Volume 1
Capítulo 4: Caelinus
O paladino estreitou os olhos, enquanto examinava Kilian da cabeça aos pés, e então, uma risada inesperada explodiu de sua garganta.
— Olha pra você, Kilian! Agora anda ensinando os cachorros a morder os outros, é? Quem foi que amassou sua cara desse jeito? — perguntou o paladino, tamanha era seu excesso de riso que ele precisou enxugar as lágrimas.
O homem resmungou alto, o cutelo ensanguentado ainda em sua mão. — Também vi um bardo no caminho cantando músicas a favor dessas pragas. Devíamos ser mais duros com essa gente.
O paladino suspirou, se recompôs e cruzou os braços. — Sei que está irritado, mas repressão só piora as coisas. Vamos atrás dos culpados de verdade, não de suspeitas vazias.
— Kilian, de novo fazendo merda? — debochou outro anão, que caminhava até eles com o martelo ainda manchado de sangue. — Abadim, chama o Caelinus aqui!
— Não! Por favor, não faz isso. — Kilian implorou, sua voz trêmula.
— Tarde demais, garoto. — Abadim sorriu de lado. — Ele já tá vindo.
O homem ao lado de Kilian estreitou os olhos, a cicatriz no rosto pulsava levemente enquanto levantava o tom de voz. — Afinal, esse garoto é um druida ou não?
— Claro que não é.
Uma voz respondeu, vinda de trás da mesa dos paladinos.
Kilian suspirou enquanto olhou para o céu. — Lá vem o sermão...
Um jovem humano se aproximava, com os mesmos trajes dos anões: um peitoral de aço bem cuidado com os braços expostos. Seus olhos castanhos reluziam sob a luz do fim do dia.
— Esse garoto te causou algum dano? — perguntou ele, dessa vez para o homem irritado com o cutelo.
— Não, senhor. — O homem apertou o punho da arma, mas agora sua voz estava mais contida.
— E algum dano à sua propriedade? Não? — repetiu o paladino, seus olhos fixos no homem.
— Não... senhor.
Abadim deu um tapa amigável nas costas de Kilian. — Vai, Kilian, quem amassou tua cara assim?
— Deixa ele, Caelinus. O homem não fez nada... Só matou um cachorro por engano, pensando ser um druida — disse Kilian, enquanto caminhava em direção ao paladino.
Caelinus coçou a cabeça, ele desamarrou os seus cabelos e o amarrou de novo.
— Certo, senhor. Investigaremos esses apoiadores de druidas depois. Muito obrigado por trazer o garoto em segurança. Lhe devo alguma coisa?
O homem balançou a cabeça em um resmungo baixo. — Não deve nada não, senhor. — disse ele antes de se afastar.
— E você, vem comigo — disse Caelinus, depois de fazer um gesto com os dedos para Kilian se aproximar.
Com um olhar de reprovação, o paladino pousou a mão firme sobre o ombro do garoto, e o conduziu pelos arredores do posto. No caminho, passaram por um paladino mais velho, cuja armadura trabalhada e as rugas profundas falavam de décadas de serviço.
— Preciso ir — disse Caelinus, depois de parar para falar com o veterano.
— Problemas? — o homem mais velho levantou uma sobrancelha, antes de lançar um olhar rápido para Kilian.
— Nada demais, só um garoto problemático — respondeu Caelinus antes de continuar. — Avise ao mestre Gorbolg que vou levar ele para casa.
— Tudo bem então, mande um abraço para Melangie — respondeu o velho com um aceno.
A rua estava envolta em sombras enquanto o entardecer avançava. O vento carregava o cheiro de poeira e destruição pelo distrito evacuado. Os aeroplanos já cruzavam os céus, enquanto retomavam suas rotas após o ataque.
Kilian então quebrou o silêncio.
— E aí? Vai ficar me olhando com essa cara ou vai me curar?
Caelinus o olhou de canto, mas continuou andando.
— E por que eu faria isso? Você se meteu nessa sozinho.
— Como você sabe disso? — Kilian retrucou, o tom defensivo.
— Porque se tivesse ficado em casa, cuidando da Melangie, não estaria assim. — Caelinus parou, se virando para ele. — Quem fez isso?
Kilian evitou seu olhar.
— Ninguém. Deixa quieto.
Caelinus apenas esperou em silêncio.
— Foi o Nilego — Kilian cedeu.
Caelinus estreitou os olhos.
— Você estava no Vale do Suplício de novo, não estava?
Kilian suspirou, derrotado.
— Sim, mas você sabe... Tem muito dinheiro enterrado lá. Eu só quero dar aquela viagem pra ela. Não sabemos quanto tempo falta pra... você sabe.
— Tudo bem. E como Nilego entrou nisso?
— Ele jogou um saco de merda no Cara de Sapo. Quando voltamos, eu quis ajudar ele com uma emboscada, chamei o Nilego de Tucano... ele veio atrás de mim, e o Cara de Sapo ao invés de me ajuda, só ficou rindo enquanto eu corria.
Caelinus balançou a cabeça, enquanto um sorriso cansado surgiu no seu rosto.
— É a milésima vez que você cai nessas Kilian. Por que você não aprende?
Ele observou Kilian por um momento, em silêncio, antes de estender a mão. Com algumas palavras rápidas, seus ferimentos desapareceram, e o corpo do garoto voltou ao normal, como se nunca tivesse sido espancado.
— Você sempre me pede, mas é exatamente por isso que eu não te ensino a lutar. — A voz de Caelinus estava calma, mas firme. — Você precisa aprender a julgar melhor as pessoas antes de ganhar poder.
Kilian bufou, mas um sorriso irônico escapou enquanto murmurava:
— "Julgar melhor as pessoas"...
— Ah, eu desisto... — Caelinus estalou a língua, mas seu olhar, por um breve segundo, refletia algo mais, algo que Kilian não percebeu.
Eles caminharam em silêncio, cada vez mais entranhados no distrito evacuado. O sol, já quase oculto no horizonte, cedia lugar às luas emergentes. Caelinus parou de repente, e levantou os olhos para o céu.
— Olha só, Kilian. — Ele apontou para cima, onde três luas já brilhavam contra o céu escurecido. — Shevah tá crescente, mas Ormuz e Niar estão cheias.
Kilian seguiu o olhar de Caelinus, confuso com a pausa.
— Semana que vem, as cinco luas vão estar cheias. — continuou Caelinus, um leve sorriso nostálgico no rosto. — A última vez que isso aconteceu foi há dez anos. Eu estava de patrulha naquela noite.
Kilian observou o céu por mais um instante.
— Vai ser uma noite interessante — murmurou Caelinus, retomando o passo.
Ao redor, as cicatrizes do ataque druida ainda eram visíveis. Construções danificadas, marcas de incêndio e detritos pelas ruas. Muitas casas estavam vazias e sem luz, enquanto, no horizonte, o brilho distante de um posto dos Beyaras piscava, solitário em meio à escuridão.
— Já tomei uma decisão — disse Caelinus, depois de um momento de silêncio. — Vou passar a noite com vocês, e amanhã cedo converso com o pai do Nilego. Esse tipo de agressão não pode ficar assim.
— Não faz isso — pediu Kilian, o tom urgente. — Ele vai me perturbar ainda mais depois.
Caelinus abriu a boca para responder, mas seus olhos se fixaram em algo à frente.
— Olha ali — disse ele, depois de apontar para um telhado ao longe.
Seis figuras estavam alinhadas sobre o topo de uma casa. Eram de raças diferentes, mas a maioria eram humanos. Alguns usavam armaduras reluzentes. Mesmo de longe, era fácil perceber que cada um daquelas peças era tão cara ao ponto de poder comprar até um distrito inteiro na superfície.
— Letnicianos... — murmurou Caelinus, de braços cruzados. — Não é comum ver eles por aqui.
— O que eles estão fazendo? — perguntou Kilian enquanto estreitava os olhos.
— Quem sabe? Esse mundo tá cheio de mistérios. — Caelinus deu de ombros, o olhar ainda fixo nas figuras. — Parecem estudantes. Aposto que estão aqui por causa dos druidas de hoje. Mas, mesmo assim... é raro ver um Letniciano descer na superfície.
Kilian os olhou até eles seguirem adiante, eles saltavam com auxílio de magia, de telhado em telhado. A postura impecável, as armas perfeitas... Era como se fossem de outro mundo.
— Queria eu ser um Letniciano — murmurou ele, quase sem perceber.
Caelinus soltou uma risada curta, ao mesmo tempo que balançou a cabeça.
— Isso é impossível. Eles são bem exigentes.
Kilian franziu o cenho, ainda sem desviar o olhar dos Letnicianos.
— Por quê?
— Além de ser caro estudar lá — começou Caelinus —, você precisaria ter o que eles chamam de "Fator Letniciano."
— Fator o quê? — Kilian ergueu as sobrancelhas, curioso.
— Uma em cada dez pessoas nasce com habilidades físicas ou mentais muito acima da média. Eles chamam isso de "Fator Letniciano". Tem que ter isso para fazer parte deles.
Kilian soltou um suspiro pesado, enquanto os ombros caiam.
— Então, mesmo se eu tivesse dinheiro, eu não poderia ser um deles?
— Exato. E, mesmo se tivesse o fator e fosse aceito, a formação deles é rigorosa. Não é para qualquer um. — Caelinus lançou mais um olhar para aquelas figuras ao longe. — Mas sonhar não custa nada, né?
— É, sonhar é o primeiro passo pra conquistar qualquer coisa. — Uma voz se pronunciou.
Kilian e Caelinus se viraram rapidamente em direção a origem da voz. À distância, uma silhueta destacava-se na penumbra do crepúsculo. Aos poucos, a figura se revelou: um descendente dos féericos, com uma longa cabeleira vermelha metálica, lembrando a juba de um leão, cintilantes sob os últimos raios de luz. A armadura que usava era igual à de Caelinus, um peitoral sem mangas, típico da Ordem dos Paladinos.
— Phong! — disse Caelinus, com um sorriso no rosto enquanto encarava o recém-chegado. — O que faz por aqui?
Kilian, ao lado, ergueu as sobrancelhas, seus olhos em Phong, enquanto sua postura sugeria um leve fascínio.
— Fui mandado pra cá — respondeu Phong, sua voz calorosa apesar do tom mais sério. — Este distrito está mais instável do que nunca. Não só temos um druida perigoso à solta, como também os portais aleatórios estão aparecendo em todos os lugares.
— Portais? — Kilian inclinou a cabeça levemente.
Phong apontou para o horizonte com o queixo.
— Como aquele ali.
Um brilho esverdeado surgiu repentinamente à frente deles, ele revelava uma floresta densa, com árvores que se estendiam além do que os olhos podiam alcançar. Por alguns instantes, todos permaneceram imóveis, enquanto observavam o outro mundo surgir diante deles.
Então, o portal se fechou, como se nunca tivesse existido.
— Isso tem acontecido bastante. — Phong abaixou a mão. — Do nada eles surgem e desaparecem. Ninguém sabe o que está causando isso, então fiquem atentos.
Caelinus cruzou os braços, quando encarava o ponto onde o portal estivera.
— A coisa tá feia mesmo... — murmurou, os lábios cerrados. — E o druida?
Phong soltou um suspiro pesado.
— Ainda à solta. Caelinus, vocês deveriam voltar pra casa. Com esses portais e o druida por aí, não se sabe o que pode aparecer de uma hora para outra.
Kilian, com os ombros tensos, olhou para os lados, como se tentasse entender a gravidade da situação.
— Isso tá pior do que eu pensava... — murmurou ele, suas palavras eram quase como um reflexo. — Estamos indo para casa, quer vir com a gente?
Phong assentiu, antes de recuar alguns passos com um gesto de despedida.
— Infelizmente vai ter que ficar para a próxima. Tenho que continuar a patrulha. Mas tomem cuidado. Nos vemos em breve. — Ele acenou uma última vez antes de se afastar, sua figura desapareceu na escuridão crescente, enquanto Kilian e Caelinus o acompanharam como o olhar.
— Vamos sair daqui de uma vez — disse Caelinus, a voz carregada, enquanto já se preparava para retomar o caminho. — Antes que outra coisa dessas apareça.
Após a despedida, eles continuaram por aquela rua, o som de seus passos era um eco pelas ruas vazias.
— Por que será que os druidas atacaram? — perguntou Kilian, sua voz finalmente quebrava o silêncio entre eles.
Caelinus suspirou, como se ponderasse a pergunta enquanto mantinha o olhar no caminho à frente.
— Isso já era esperado. Eles vêm corroendo a cidade aos poucos — respondeu, sem pressa. — Vendem drogas que envenenam os jovens... criam grávidas explosivas, espalham o medo pra ninguém mais querer ter filhos. Mas isso já não é de hoje.
Kilian olhou para o chão, enquanto as palavras do paladino ressoavam.
— Apoiadores dos druidas... Eu vi um bardo hoje, mais cedo, cantando músicas em defesa deles. Mas por quê?
Caelinus parou por um momento, o peso da pergunta pairou no ar. Seu olhar se desviou para a rua deserta, os ombros relaxados, mas a voz firme:
— Tem gente que acredita na causa deles. Outros são manipulados ou comprados. E tem aqueles que simplesmente odeiam a cidade. Torcem para ver tudo desmoronar.
Kilian franziu a testa, seus olhos ainda fixos no chão com a mão no queixo enquanto andavam.
— Mas... o que eles realmente querem?
Caelinus continuou em silêncio por algum tempo antes de responder.
— Os druidas querem o fim da civilização. Já os apoiadores... Pode ser que queiram poder, controle... vingança. Talvez alguns só queiram sobreviver. — Ele fez uma pausa, quando lançou um breve olhar de canto para Kilian. — De qualquer jeito, fique longe deles. Não importa o motivo, eles são perigosos.
Kilian acenou com a cabeça, e o silêncio caiu mais uma vez sobre eles.
De repente, o ar se distorceu e um portal se abriu. Do outro lado, uma floresta surreal de troncos alaranjados e folhas pulsantes, desapareceu tão rápido quanto surgiu.
— Isso... não é bom — murmurou Caelinus, sua mão no cabo da espada.
Mais à frente, um portal maior revelou uma planície deserta com pássaros gigantes de olhos luminosos. Em seguida, fechou-se.
— O que tá acontecendo? — Kilian perguntou, a voz baixa, carregada de apreensão.
— Esses portais estão cada vez mais instáveis — respondeu Caelinus, enquanto seus olhos percorriam a área ao redor com cautela.
Antes que reagissem, um terceiro portal se abriu. Ele emanou uma luz esverdeada enquanto revelava formações rochosas flutuantes. Algo no ar parecia errado, pesado. Kilian franziu o cenho, antes de dar um passo para trás.
— Caelinus... isso... isso é diferente...
Antes que ele terminasse, o chão tremeu e o portal se fechou. Uma figura então emergiu das sombras, como se sempre estivesse ali, escondida.
Era um tigre gigantesco, do tamanho de um cavalo. Sua pelagem roxa pulsava com listras negras, e uma cauda metálica, longa e afiada, balançava como uma lâmina prestes a atacar.
Caelinus respirou fundo, os músculos tensos.
— Fique atrás de mim, Kilian — disse ele, enquanto ergueu o escudo e sacou a espada com um movimento rápido.