Volume 1
Capítulo 26: Incursão à luz do condutor púrpura: Parte 1
O rosto de Cara de Prancha mudou completamente; a expressão de raiva suavizou para algo mais sereno. Ele largou a faca de açougueiro e deu um abraço apertado em Kilian.
— Kilian! Já consegue caminhar! — disse ele, colocando as mãos sobre os ombros do garoto. — Sabia que nunca ia me arrepender de ter te trazido. Graças a você, estamos vivos.
Kilian sacudiu a cabeça, sorrindo levemente.
— Eu é que agradeço por tudo. Desculpa... eu sei que você não gosta que venham aqui, mas mesmo assim eu queria ver o que está fazendo.
Cara de Prancha deu um meio sorriso e assentiu.
— Claro, pode ver. Quer ajudar?
Kilian se aproximou, olhando para as ferramentas espalhadas ao redor. Cara de Prancha mostrava o funcionamento de cada uma.
— Veja, isso aqui — disse o anão, apontando para a bacia metálica inclinada — é um separador de sangue. Coloco o sangue do gigante aqui, adiciono esse pozinho especial e ele separa as impurezas. Dá uma olhada. Ficou só o que precisamos.
Kilian observou enquanto Cara de Prancha despejava mais sangue no dispositivo. O pozinho borbulhava ao entrar em contato com o líquido. Em seguida, o anão apontou para outra ferramenta — um cilindro grande com várias válvulas e tubos.
— E isso aqui é um destilador. Usamos para concentrar um componente do Purgeno. Tudo isso leva tempo e precisão, por isso não gosto de ser interrompido.
Kilian assentiu, fascinado. Cara de Prancha voltou sua atenção para o crânio do gigante, que já havia começado a abrir.
— Agora, se quiser ajudar, pode me passar aquele cutelo ali. — Ele indicou com a cabeça. — Vou aproveitar que você tá aqui e tirar uma coisa bem legal dos miolos desse gigante.
Kilian pegou o cutelo e entregou a Cara de Prancha. Observava o anão cortar cuidadosamente o tecido cerebral. As mãos dele trabalhavam com uma precisão quase cirúrgica. As canções antes obscenas agora tinham sido substituídas por instruções e explicações para Kilian.
— Viu isso? — perguntou o anão, apontando para uma pequena glândula brilhante dentro do crânio. — Essa porcariazinha aqui é o que faz aquela tempestade de gelo. É um objeto raro e poderoso, e vamos usá-lo para fazer um lingote de Albastrógeno.
Kilian prendeu a respiração por um instante, os olhos fixos nas mãos do anão, que executava a extração com precisão. Cara de Prancha parecia calmo, quase indiferente, como se aquilo fosse apenas mais uma tarefa. Kilian, por outro lado, estava imóvel. Os punhos se apertaram levemente enquanto tentava compreender o que estava diante dele.
— Isso... é mesmo Albastrógeno? — murmurou, com a voz fraca.
Cara de Prancha lançou um olhar rápido, sem entender a reação. Com um sorriso discreto, colocou a glândula dentro de um frasco.
— Ainda não. Vamos fazer um lingote — disse ele, como se falasse sobre algo corriqueiro.
Kilian piscou, tentando absorver o que aquilo significava. Parecia que o ar havia sumido da gruta.
— O que foi? — perguntou Cara de Prancha.
— Nada... — Kilian hesitou. — Só que, antes de ontem, um amigo e eu estávamos falando sobre Albastrógeno. Nunca imaginei que veria um desses de perto.
Cara de Prancha ergueu uma sobrancelha, notando o olhar congelado de Kilian.
— Não se anima. — O anão voltou ao trabalho. — Essa coisa também pode dar errado.
Kilian apenas assentiu, sem conseguir encontrar palavras.
— Então é por isso que são tão caros. Mas, se o Albastrógeno é tão difícil assim de conseguir... o Purgeno, então...
— Bem, garoto, agora você está começando a entender. Para conseguir extrair um lingote de Purgeno, vamos precisar matar mais seis desses. Cada gigante dá uma parte de dez para um lingote.
— E é possível fazer isso? Achei que cada ser vivo já tivesse o condutor pronto dentro de si.
— Não, não, não — resmungou o anão. — Pelo contrário. Todo ser vivo tem cada um dos condutores mágicos no corpo. É que cada lugar e cada quantidade são diferentes.
— Como assim, todos têm tudo?
— Acho que é melhor mostrar mesmo. — Cara de Prancha saiu de dentro da cabeça dissecada do gigante.
Ele caminhou até suas ferramentas.
— Vamos precisar virar esse grandão aqui, ou pelo menos chegar no espinhaço. O problema é que ele tá deitado com a pança para cima, e a gente precisa tirar as tripas e outras coisas que estão no caminho.
Kilian olhou para o gigante, percebendo a magnitude da tarefa.
— Certo! E o que eu preciso fazer?
Cara de Prancha pegou um grande cutelo e entregou ao garoto.
— Comece fazendo cortes largos aqui — disse ele, apontando para a barriga do gigante. — Precisamos tirar os intestinos e limpar o caminho até a espinha. Lá dentro ficam os nervos.
Kilian começou a cortar. O som da carne se rompendo competia com o da nevasca. Sua roupa se manchava com sangue e vísceras. Cara de Prancha trabalhava ao lado, com movimentos rápidos e precisos.
— Cara de Prancha, este aqui tem Zig Resil também?
Cara de Prancha deu um sorriso largo. — Tem, sim. Cada criatura é diferente.
— Entendi. O gigante tem o Albastrógeno na cabeça e o Purgeno no sangue, não é?
— É isso aí, garoto. Nos ossos, temos Zig Resil, e no espinhaço... mais um pouco de Albastrógeno, o suficiente para completar o lingote. — Cara de Prancha cravou a grande faca na lateral do gigante e se apoiou nela. — E algo especial também, mas em quantidade desprezível.
Kilian fez uma pausa, limpando o suor da testa.
— Especial, mas desprezível?
Cara de Prancha riu, um som profundo e gutural.
— Sim, é raro, mas não vale muito. A quantidade é tão pequena que, para conseguir um lingote, teria que matar uns dez mil gigantes adultos, guerreiros e do sexo masculino.
— Homens adultos, guerreiros…
— Sim. Essa é a única condição para que os gigantes do gelo possam produzir um dos componentes necessários para esse condutor.
Kilian assentiu e pegou o cutelo, os movimentos já automáticos. Ele e Cara de Prancha puxavam os intestinos do gigante, enquanto a carne escorregava em suas mãos. O cheiro ácido impregnava o ar, fazendo Kilian apertar o nariz por reflexo. Mesmo assim, manteve o foco na tarefa.
— E como você descobriu onde ficam os condutores? — perguntou Kilian, tentando manter a conversa enquanto trabalhava.
Cara de Prancha deu de ombros, sem parar de cortar.
— Anos de experiência, garoto. Um pouco de tentativa e erro. Cada criatura tem seus segredos, e parte do nosso trabalho é descobri-los.
Trabalharam em silêncio por um tempo, com o som dos cortes e o vento gelado preenchendo o ambiente. Até que finalmente chegaram à espinha exposta do gigante.
— Aqui estamos — disse Cara de Prancha, apontando para o espinhaço à mostra. — Agora, vamos ver o que conseguimos extrair.
Kilian observava com fascínio enquanto o anão sacava uma picareta e começava a golpear a espinha do gigante. Cada movimento parecia meticulosamente calculado, como parte de um ritual.
Havia algo reverente naquele trabalho.
— Kilian, meu filho — disse Cara de Prancha, sem desviar o olhar —, quanto mais raro o condutor, mais difícil é de extrair. Vá até minha bolsa, pegue o menor frasco que encontrar, um pouco de sal de troglodita e um par de orelhas de quimera. Depois, adicione mais sangue à bacia.
Kilian foi rápido em atender ao pedido. Vasculhou a bolsa, pegou os ingredientes e voltou ao lado de Cara de Prancha, que se inclinava sobre a medula do gigante.
— Rápido, estenda o frasco! — ordenou Cara de Prancha, os olhos fixos no ponto exato onde trabalhava.
Kilian estendeu o frasco, e o anão misturou habilmente os ingredientes. O sal e as orelhas de quimera foram adicionados enquanto ele mexia com a faca dentro do tubo ósseo, onde se enredavam nervos complexos. Um líquido espesso, de cor alaranjada e amarelada, começou a escorrer devagar.
Assim que o frasco estava cheio, Cara de Prancha o fechou com uma rolha.
— Isso aí, garoto, é Tritângeno — disse Cara de Prancha, com um sorriso satisfeito no rosto.
Kilian olhou para o frasco em suas mãos, boquiaberto.
— Tritângeno... — murmurou. — Pensei que esse condutor era uma lenda.
Cara de Prancha riu de leve.
— Se fosse, você não estaria segurando um aí.
Kilian franziu a testa, ainda encarando o frasco.
— Ouvi dizer que um lingote de Tritângeno vale dez vezes mais que um de Purgeno. Isso é verdade?
— Verdade — confirmou o anão, acenando com a cabeça. — É quase impossível encontrar alguém no mundo com joias ou equipamentos feitos com esse condutor.
— Não acredito — murmurou, encarando o frasco. — Isso é tão raro...
— Sim, é raro — assentiu Cara de Prancha. — Um condutor desses pode armazenar até oito encantamentos ou magias em um item mágico. Pra você ter ideia, Zig Resil armazena um, Albastrógeno, dois, e Purgeno, quatro. Por isso o Tritângeno é tão valioso.
Kilian segurou o frasco com mais firmeza, espantado por ter algo tão precioso nas mãos.
— Esse aí é seu — disse Cara de Prancha, sério. — A quantidade é tão pequena que matar gigantes do gelo pra conseguir Tritângeno é praticamente impossível.
— Sério? E você sabe o que pode produzir isso?
— Com certeza que não. Talvez só os arquidruidas consigam produzir em grandes quantidades, pra fazer um lingote. Mas pra derrotá-los...
Kilian engoliu em seco, os olhos arregalados, apertando o frasco com mais firmeza.
— O que eu faço com isso? — perguntou, ainda incrédulo.
— Guarde bem, ou faça uma correntinha pra usar — sugeriu o anão.
Kilian fez uma careta. — Isso é coisa de mulherzinha.
Cara de Prancha riu. — Verdade, Maya tem uma dessas também. Guarde como lembrança do Cara de Prancha, quando você voltar pra sua família.
Kilian assentiu, guardando cuidadosamente o frasco.
— Agora vem a parte decisiva — disse Cara de Prancha, os olhos brilhando de expectativa. — Isso vai definir se amanhã a gente come bem ou dorme na rua. Kilian, vá lá fora e veja se a luz das luas está posicionada como marquei.
Kilian correu para fora da carcaça do gigante. Na neve, encontrou estacas cravadas no solo, formando um círculo intrincado, cada uma com marcações específicas indicando posições. Mesmo com as nuvens densas no céu, as estacas serviam como guias para os cálculos do anão.
Ele olhou para o céu, tentando distinguir as luas entre as nuvens. Conferiu cada estaca, lembrando-se das instruções de Cara de Prancha.
— Falta pouco — murmurou.
Depois de alinhar as posições das luas com as marcações, assobiou.
Dentro da carcaça, Cara de Prancha ouviu o assobio e sorriu.
— Está na hora! — exclamou, trabalhando rápido na medula do gigante.
Pouco depois, uma luz intensa começou a emanar da carcaça colossal. Garrik, despertado pelo assobio, saiu da semi-gruta, ainda sonolento.
— O que está acontecendo, Kilian? — perguntou, esfregando os olhos.
Kilian, animado, apontou para a carcaça. — Cara de Prancha está trabalhando no Albastrógeno. Pela luz, parece que deu certo.
Garrik balançou a cabeça. — Nem sempre. A luz aparece tanto quando dá certo quanto quando dá errado.
— Sério? — Kilian perguntou, surpreso.
Garrik assentiu.
Kilian correu de volta até a carcaça para conferir.
— Deu certo? — perguntou, curioso, olhando para Garrik.
— Entra aqui e veja você mesmo — respondeu Cara de Prancha, seco e direto.
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