Intangível Brasileira

Autor(a): Richard P. S.


Volume 1

Capítulo 1: Tucano Maldito

 

— Intangível? — disse o comerciante, enquanto ajeitava os barris de frutas.

— Intangível — repetiu o outro, ao estender os tecidos coloridos.

— Coisa de maluco, né? — o comerciante riu, depois de bater as mãos nas calças para tirar a poeira.

Antes que o segundo comerciante pudesse responder, algo voou por cima da banca.

Um garoto caiu no meio das frutas, tudo se espalhou pelo chão.

— Kilian! — gritou o comerciante, com as mãos à cabeça.

Kilian se ergueu num salto, com o rosto vermelho de vergonha.

— Desculpa! Não posso parar agora!

Sem dar mais explicações, ele disparou. Seus passos ecoaram pelas ruas enquanto os gritos do perseguidor se aproximavam.

— Vou te dar um pau que você nunca vai esquecer, seu otário! — berrava o perseguidor, cada vez mais perto.

Kilian olhou por cima do ombro.

— Otária é tua mãe, aquela gorda asquerosa!

Ele virou uma esquina e passou por um arco de pedra desgastado, típico da parte térrea de Jillar. As ruas ali formavam um labirinto apertado, com edifícios de pedra vermelha amontoados uns sobre os outros. Os becos eram tão estreitos que qualquer deslize o faria bater numa parede.

As pernas do perseguidor golpeavam o chão, pesadas, como se também quisesse o punir. Kilian, apesar de exausto, seus pés mal tocavam no chão.

— Se eu pudesse tirar ela daqui! Aposto que lá em cima nem sabem que a gente existe... — Kilian rosnou para si, enquanto lançava um último olhar para o céu, onde duas grandes massas de terra pairavam em diferentes alturas, com ilhas menores flutuando acima delas.

 Ele saltou de uma ponte de pedra e afundou ainda mais nas entranhas arenosas da cidade.

Assim que aterrissou, Kilian continuou sua corrida por entre os becos e vielas escondidos. As construções ao redor, decadentes e feitas de rochas vermelhas, pareciam emergir do solo árido. O cheiro de poeira e decadência pairava no ar, misturado ao calor sufocante.

— Acho que o babaca se perdeu...

Exaurido, Kilian diminuiu o passo, antes de olhar ao redor. 

Entre as frestas dos prédios de rocha, viu um aeroplano passar sobre ele. A nave, feita de madeira adornada com runas mágicas, tinha grandes velas que se agitavam graciosamente, quando a impulsionavam pelo céu.

— Uau... esse é enorme — murmurou, enquanto acompanhava aquele colosso de madeira com o olhar.

Com as mãos sobre os joelhos, Kilian se recompôs e continuou por entre as sombras dos edifícios, suas mãos tocavam as paredes ásperas. Seus pés, ainda inquietos, se moviam lentamente, ao mesmo tempo que ele aproveitava a momentânea tranquilidade.

Ao virar uma esquina, deparou-se com um grupo de crianças brincando com pedras, indiferentes ao mundo ao seu redor.

Kilian subiu algumas escadas, e voltou à superfície da cidade. O calor intenso o envolveu novamente enquanto ele emergia. De longe, o eco dos passos furiosos do perseguidor voltava a se aproximar.

— Que cara — disse a si mesmo, antes de começar a correr, seu perseguidor agora diminuía a distância mais uma vez.

Enquanto corria, Kilian adentrou uma praça movimentada. O aroma de especiarias e incenso misturava-se ao burburinho constante dos habitantes, e ao som distante de sussurros mágicos.

No centro, uma figura de metal permanecia imóvel. Quando Kilian passou, suas juntas emitiram um leve ruído, e um brilho fraco refletiu na superfície metálica.

Era um guarda autômato. Seus movimentos eram precisos, enquanto sua presença marcava o espaço em silêncio, como a única autoridade visível na área.

Ao redor da praça, bandeiras nas cores vermelho e branco balançavam suaves ao vento. Os símbolos nelas estampados indicavam algo além de mera decoração.

Kilian sorriu. — Se eu conseguir chegar no posto dos Beyaras, já era.

Os vendedores ambulantes conjuravam magias simples para manter seus produtos frescos, alheios à tensão que crescia nas proximidades.

— E aí, Nilego Tucano? Não tá vendo essas bandeiras, não? Território Beyara! Quer mesmo arranjar confusão aqui, seu Tucano idiota? Os soldados vão te amassar a pau! — gritou Kilian, antes de desviar por entre as pessoas em direção as bandeiras.

Nilego estava ganhando terreno, sua respiração por entre os dentes cerrados podia ser ouvida por Kilian.

— E daí? Vou quebrar todos os seus dentes na frente deles mesmo, seu infeliz!

Kilian imitou a entonação nasal do perseguidor com zombaria:

— “E daí? Vou quebrar todos os seus dentes na frente deles, seu infeliz!” — Primeiro vai ter que me pegar, Tucano desgraçado!

Os olhos de Kilian vislumbraram o caminho que o levaria até o posto Beyara.

Estava perto.

— Ali! Naquela esquina!

Ele acelerou o passo, mas, no último segundo, as pedras do pavimento, escorregadias, traíram seus pés. Ele perdeu o equilíbrio, tropeçou e, antes que pudesse se recompor, sentiu um tapa em suas costas.

O ar foi expulso de seus pulmões em uma tosse sufocante. Nilego tinha conseguido agarrá-lo pela camiseta. Mas o momento de glória do perseguidor foi breve. Em sua fúria e pressa, Nilego também escorregou nas mesmas pedras e caiu com um baque surdo.

Sem perder tempo, Kilian se desvencilhou, e mudou seu rumo.

— Muito longe! Preciso de outro plano.

Ao dobrar a rua, Kilian se deparou com um grupo de crianças, elas brincavam de pular corda, enquanto uma mulher os observava.

Kilian, ofegante e com olhos arregalados de urgência, gritou: — Sai da frente, bando de idiotas!

— E se eu não quiser? — desafiou uma das crianças, um menino de cabelos castanhos, assim como os de Kilian, e camiseta listrada.

Kilian, ao invés de responder, o empurrou no chão.

Com Nilego cada vez mais próximo, Kilian agarrou outra criança pela roupa e a jogou na direção dele, a fim de que fosse um obstáculo. Enquanto Nilego desviava para passar entre elas, sem machucá-las.

A mãe, indignada com a atitude, levantou-se. — Ei rapaz! O que você pensa que está fazendo? — perguntou furiosa.

— Vá se danar, velha ridícula! — respondeu ele enquanto continuava sua fuga, enquanto deixava a mãe perplexa para trás.

À medida que Kilian e Nilego se precipitavam na movimentada avenida, foram engolidos por uma agitação peculiar. Barracas de feira alinhavam a rua, elas exibiam frutas vibrantes, ervas mágicas brilhantes, e artefatos exóticos que atraíam olhares curiosos.

Kilian desviava habilmente por entre os transeuntes. Já Nilego, não tinha a mesma sorte e acabou esbarrando em algumas pessoas no caminho.

— Ei, cuidado! — gritou um vendedor, enquanto sua barraca de amuletos, quase derrubada, balançava perigosamente.

Na calçada, um grupo de construtos trabalhava sob o olhar atento de um supervisor. Ao verem a perseguição, pararam suas atividades e observaram, curiosos, o desenrolar da cena.

— Não tem onde se esconder, Kilian! — disse Nilego, ofegante, enquanto saltava sobre uma pilha de caixas.

— Só se eu fosse você com esse narigão, tucano infeliz! — rebateu Kilian, depois de desviar de uma vendedora de chás que quase derramou suas garrafas brilhantes.

Kilian se esgueirou ágil entre duas barracas, porem quase derrubou uma pilha de frutas. Nilego, com um último esforço, quase o alcançou, mas precisou fazer a volta pela banca.

Depois de atravessar a avenida, Kilian entrou em um beco estreito, quando ficou fora da vista de Nilego.

Dentro da viela, Kilian deu de cara com uma parede. Olhou rapidamente ao redor e viu uma porta entreaberta de uma casa de dois andares. Sem hesitar, ele se jogou para dentro, e a bateu com força.

Uma idosa tricotava na sala de estar, enquanto um homem lia ao lado. Ambos levantaram a cabeça, olhos arregalados.

— Desculpem! — gritou Kilian, enquanto disparava pela sala.

Na cozinha, uma jovem lavava pratos. Ao vê-lo, soltou um grito e deixou cair um, que se estilhaçou no chão. Kilian passou direto, os olhos fixos na escada à frente, enquanto subia de dois em dois degraus.

No andar de cima, Kilian esbarrou em um vaso. Ele caiu no chão com um estrondo, enquanto espalhava flores e água por toda parte. Mas Kilian não parou.

Correu até o quarto, escancarou a janela e olhou os telhados à frente.

— Não tenho muito tempo.

Um varal de arame se estendia entre as janelas vizinhas. Sem pensar duas vezes, passou pela abertura e agarrou o arame, que balançou sob seu peso.

Lá embaixo, dois cachorros grandes começaram a latir furiosamente, eles saltavam, enquanto tentavam abocanhá-lo.

— Vocês têm sorte que ninguém os confundiu com druidas ainda — murmurou Kilian, antes de respirar fundo enquanto se deslocava pelo varal, mão sobre mão.

Um dos cachorros pulou alto o suficiente para abocanhar um pedaço da sua calça, seus dentes rasgaram o tecido velho. O susto quase o fez cair, mas ele segurou firme, ao mesmo tempo que o arame cortou suas mãos.

— Ah, droga! — gritou Kilian e encolheu as pernas por reflexo. — Por que eu fui inventar de provocar esse cara? Maldito cara de sapo... quando eu te pegar…

Com um último esforço, Kilian se balançou até a janela aberta de outra casa, antes de entrar com um baque surdo.

O garoto se levantou num salto e cruzou o espaço da casa — móveis de madeira desgastados e uma lareira apagada. Passou por uma família que almoçava. Seus olhares congelaram no garoto, mas ninguém nem houve tempo de reagir até ele desaparecer pela porta dos fundos.

Do lado de fora, Kilian atravessou a rua larga, o calor abrasador do meio-dia fazia o suor escorrer sob suas roupas pesadas e remendadas. Não parou.

Mergulhou numa viela estreita, as paredes altas bloqueavam parte do sol.

Encostou-se ali, para recuperar o fôlego, os olhos atentos ao caminho que percorreu. Instintivamente, sua mão foi até o local do tapa, o epicentro da dor.

Logo depois, ele ergueu o olhar, a sua frente haviam algumas pichações na parede: "Os druidas salvarão a terra!" e "A natureza deve prevalecer!". Kilian apenas balançou a cabeça.

— Ainda tem gente louca pra apoiar esses druidas...

Após um longo suspiro, Kilian seguiu adiante.

Kilian saiu do corredor e entrou em outra rua, seus passos mais calmos agora. Seus olhos, no entanto, permaneciam atentos, como se varressem o entorno a cada segundo.

Passou por um grupo de soldados Beyaras, suas armaduras brilhavam sob o sol. Eles conversavam entre si, despreocupados, alheios à vigilância de Kilian.

Enquanto continuava pela rua, Kilian avistou um cachorro sarnoso, o animal revirava o lixo de um açougue na beira de um beco. Ele ignorou a presença de Kilian, focado em sua tarefa.

Sem aviso, Nilego surgiu da esquina à frente, cara a cara com Kilian. Sua expressão era uma máscara de fúria contida, as mãos já cerradas em punhos.

Kilian deu um passo para trás, quando sentiu a pressão aumentar.

— Achou que ia fugir, otário? — Nilego começou, os olhos como faíscas.

Mas antes que ele pudesse terminar, uma voz metálica ecoou pela rua:

— Atenção, cidadãos! Ataque druida em andamento. Recolham-se em suas casas e não abriguem animais!

A rua inteira congelou. O brilho de alerta do construto Beyara denotava a urgência da mensagem.

Kilian e Nilego trocaram um olhar.

Então, um assobio cortou o ar.

Uma mulher, que caminhava de mãos dadas com uma criança, foi atingida de repente. Cinco setas verdes, brilhantes como esmeraldas, caíram do céu, cravadas em seu corpo. O grito que escapou de seus lábios foi interrompido, e ela tombou no chão, antes de se contorcer em espasmos violentos.

— Mãe! — A criança gritou, ajoelhada aos prantos diante do corpo, o sangue da mulher se espalhou pelo chão poeirento.

Por um momento, Kilian e Nilego permaneceram imóveis, como se seus pés estivessem colados no chão.

— Druidas!

Alguém gritou, e a multidão explodiu.

As pessoas começaram a correr. Esbarravam umas nas outras em todas as direções. Gritos de desespero enchiam o ar. Kilian e Nilego, ainda frente a frente, foram rapidamente separados pela multidão em fuga.

Mais setas caíam do céu.

Kilian não esperou mais. Ele correu.



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