Volume 1
Capítulo 2: Carnificina em plena luz do dia
Gritos de pânico se misturavam aos passos apressados, enquanto mais Golens repetiam as ordens de evacuação.
— Mais sorte da próxima vez, Tucano — murmurou Kilian para si mesmo, enquanto desaparecia na multidão.
Um grito agudo, quase um chiado, cortou o ar. Kilian ergueu os olhos de imediato, o coração disparado. Acima, uma criatura monstruosa — algo como um lobisomem de pelagem branca, mas com asas de corvo no lugar dos braços, grandes o bastante para sustentá-la no ar. Em vez de focinho, tinha um bico serrilhado.
Num voo rasante, a criatura cravou as garras nas costas de um homem. O sangue espalhou-se pelo chão como um tapete vermelho.
Como o estopim de um pesadelo, o caos explodiu. Pessoas corriam em todas as direções, gritos cortavam o ar, e o medo fervilhava como um formigueiro agitado. Cada passo era um empurrão, uma tentativa desesperada de fuga.
Kilian recuou, olhos arregalados, sem ousar encarar por muito tempo. Outras criaturas surgiam e caíam sobre a multidão. Cada grito se apagava tão rápido quanto surgia.
— Não agora... não aqui... — murmurou, empurrado de um lado para o outro na confusão. Tentou escapar por um canto da rua. O beco mais próximo parecia sua única saída. Ele correu até lá, o coração acelerado. Mas, antes que pudesse avançar, uma dessas bestas aterrissou diante dele. As asas negras se abriram com um estalo, e as garras arranharam o chão. Os olhos amarelos e frios focaram-se nele como uma presa.
Kilian se enrijeceu, com os braços colados ao corpo e os dentes trincados. O bico serrilhado mergulhou em sua direção num impulso feroz. De repente, uma lança voou e perfurou a base da asa da criatura, o impacto rompeu suas costelas.
Eram os soldados Beyaras.
Um guincho rouco ecoou enquanto o druida cambaleava para trás. Os soldados, agora entre cinco, cravaram suas lanças repetidamente, carne e ossos eram dilacerados com brutalidade, até que o monstro parou de se mover.
— O que você tá fazendo aqui, moleque? — rugiu um dos soldados, enquanto estocava a criatura com a lança. — Vai se matar se ficar parado aí!
Kilian cambaleou por um segundo, os olhos arregalados. O instinto logo gritou mais alto, e ele disparou para o beco mais próximo.
As escadas eram mais estreitas e baixas do que a rua principal. O coração martelava, o corpo implorava por ar, mas ele não parou nem ousou olhar para trás.
Kilian já estava na metade do caminho, quando um brilho verde iluminou o corredor. Uma explosão sacudiu o chão, e Kilian olhou para trás. Os soldados Beyaras caíam, perfurados por setas verdes que desciam dos céus como uma tempestade.
— Não... — sussurrou, enquanto o desespero crescia.
Dois dos druidas-lobo, as criaturas aladas de antes, surgiram sobre os telhados. As asas negras batiam com força enquanto perseguiam o garoto em fuga.
Kilian acelerou, seus pés mal tocavam o chão quando tropeçou ao sair para a rua seguinte. Um silvo cortou o ar. À frente, formas gigantescas surgiram — os golens Beyaras, deformes, com braços de metal desproporcionais. As balistas acopladas aos braços disparavam rajadas de flechas de metal, longas como lanças, grossas como mastros. As setas atravessavam o céu com força suficiente para derrubar um prédio à frente.
— Não, não, não! — Kilian se jogou no chão para evitar os projéteis.
As criaturas aladas que o perseguiam tentaram desviar, mas as flechas já preenchiam o céu. Uma foi atingida em cheio, explodiu em pedaços que se espalharam por toda parte. A segunda guinchou ao ser perfurada. A lança não apenas a atravessou, como também fez o prédio atrás dela desmoronar com o impacto. Poeira e escombros abafaram todos os sons ao redor.
Kilian tossiu, seus pulmões ardiam por conta da poeira sufocante. Sem hesitar, rolou para longe, enquanto tentava se afastar dos destroços.
— Preciso sair daqui...
Logo depois, ouviu um estalo. Outra flecha atingiu o prédio ao lado, e a estrutura desabou com um estrondo. Blocos de pedra caíram por todos os lados. Kilian mal teve tempo de reagir antes de ser soterrado. A escuridão e o pó cobriram sua visão.
O silêncio tomou conta do lugar. Apenas ruídos distantes quebravam a quietude. Kilian mexeu os dedos sob os escombros. Poeira e restos de construção cobriam seu corpo, pesados. Com esforço, empurrou as pedras. Seus braços tremiam. Cada movimento era uma nova luta.
Quando conseguiu se arrastar para fora, a luz da tarde iluminava as ruínas, enquanto o calor era projetado sobre a rua abandonada e destruída.
O garoto se levantou devagar, o corpo dolorido. O ar cheirava a fumaça e sangue. Ele tossiu, enquanto tentava limpar a garganta, mas o gosto metálico do sangue na poeira persistia.
Ao redor, onde antes havia ruas movimentadas, agora só restavam destroços e corpos espalhados por toda parte.
Ele esfregou o rosto, enquanto limpava o suor e a sujeira. Seus lábios se apertaram, mas ele não disse nada. Observou as ruínas ao longe e fechou o punho, o sangue seco em seus braços cansados.
— Preciso sair daqui... — murmurou, com a voz rouca. — Ainda bem que acabou...
Seus pés tropeçavam sobre os escombros enquanto ele avançava, cauteloso. Então, abaixou-se, pegou uma pedra e a atirou. O som ecoou nas ruínas vazias.
Nada além de silêncio.
O lugar estava irreconhecível. Prédios destruídos e corpos espalhados cobriam o chão. Aquele mesmo cachorro sarnento agora lambia o sangue de um cadáver próximo a um beco, seus olhos sem brilho refletiam a desolação ao redor.
Ao dobrar a esquina, Kilian travou, os olhos arregalados.
O pânico subiu como um trovão prestes a estourar. Sem pensar, disparou em fuga. Seus passos ecoavam pelas ruas destruídas, o terror crescia a cada instante. De repente, ele tropeçou — o impacto o lançou ao chão. Era o cachorro sarnento, que agora fugia com um ganido.
O tombo quebrou o ritmo da corrida. Kilian levantou-se com dificuldade, as mãos esfoladas ardiam. Olhou em volta. Os passos se aproximavam. Ele correu para o beco e percebeu que estava encurralado. Sem portas, nem janelas, apenas paredes, que agora pareciam se fechar sobre ele e o cachorro ao lado.
Uma sombra surgiu à sua frente, e antes que pudesse reagir, foi agarrado pela camiseta. O impacto o jogou no chão. O cachorro sarnento choramingou lá no fundo, os pelos amarelos, que a sarna ainda não levou, arrepiados, e a cauda entre as pernas.
— Quem é o tucano agora? — Perguntou Nilego. O perseguidor finalmente o alcançara.
O empurrão fez Kilian cambalear, mas foi o chute brutal no peito que o derrubou de vez. A sola da bota de Nilego o atingiu com força. Kilian caiu no chão como se fosse um saco de batatas.
Em um instante, ele se lançou sobre Kilian. O primeiro soco o acertou com força, a pele rasgou sob o impacto, enquanto uma dor lancinante explodia na maçã do rosto. Por reflexo, Kilian ergueu as mãos para se proteger, mas Nilego era incansável. Seus punhos desceram como martelos.
Outro soco o atingiu na lateral da cabeça. O mundo ficou confuso, seus ouvidos zumbiam.
O terceiro soco fez sua visão escurecer nas bordas. Então os seguintes caíram como trovões em suas costas, seus ossos vibravam com cada golpe.
Kilian arfava, seus dedos tremiam enquanto ele tentava se apoiar nas mãos e nos joelhos, a respiração curta e irregular, como se o ar não chegasse rápido o suficiente. Seu corpo se recusava a cooperar, mesmo quando ele forçava os músculos a se moverem, cada tentativa de se levantar apenas trazia mais dor.
Contudo, em um esforço final, ele se pôs de quatro pés. Porém um chute certeiro afundou em seu estômago. Todo o seu ar fora expulso. Ele se dobrou com as mãos na barriga, sua testa tocou o chão, um gemido escapou de sua garganta, enquanto seus braços já não protegiam mais nada.
Nilego, vendo aquilo, não perdeu tempo. Um soco ainda mais feroz atingiu Kilian direto no olho. O cachorro sarnento latia de forma ininterrupta no fundo do beco, suas orelhas murchas, seu focinho franzido.
Então o cão saltou.
Suas presas se cravaram na perna de Nilego. Ele gritou ao mesmo tempo que seu corpo por instinto saltou para trás, enquanto o cachorro se colocou entre ele e Kilian, o animal latia freneticamente.
— Cachorro desgraçado!
Kilian olhou para aquilo e aproveitou a abertura.
Ele tentou fugir pelo ponto cego do agressor. No entanto, um homem desconhecido entrou no beco. Carregava um cutelo em suas mãos manchadas de sangue. Kilian recuou de imediato, até que voltou a se encostar na parede do fundo da viela.
— Sai daqui! Meu negócio é com esses dois druidas! — disse o homem, enquanto erguia o cutelo em ameaça para Nilego.
Seus olhos se arregalaram, as pupilas dilatadas e a boca entreaberta. Sem dizer mais nada, ele recuou, manco por conta da mordida, enquanto fugia daquele lugar.
Kilian se encostou na parede, ofegante, enquanto o cachorro ao seu lado tremia e rosnava.
— Druida desgraçado — rosnou o homem, quando pegou o cachorro pelo cangote. O animal soltou um grito agudo no momento que a primeira cutilada o atingiu. — Nunca mais vou deixar vocês me tirarem nada!
O som da lâmina na carne do animal ecoou pelo beco, acompanhado dos uivos de agonia do cachorro. Kilian instintivamente cruzou os braços sobre o corpo. O sangue respingava nas paredes e no chão, enquanto os golpes violentos continuavam.
Ofegante, o homem, com o rosto coberto de sangue, arremessou o corpo inerte do cachorro num canto. Seus olhos furiosos agora se voltavam para Kilian.
— Vem! Agora é a sua vez, druida.
— Eu... eu não sou druida! — Kilian gritou, a voz embargada pelo medo. — Eu juro! Eu não sou druida!
O homem não respondeu, o cutelo ainda erguido. O cachorro perdia aos poucos seus movimentos, até não se mexer mais, seus olhos fitavam os de Kilian, seguidos de um ganido lamurioso, como se o animal fosse o profeta do destino do garoto.
— Ah, então você não é um druida? — rosnou o homem, seu rosto, manchado de sangue, coberto por uma cicatriz aberta que descia pelo seu rosto até o maxilar.
— N-não, senhor! Eu juro que não sou! — Kilian respondeu, a voz ainda embargada, enquanto lançava um último olhar de soslaio para o cachorro.
O animal ainda sangrava em meio a gemidos de dor e espasmos cada vez menores.
Sem dizer mais nada, o homem agarrou Kilian pela camiseta. Ele tentou resistir, mas logo parou, assim que o brilho do cutelo refletiu no canto de seu olho. O homem o arrastou para fora do beco, e o levou até as ruinas de uma construção próxima.
— Olha o que vocês fizeram!
O homem empurrou a cabeça de Kilian em direção ao corpo de um garoto estirado entre os escombros.
O cheiro da morte invadiu suas narinas. O corpo estava em estado deplorável, os membros retorcidos, os ossos expostos através de feridas profundas, e o rosto do garoto irreconhecível. Sangue seco manchava sua pele pálida.
— Olha o que vocês fizeram com ele! Seus druidas malditos! — A voz do homem saiu em um tom choroso.
Kilian, com a respiração entrecortada e soluços incontroláveis, se debateu para tentar escapar.
— Não, senhor! Eu... eu não sou um druida! — disse ele, a voz abafada em uma luta para respirar. — Por favor! Eu juro, eu não sou um druida!
O homem, tomado pela fúria, atirou Kilian em meio as pedras, enquanto erguia o cutelo.
Kilian tentou recuar, suas mãos se agarraram aos pedaços de escombros. Mas o homem o puxou de volta, seus olhos ardiam de uma forma quase insana.
— Viu o que a sua gente fez com o meu filho? Vocês tiraram tudo de mim! — disse ele, ao mesmo tempo que Kilian se arrastava pelo chão.
O homem o puxou de volta pelos cabelos, enquanto seus dedos machucados se agarravam nos destroços.
— Não! Por favor! — As palavras saíam em meio aos soluços, as mãos levantadas em desespero.
O homem hesitou por um breve momento.
O braço que segurava o cutelo tremeu.
— Não sou eu quem vai decidir... — murmurou o homem, sua respiração pesada. — Eu vou levar você pros paladinos.
— Não!
Com um puxão, ele ergueu Kilian à força. O garoto quase desabou novamente, suas pernas ainda vacilantes. Enquanto o homem o arrastava, o último gemido agonizante do cachorro ecoou pelo ar, vindo do beco distante.
— É bom você ter medo mesmo, druida. Quando os paladinos te pegarem. Vai se arrepender por eu não ter te matado.