrancelha, enquanto aguardava resposta.

— Segredinho agora? Conta logo.

Eles adentraram uma rua mais larga, e as luzes do posto de guarda já brilhavam no horizonte. Caelinus suspirou, relutante.

— Por um momento, achei que os ferimentos dele eram iguais ao das garras e da mordida do tigre, e os furos no peito, iguais aos ferros de construção. Como se ele tivesse no nosso lugar. E depois, você falou do fio dourado, pensei que Phong tivesse usado a Redenção.

— Redenção?

— Uma técnica lendária dos paladinos. Ela conecta o usuário a outra pessoa através de um vínculo, e todos os ferimentos que essa pessoa receber são transferidos para o paladino — explicou Caelinus, a voz grave, os olhos ainda fixos no caminho à frente.

— Então é isso! — Kilian exclamou, e sua voz ecoou pelas ruas desertas. — Ele usou a Redenção em nós!

Caelinus balançou a cabeça.

— Não, impossível.

— Impossível?

— Sim, a Redenção é considerada uma técnica perdida. Faz séculos desde a última vez que se ouviu falar de alguém usando. Nem mesmo os grandes mestres paladinos sabem como fazê-la. Nem mesmo sua mãe. A Redenção faz parte das sagradas técnicas da Trindade dos Paladinos. Para dominá-la, provavelmente se levaria séculos treinando.

— Mas Caelinus, Phong é descendente dos féericos. Ele já deve ter séculos de idade. Será que ele não sabe? Porque se não foi isso, então o que foi?

Caelinus olhou para Phong, agora desacordado em seus braços, e suspirou.

— O único que pode nos dar essa resposta é o próprio Phong... isso se ele quiser falar.



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