Volume 1
Capítulo 3: O julgamento dos Paladinos
Enquanto caminhavam pelas ruas, o cenário de destruição ao redor se tornava cada vez mais evidente. Um prédio de vários andares desabou, suas ruínas espalhadas pela calçada, testemunhando o caos que tomara conta do distrito. À frente, as ruas estavam lotadas de pessoas em fila, sendo retiradas de suas casas à força por soldados Beyaras. Muitos civis, com os rostos tensos e olhos arregalados, carregavam pertences embrulhados às pressas, enquanto os soldados mantinham a ordem, empurrando-os em direção à saída.
— Vamos! Todos saindo rápido! — bradava um dos soldados, antes de gesticular com as mãos para a multidão acelerar o passo.
Outro soldado segurava com firmeza o ombro de uma mulher resistente, que lutava para se libertar.
— Não vou deixar meu cachorro! Ele é da família! — disse a mulher com um grito, sua voz estridente enquanto tentava se soltar.
— Pode ser um druida disfarçado! — o soldado retrucou, enquanto a empurrou de volta para a fila. — Ordens são ordens. Todo animal dentro do distrito será eliminado!
Mais à frente, um grupo de civis levantava vozes de protesto, suas feições tomadas pela frustração e desespero. Vários choravam enquanto eram forçados a deixar para trás animais e até suas casas.
— Isso é loucura! Nem todo animal é druida! — gritou um homem, depois de puxar uma criança pela mão. Ele encarava de forma severa um soldado que barrava o caminho.
— Druidas estão por toda a região. Estamos evacuando. Sem exceções!
O soldado continuou a empurrar as pessoas, enquanto elas embarcavam em uma carroça de dois eixos puxada por um construto adaptado para a tarefa.
O homem segurava firme a gola da camiseta de Kilian, ele o arrastava pela confusão. O cutelo, ainda manchado de sangue, balançava em sua outra mão enquanto o conduzia adiante. A tensão no ar era sufocante, visível nos olhares desconfiados das pessoas por onde eles passavam.
Pelos cantos das ruas, soldados reuniam corpos, alguns já cobertos por lençóis improvisados, enquanto outros permaneciam expostos ao sol. O cheiro acre de morte se misturava à poeira que pairava no ar. Kilian engoliu em seco, quando seus olhos passaram pelos soldados e civis que lutavam para conter os animais aterrorizados.
— O cachorro... ele não era um druida... — murmurou Kilian, a voz fraca, quase um suspiro.
O homem ao seu lado lançou lhe um olhar rápido, a expressão endurecida, como se as palavras de Kilian tivessem sido vento.
— Cala essa boca, druida — rosnou, sem desviar o olhar do caminho à frente. — Se você quiser continuar vivo, não teste a minha paciência.
Kilian, com o corpo dolorido dos golpes, lutava para seguir o ritmo. Cada passo era um esforço, e a dor pulsante o fazia morder os lábios a cada movimento. Seus olhos vagueavam pelas ruas devastadas, enquanto se prendiam em pequenos detalhes — um brinquedo caído no chão, móveis abandonados, janelas estilhaçadas. Tudo parecia congelado no caos.
Quando chegaram a uma praça, viram um bardo sentado sobre os destroços de um daqueles enormes construtos com uma insígnia Beyara. Ele dedilhava calmamente seu alaúde. Sua música, uma melodia triste, flutuava no ar, um contraste com a destruição ao redor.
Kilian franziu o cenho. Algo no olhar do bardo não correspondia à tristeza da canção. Seus olhos brilhavam com ironia, como se zombasse da tragédia à sua volta.
— Levantem-se, filhos da terra, contra os tiranos de aço! Libertem as florestas, os rios e o céu dos grilhões que nos fazem escravos! — cantava o bardo, com um sorriso no canto dos seus lábios.
O homem puxou Kilian com mais força, a fim de apressar sua caminhada.
— Malditos apoiadores de druidas... — murmurou ele, sem sequer olhar para o bardo. — Se eu não estivesse com você agora, já teria dado um jeito nesse infeliz. — continuou ao mesmo tempo que erguia levemente o seu cutelo.
Kilian manteve-se em silêncio, acompanhar o homem naquele ritmo era uma luta. O bardo continuava a tocar, sua voz cada vez mais distante, como um pequeno eco desafiante nas ruas desoladas.
O homem arrastou Kilian até uma fila formada diante de um posto improvisado de paladinos. Parecia montado às pressas, em meio ao caos da evacuação.
O fim da tarde trazia o frio típico do deserto, e o céu avermelhado já começava a escurecer. Soldados Beyaras patrulhavam os arredores, enquanto os paladinos, com suas armaduras típicas, julgavam os casos rapidamente. Três anões estavam atrás de uma mesa de madeira simples. À frente deles, um círculo mágico brilhava no chão, onde os acusados eram posicionados para prestar depoimento.
Um dos anões deu um aceno severo. — Próximo. — Uma mulher se aproximou, enquanto segurava o braço ferido, a dor evidente em seu rosto. O anão ergueu a mão e, antes de qualquer palavra, a envolveu com um olhar avaliador.
— O que houve com o seu braço? — perguntou, a voz grave, enquanto seus olhos analisavam o ferimento.
— Foi os druidas, senhor... Eles destruíram minha casa. Escapei por pouco — respondeu a mulher, ofegante, enquanto o sangue escorria por entre os seus dedos.
O anão assentiu e fez um gesto sobre o círculo mágico no chão. Uma luz dourada se espalhou, e envolveu o braço da mulher. Aos poucos, o ferimento cicatrizou, e sua expressão de dor deu lugar ao alívio.
— Não se preocupe. Todos os moradores do distrito serão realocados. Apenas siga com os soldados, e tudo será resolvido. — O anão falou com segurança, os olhos firmes nos da mulher. — Se você vem pagando as taxas, os Beyaras garantirão sua nova moradia.
A mulher, com os olhos agora cheios de esperança, agradeceu com uma reverência curta. — Obrigada, senhor.
— Próximo! — chamou o anão, enquanto a mulher se afastava, aliviada.
Dois homens vieram em seguida, ambos de cara fechada, prontos para discutir.
— Qual é o problema? — o anão perguntou, já com um leve tom de irritação.
— Esse homem tomou a minha casa! — acusou o primeiro, ele apontava com raiva para o outro. — Eu a emprestei, e agora ele se recusa a devolvê-la!
— Mentira! — retrucou o segundo homem, depois de bater o pé no chão. — A casa estava abandonada há três anos. Eu cuidei dela, agora ela é minha por direito.
O anão suspirou pesadamente, os braços cruzados por conta da sua impaciência. — Este tribunal foi improvisado para resolver os casos do ataque druida de hoje à tarde. Disputas de propriedade como essa não podem ser julgadas aqui. Vocês precisarão procurar outro posto.
Os dois homens trocaram olhares de frustração, e saíram, ao mesmo tempo que resmungavam baixinho enquanto se afastavam.
— Próximo! — A voz grave do anão ecoou pelo posto. De repente, um grupo de pessoas surgiu. Eles arrastavam um homem contra a sua vontade. Ele se debatia com força, numa tentativa de se livrar das mãos que o seguravam.
— Eu não sou druida! Me soltem! — gritava ele em desespero, os olhos arregalados.
Quando o homem avistou o círculo mágico desenhado no chão, sua aflição se intensificou. Ele começou a se debater com mais violência, enquanto empurrava as pessoas que o seguravam, numa tentativa de escapar antes de ser levado até os paladinos.
— Ele está tentando fugir! Joguem ele no círculo! — gritou um dos homens que o segurava.
Com um tremendo esforço, aqueles homens conseguiram forçá-lo até a beira do círculo mágico, onde o lançaram com força. Ao tocar o círculo, algo mudou. Seu corpo tremeu, e uma fúria distorcida tomou conta de seu olhar.
O anão ao lado do círculo o observava com desdém.
O homem levantou o olhar. Por um momento, o desespero em seu rosto parecia real. Mas então, algo mudou. Uma expressão distorcida se formou em seus lábios, e sua pele começou a se deformar. De repente, seus dedos se alongaram, agora eram garras afiadas. Ele soltou um grito bestial e, com um movimento rápido, lançou-se contra as pessoas que o arrastaram até ali. Suas garras rasgaram carne e tecido com facilidade aterrorizante.
— Druida! — gritou uma das pessoas.
A fila recuava em pânico enquanto o sangue jorrava de um ferimento profundo.
— Afastem-se! — ordenou o anão, com um martelo de batalha em mãos.
O caos tomou conta do posto. O druida, agora transformado, retalhava sem piedade.
— Viu isso? — O homem que segurava Kilian o sacudiu pelo braço. — Esses desgraçados podem ficar anos adormecidos, fingindo ser um de nós. Eu aposto que você é igualzinho.
O anão, que ainda empunhava o seu martelo com as duas mãos, avançou. Depois de um grito seguido de algumas palavras, desferiu um golpe devastador, o martelo acertou o peito do druida. A força do golpe o lançou contra um poste de metal. O impacto da colisão o entortou.
Os outros dois anões que estavam à mesa saltaram por cima dela. Um deles, também com um martelo em mãos, correu para finalizar o trabalho. O outro, que carregava um bastão, manteve a arma erguida, os olhos fixos no druida ferido.
Enquanto se recuperava do impacto, o druida se transformou em algo diferente, seus ossos estalaram ao mesmo tempo que ele assumia uma forma grotesca, uma mistura de lobo e corvo.
Suas asas negras bateram com fúria, mas antes que ele pudesse escapar, o anão com o bastão disparou um feixe de energia mágica. O disparo atingiu o druida em pleno voo, e seu corpo rodopiou até cair, quando voltou à forma humana e colidiu violentamente contra o solo.
— Pau de fogo, primo! — disse Kilian, enquanto o homem dava um soco em sua cabeça, como forma de repreensão.
Os dois anões restantes chegaram até o druida de imediato, e, com golpes precisos, esmagaram o druida a marteladas, até que não restasse mais vida em seu corpo.
Após o confronto, os anões se posicionaram em volta do círculo, numa tentativa de retomar a normalidade.
— Tragam os feridos aqui! — ordenou o anão, sua voz agora mais firme e resoluta. — Vamos cuidar deles antes de continuarmos com os julgamentos.
Algumas pessoas ajudaram a carregar aqueles que sobreviveram para o círculo mágico, onde os anões cuidaram de seus ferimentos com eficiência e rapidez. Os mortos foram carregados pelos soldados até um canto onde colocaram sobre eles um lençol.
— Pronto, agora vamos retomar os julgamentos — disse o anão. — Próximo!
— Agora é a sua vez, garoto — murmurou o homem com um sorriso sombrio.
Com a mão sobre a gola da camisa, ele arrastou Kilian em direção ao círculo.
O sangue do druida ainda brilhava no chão, o cheiro de ferro enchia o ar enquanto Kilian era conduzido de volta à fila. O murmúrio da multidão ao seu redor parecia um lembrete constante da destruição e da morte causadas pelos druidas.
O anão que disparou o feixe mágico olhou para Kilian com uma expressão avaliadora. O peso da tensão no ar era palpável.
Cada passo em direção ao círculo mágico parecia uma sentença.
Kilian olhou ao redor, como se buscasse desesperadamente uma saída.
Nada.
O homem, quando percebeu sua relutância, o empurrou com mais força.
Kilian lançou um último olhar desesperado, mas não havia ninguém para ajudá-lo. Apenas os olhares frios dos anões e o sorriso sinistro do homem que o arrastava.
Com um suspiro profundo, ele deu um passo hesitante e entrou no círculo mágico, onde as runas começaram a brilhar sob seus pés.
O paladino encarou Kilian com o bastão firme nas mãos. Seu olhar era carregado, as sobrancelhas franzidas, e o canto de sua boca tremia ligeiramente.
— O que temos aqui? — perguntou ele, sua voz grave ecoou sobre o murmúrio da fila.
— Esse garoto fez um cachorro atacar um rapaz agora há pouco. Certamente se trata de um druida — disse o homem, enquanto mais uma vez empurrava Kilian para frente com um solavanco brusco.
— É mesmo?
— É.