Intangível Brasileira

Autor(a): Richard P. S.


Volume 1

Capítulo 21: O dilema de Kilian

Ao redor, os frequentadores da taverna pararam o que faziam. Um silêncio breve foi seguido por sussurros e risos abafados. Alguns clientes se viraram para observar a dupla. Outros trocaram olhares cúmplices, murmurando sobre o incidente.

— Desculpa! — disse Kilian, ao ver a expressão dela.

Maya bufou, enxugando o rosto com a manga da túnica. A substância pastosa grudava na pele e no cabelo. Seus olhos faiscavam de frustração.

— Você tem algum problema? — disse ela, a voz trêmula e embaraçada. — Isso não é normal! Veja se não houve algum efeito colateral. Fiquei toda empastada com esse leite... que nojo!

Kilian baixou os olhos para a mão direita.

O que viu fez seu corpo enrijecer.

A pele estava rasgada, com cortes profundos dos quais o sangue escorria em filetes grossos. Os dedos tremiam levemente, mas não se moviam.

O rubor desapareceu de seu rosto. Ele ficou pálido. O olhar se prendeu à carne exposta, os olhos arregalados. Não piscava.

O mundo ao redor sumiu. Só restava o som do sangue gotejando no chão.

Maya suspirou, ainda limpando o rosto. Tentava manter a calma.

— Não se pode lançar magias sem preparo. Senão... isso acontece.

Kilian continuava em choque. Respirava com dificuldade.

Ele ergueu a mão devagar. Os cortes pareciam ainda mais profundos agora, e a carne, mais exposta.

Ao vê-lo naquele estado, Maya suavizou o semblante.

— Deixe-me ver — disse ela, pegando um pano. — Precisamos cuidar disso antes de continuar.

Kilian assentiu, assustado. Estendeu a mão dilacerada.

Maya tocou os dedos dele, sem gestos ou palavras. Uma luz azul brilhou em sua pele, fechando os ferimentos. A carne se recompôs. A pele voltou ao normal.

Kilian ergueu os olhos para ela. Os lábios entreabertos, mas sem som. Piscou lentamente, o peito subindo e descendo com esforço.

— Isso é normal? — perguntou, a voz trêmula.

Maya parecia distante.

— Se dilacerar por usar magia sem preparo? Sim. Mas...

Ela franziu o cenho.

— Tem algo errado com essa energia rosa. Isso sim é anormal.

— O que quer dizer com isso? Nunca fiz magia antes... — disse Kilian. Os olhos ainda vidrados, como se não conseguissem focar.

Maya pensou por alguns segundos.

— Etherdorium. Parece cristal de Etherdorium. Você esteve perto de algum?

Kilian hesitou.

— Sim... eu entrei na sala autômata do aeroplano lixeiro...

— Ficou louco? Ou já nasceu sem juízo? — Maya apertou os olhos, as sobrancelhas arqueadas e a boca entreaberta. O rosto mostrava choque e preocupação.

Kilian recuou, assustado.

— Por que está dizendo isso?

— Se isso for verdade, você está contaminado com Etherdorium. Esses cristais de aeroplanos são muito concentrados. Olha o peso que eles levantam! É lógico que, ao ficar exposto, sua capacidade mágica aumentou. Por isso conseguiu usar magia daquele jeito.

Ela pausou.

— Mas os efeitos colaterais...

— Não entendi nada. Pode resumir? — perguntou Kilian. Suas mãos, agora imóveis, pendiam ao lado do corpo, sem força.

— Acho melhor você não treinar, nem usar magia por um tempo — respondeu Maya, enfática.
— Se continuar, pode morrer.

Kilian engoliu em seco. Seus olhos piscaram rápido. Ele desviou o olhar para o chão.

— Então… não posso usar magia? Nem um pouquinho? — perguntou, com a voz trêmula.

— Nem um pouquinho — Maya disse, firme. — Se tentar, seu corpo não vai aguentar.

Kilian olhou para as próprias mãos. A lembrança dos ferimentos pulsava em sua mente.

— Mas… como vou aprender magia se não posso praticar?

Maya suspirou. Tirou o casaco de pele sujo de leite e ajeitou os cabelos emplastados.

— Primeiro você precisa estabilizar sua condição. O Etherdorium é perigoso.

Kilian balançou a cabeça. Tentava manter a calma.

— E como fazemos isso?

Maya levantou-se da cadeira. Balançou a cabeça lentamente.

— Eu… não sei como resolver isso, Kilian.

O garoto ficou ainda mais pálido.

— O quê? Então... o que eu faço?

— Os anões te convidaram para essa missão, certo? — disse Maya, caminhando pelo salão da taverna em direção às escadas.

— Sim, mas o que isso tem a ver? — perguntou, ansioso.

— Pede ajuda pra eles, não pra mim. Amanhã será um dia longo — ela disse, desaparecendo pelas escadas. — Vou descansar agora. Precisamos estar em plena forma para enfrentar o gigante do gelo.

Kilian encostou o antebraço na parede, apoiando a testa. Os ombros caídos denunciavam o peso da dúvida.

— E agora...? — murmurou, a voz abafada pelo braço.

Ainda de cabeça baixa, mal percebeu quando a porta da taverna se escancarou com estrondo. Os dois anões entraram, as botas ecoando no chão de madeira.

Cara de Prancha foi o primeiro a falar, com o sorriso típico e energia vibrante:

— E essa sujeira toda? Kilian, cadê a Maya?

Nariz de Batata o encarou, coçando o bigode.

— Está tudo bem, garoto?

Kilian soltou um longo suspiro, a voz carregada de embaraço:

— A Maya... acabou toda coberta de leite. Eu... tive um probleminha com magia.

Antes que pudesse continuar, os anões explodiram em gargalhadas, batendo nas mesas e nos joelhos.

— Coberta de leite, é? — disse Nariz de Batata, ofegante de tanto rir. — Garoto, você tem jeito pra arrumar confusão!

— A cara dela deve ter sido impagável! — completou Cara de Prancha, ainda rindo alto.

Kilian, agora sério, continuou:

— Ela disse que eu posso morrer se usar magia. Que estou contaminado com Etherdorium.

Nariz de Batata parou de rir. O olhar ficou sério.

— É mesmo? E por que você ficou em contato com uma coisa tão perigosa?

— Entrei numa sala autômata de um aeroplano. A gente não tinha dinheiro pra descer de forma convencional — explicou Kilian.

Cara de Prancha deu um tapa de leve nas costas dele, sorrindo: — Não se preocupe, garoto. Magia é coisa pra quem gosta de complicar a vida!

Nariz de Batata, um pouco mais sério, comentou: — É, deixe essa magia de lado por enquanto. Essas coisas são perigosas mesmo.

Kilian assentiu, ainda apreensivo.

— Tudo bem. Vou fazer isso.

Os anões trocaram olhares e se voltaram para Kilian — Cara de Prancha com um sorriso travesso, Nariz de Batata com um olhar mais contido. Este foi o primeiro a falar:

— Garoto, conseguimos comprar uma coisa pra você. — Ele puxou um casaco de pele do saco que carregava.

Kilian pegou o casaco, os olhos arregalados.

— Uau... obrigado! Nunca tive uma roupa nova assim antes.

Cara de Prancha sorriu e pousou a mão pesada em seu ombro.

— Escuta bem, garoto. Dez tiros de pau de fogo primo não vencem um gigante de gelo. Mas coragem... coragem muda o jogo. E você mostrou que tem culhões.

Kilian apertou o casaco contra o peito. As palavras do anão ressoavam em sua mente.

— Por isso — continuou Cara de Prancha, com um brilho no olhar —, vou te ajudar com o dinheiro que você precisa. Essa missão vai te dar o que for necessário pra seguir em frente.

Nariz de Batata, mais contido, assentiu.

— Estamos nessa com você. Não se esqueça, agora você é um de nós.

Kilian os olhou com a emoção borbulhando nos olhos.

— Eu... não sei nem como agradecer. Prometo que vou dar o meu melhor.

Os três riram juntos. Ainda trocavam brincadeiras quando Cara de Prancha perguntou:

— Já comeu alguma coisa, garoto?

Kilian balançou a cabeça.

— Ainda não. Na verdade, acabei me esquecendo.

— Isso não pode ficar assim — disse Nariz de Batata. — Vamos resolver isso.

Eles chamaram o taverneiro e pediram comida. Depois de um banquete de carne assada e pão fresco, Cara de Prancha fez sinal para o homem de novo.

— Isso mesmo, um banquete digno de um anão! — Cara de Prancha acrescentou, piscando para Kilian.

— Precisamos de um quarto para o nosso amigo aqui — disse Nariz de Batata, apontando para ele.

O taverneiro assentiu, sorrindo.

— Claro, senhor. Vou preparar um quarto imediatamente.

— Obrigado. Vocês são incríveis.

Nariz de Batata sorriu.

— Eu já não disse que você é um dos nossos?

Cara de Prancha abriu um sorriso largo.

— E amanhã, vamos mostrar pra esses gigantes do gelo o que é coragem de verdade. Mas, por agora, descanse. Vai precisar de todas as suas forças.

Kilian subiu as escadas. Suas mãos ainda tremiam levemente.

Ao alcançar o quarto, entrou devagar. Sentou-se na cama, os dedos passando de leve pelo tecido grosso do cobertor.

As palavras de Maya ainda ecoavam em sua mente.

Deitou-se de lado, puxando o cobertor até o queixo. Lá fora, o sol ainda brilhava, mas o peso do cansaço já pressionava seus olhos.

Kilian suspirou. Os músculos, por fim, relaxaram.

Em poucos instantes, ele se entregou ao sono.

— Consegui, Melangie. Vamos fazer a viagem.

***

No quarto da taverna, Maya encheu a banheira.

Assim que encheu, colocou a mão na água e murmurou algumas palavras. O líquido começou a ferver instantaneamente.

Tirou a roupa suja de leite com movimentos metódicos. Em silêncio, entrou na banheira e abraçou os joelhos.

O vapor subia ao redor do seu corpo.

— Anos... Anos para aprender a flutuar uma esfera líquida... — murmurou entre os dentes cerrados.

Apertou os joelhos com mais força. O rosto se contorcia de frustração.

— E ele... Ele consegue na primeira tentativa!

Bufou. Os olhos ardiam.

— Era o meu truque... Meu momento...

Olhou para o teto. A irritação fervia como a água ao redor.

— Como é possível? O que tem de errado com ele?

Um soluço de raiva escapou.

— Não é justo... Nada justo...

Afundou o rosto nos joelhos e deixou a frustração sair em silêncio.

Na manhã seguinte, Kilian, Maya e os anões se encontraram no saguão da taverna. Todos estavam equipados e prontos para partir.

Maya evitava olhar diretamente para Kilian. Mexia nos próprios pertences com movimentos automáticos, o semblante fechado.

Kilian tentou quebrar o silêncio e se aproximou.

— Maya, eu só queria dizer…

— Lembre-se do que eu disse ontem sobre magia — cortou ela, sem erguer os olhos do chão.

Cara de Prancha e Nariz de Batata trocaram um olhar cúmplice.

— As mulheres sabem como ser cruéis — comentou o primeiro, com um sorriso torto.

Com os preparativos concluídos, o grupo seguiu pelas ruas labirínticas dos Quangras. O burburinho dos mercados e os gritos dos vendedores se misturavam ao som das botas ecoando pelas pedras antigas.

O cheiro de especiarias impregnava o ar, e as sombras das construções quase se tocavam. Após uma longa caminhada, chegaram ao local do portal: um teatro antigo, de fachada deteriorada, escondido atrás de cortinas pesadas de veludo desbotado.

Perto da entrada, um jovem humano aguardava. Devia ter pouco mais de vinte anos. Tinha cabelos loiros bem aparados e vestia roupas elegantes em tons de verde, branco e dourado — um contraste gritante com o cenário decadente do teatro.

Seus olhos atentos se fixaram em Kilian.

— Então, é o Kilian de quem os anões tanto falam? — perguntou, aproximando-se com um sorriso leve. — Garrik Valendria. Prazer em conhecê-lo. Já ouvi muito sobre você.

Estendeu a mão com naturalidade. Havia algo acolhedor em sua postura.

Kilian hesitou por um momento, surpreso com a recepção. Apertou a mão do rapaz e sorriu, um pouco tímido.

— Oi, Garrik. O prazer é meu. Espero ser útil nessa missão.

Garrik manteve o sorriso. Seu olhar suave parecia ver além das palavras, como se captasse algo mais profundo. A presença dele tinha algo tranquilizador — e isso ajudava a dissolver um pouco da tensão em Kilian.

— Vamos conversar sobre a missão antes de atravessarmos o portal — disse ele, agachando-se no chão de madeira.

Com um pedaço de carvão, começou a desenhar um mapa simples.

— Nosso objetivo é localizar e eliminar o gigante do gelo. Vamos atraí-lo até este desfiladeiro. Lá, fazemos como de costume.

Apontou para Kilian.

— Você vai atirar à vontade. Só peço que se mantenha à distância.

Os anões assentiram com a cabeça, enquanto Kilian digeria tudo aquilo.

— Então, estamos prontos para partir? — perguntou Garrik, erguendo os olhos para o grupo.

Antes que pudessem responder, uma voz interrompeu a cena:

— Esperem!

Darin surgiu correndo, seguido por Nilego e Imaniul. Os três ofegavam.

— Queremos ir com vocês! — exclamou Darin, sem fôlego.

Apoie a Novel Mania

Chega de anúncios irritantes, agora a Novel Mania será mantida exclusivamente pelos leitores, ou seja, sem anúncios ou assinaturas pagas. Para continuarmos online e sem interrupções, precisamos do seu apoio! Sua contribuição nos ajuda a manter a qualidade e incentivar a equipe a continuar trazendos mais conteúdos.

Novas traduções

Novels originais

Experiência sem anúncios

Doar agora