Volume 1
Capítulo 19: A Missão de portal
— É aqui? — perguntou Kilian, ao apontar para o beco escuro à frente.
Darin assentiu. — Confia. O velho Boran trabalha nesse canto desde sempre.
A oficina de Boran parecia mais um reduto sufocante do que um local de trabalho.
Engrenagens enferrujadas, peças metálicas e ferramentas de todos os tipos cobriam o chão e as prateleiras. Era como se o caos tivesse virado decoração.
Lá no fundo, um construto gigantesco se erguia incompleto, desmontado como um cadáver em armadura.
— Parece um cavaleiro... — Kilian sussurrou. — Ou o que sobrou de um.
As peças espalhadas pelo chão lembravam fragmentos de um quebra-cabeça esquecido. As juntas, os braços, o peito — tudo espalhado com uma estranha precisão.
Perto do construto, um homem robusto ajustava uma ferramenta incomum sobre uma das peças. Tinha cabelos grisalhos, braços largos e uma expressão que não convidava conversa.
— É ele? — Imaniul perguntou.
— É — Darin respondeu. — Boran.
O velho ergueu os olhos. Havia algo duro ali, como aço sob pressão.
— Que merda! Vocês levaram a manhã toda para chegar aqui — Boran cruzou os braços e estreitou os olhos.
— Claro que não! Chegamos na hora certa, como o senhor pediu — retrucou Darin.
O homem bufou e resmungou algo, enquanto os jovens se aproximavam do construto.
— Gostaram? Esse aí era um antigo Sentinela Arcano Quangra, usado nas guerras contra os druidas. Detectava e neutralizava magias inimigas — disse Boran, passando a mão pelos detalhes enferrujados da armadura. O tom de voz trazia admiração.
Com um leve empurrão, ele abriu um compartimento oculto no peito da armadura — uma espécie de gaveta escondida.
— Aqui, os Quangras colocavam itens mágicos. O Sentinela era programado para interpretar e usar essas magias conforme a necessidade no combate — completou o velho, com um traço evidente de orgulho na voz.
Os jovens trocaram olhares, atentos às palavras do velho.
Darin, mais prático, interrompeu o momento. — E os paus de fogo primo?
— Pois é — disse Boran. — Precisamos conversar sobre isso.
— Conversar? — perguntou Nilego.
— Isso. Antes de prosseguirmos, preciso esclarecer: vocês trouxeram noventa e seis paus de fogo primo, não cem — afirmou com firmeza.
— Como assim? Conferimos tudo antes de sair. — Darin abriu os braços em protesto.
— Pois bem, aqui estão eles — continuou, apontando para a bancada. Ele pegou um dos paus separados no chão e o mostrou aos jovens. — Esses aqui não prestam.
— E agora, pessoal? O que vai ser? — perguntou Darin, preocupado.
Boran suspirou. — Vamos dividir como combinamos. Cada um fica com sua metade. Isso dá quarenta e dois para vocês — disse ele, separando os montes com cuidado.
Darin assentiu, tentando esconder a decepção. — Entendi. Agradecemos, Boran.
Antes de sair, Darin olhou mais uma vez para ele. — Se a gente precisar de mais alguma coisa... ainda pode voltar?
Boran apenas acenou com a cabeça. — É, mas não se atrasem da próxima vez.
Assim que terminaram, deixaram a oficina e caminharam até uma praça deserta. Darin desamarrou os fardos e começou a dividi-los em quatro montes iguais, sob o olhar atento dos outros.
— Cada um fica com dez — disse ele, finalizando a divisão. — Ainda sobram dois.
Kilian olhou para os outros. — Sorteio?
Imaniul franziu a testa. — E se, em vez disso, a gente vendesse esses dois? Dividimos o dinheiro e aproveitamos pra vender os nossos também.
— Tudo bem. Vamos ao mercado ver quanto conseguimos — disse Darin, sério.
O mercado fervilhava de vozes. Kilian desviou de um vendedor que agitava bandejas de frutas e olhou para os lados, tentando não perder os outros de vista.
Darin segurava firme os paus de fogo, como se já sentisse o peso das moedas que esperava receber.
— Com essas coisas funcionando, vamos conseguir três ou quatro peças de prata, fácil — comentou Kilian, enquanto cruzavam por entre barracas lotadas.
Eles se aproximaram de um comerciante carrancudo, que pegou um dos paus e o girou nas mãos.
— Duas peças, no máximo — murmurou, sem sequer levantar o olhar.
Darin deu um passo à frente, indignado.
— Duas? Isso não paga nem metade!
Imaniul colocou a mão no ombro de Darin, puxando-o para trás com um olhar firme.
— Vamos procurar outro. Não adianta discutir com quem não sabe o que tem nas mãos.
Tentaram em mais algumas barracas, mas a resposta era sempre seca e desinteressada. Nilego bufou e bateu o pé no chão. Seu rosto estava contorcido de frustração.
— Isso é um assalto — sussurrou entre dentes, enquanto olhava para os mercadores mais distantes.
Enquanto discutiam, um anão de cabelos longos e negros, barba espessa, se aproximou. Ele sorria de forma maliciosa.
— O que fazem garotos tão jovens com tantos paus de fogo primo? — disse ele, rouco e divertido. — Planejando assaltar um aeroplano, talvez?
Os jovens trocaram olhares desconfiados antes de Darin responder: — Estamos tentando vender isso — explicou Darin, encarando o anão de olhos azuis. — Tá a fim?
— Paus de fogo primo, hein? Parece uma história interessante — disse o anão, com um brilho nos olhos. — Eu sou o Cara de Prancha. E vocês?
Os garotos se apresentaram e contaram sua jornada até ali.
— E por que tão tentando vender essas gracinhas se podem atirar em alguma coisa com eles? — perguntou o Cara de Prancha, com um sorriso.
— É que além de não termos experiência com esse tipo de coisa, precisamos de dinheiro. — respondeu Darin.
— Sem experiência e sem dinheiro... Um amigo meu também não tinha. Mas era teimoso feito mula. Então, ele foi chamado para uma missão simples: investigar um portal. Quando voltou, nunca mais conseguiu tomar cerveja.
Os jovens se entreolharam, a confusão evidente entre eles, mas ninguém ousou perguntar.
— Sabe por quê? — perguntou o anão, segurando uma gargalhada. — Porque ele perdeu os dois braços!
O grupo trocou olhares incertos, sem saber como reagir à risada do anão. Ele terminou de rir e, com um aceno despreocupado, seguiu seu caminho, deixando-os parados ali.
— Se quiserem vir, artilharia nunca é demais. Estarei na taverna Brasa e Ferro. O nome é de boiola, eu sei. Mas a cerveja de lá vale a pena... se você ainda tiver os braços pra beber — disse ele, gargalhando.
— E agora? — perguntou Kilian, cerrando os punhos e olhando, frustrado, para os colegas.
— Acho que não vamos conseguir mais do que duas peças de prata aqui — disse Darin, pensativo.
— Pra falar a verdade, eu esperava mais dinheiro. Mas... já tô me contentando com o que eles oferecem — disse Imaniul, dando de ombros.
— Eu vou ver se tento vender para algum aventureiro — disse Nilego. — Eles tão sempre procurando por isso. Quem sabe consigo um preço melhor?
— Eu vou com o anão. Vendam os dois paus que sobraram para os comerciantes. Vou precisar dessa peça de prata pra comprar suprimentos — Disse Kilian, com um suspiro.
Todos concordaram, e Kilian partiu sozinho.
Kilian caminhava pelas ruas dos Quangras. Desviava dos transeuntes, os olhos atentos às construções ao redor.
Ele apertou os paus de fogo primo nas mãos e cerrou os dentes.
— Dez peças de ouro? — murmurou. — Que piada.
Ele parou por um instante, levantando os olhos para o céu. As ilhas flutuantes dos Letnicianos dançavam nas nuvens, inatingíveis.
— Melangie... — sussurrou, e abaixou os olhos. — Eu prometi. Você vai ter sua viagem de aeroplano, antes que...
Ele balançou a cabeça para afastar o pensamento. Seus passos voltaram a acelerar, firmes.
— Cara de Prancha... é a única saída — concluiu, com palavras que quase se dissolviam no vento.
Ao virar a esquina, Kilian ouviu uma voz alta, ríspida, rompendo o barulho usual das ruas.
Ele parou.
Um homem de roupas simples estava em pé sobre uma caixa. Cabelos desgrenhados, tamborim pendurado no cinto, colar de folhas secas no pescoço. Gesticulava com força, chamando os olhos de todos ao redor.
— A civilização está destruindo o que resta da natureza! — bradou. — As florestas são derrubadas, os rios poluídos!
Uma pequena multidão começava a se formar. Curiosos paravam, alguns cruzavam os braços, outros apenas franziam o cenho.
— As criaturas que habitam esses lugares são expulsas. Mortas! — continuou, a voz fervorosa. — Mas os druidas… os druidas lutam! Eles protegem o equilíbrio!
Kilian cruzou os braços, impassível.
Seus olhos se fixaram no homem, frios.
O arauto o notou. Parou por um instante. Ambos se encaram.
Sem dizer nada, Kilian cuspiu no chão.
Virou as costas e seguiu em frente.
Atrás dele, a voz do homem crescia de novo, mais estridente.
— Não podemos permitir que essa destruição continue!
Kilian parou em frente à taverna Brasa e Ferro. A fachada escurecida pelo tempo trazia um brasão com uma forja flamejante, que ainda pulsava sob a madeira rachada.
— É aqui mesmo... — murmurou, empurrando a porta pesada.
O rangido da madeira foi abafado pelo som ambiente. Lá dentro, o cheiro forte de carne assada e cerveja impregnava o ar. O calor da lareira abraçava o salão.
Homens de roupas simples dividiam mesas com aventureiros, armaduras leves e armas presas às costas. Canecas batiam contra a madeira, e vozes roucas se misturavam à música suave de um alaudista no canto.
— O que um pirralho tá fazendo aqui? — murmurou alguém, mas ninguém riu.
Kilian ignorou. O chão estalava sob seus sapatos velhos, mas seus olhos varriam o salão com atenção.
No fundo, uma mesa destoava das demais. Cara de Prancha estava lá, largado numa cadeira com o peito inflado. Ria alto com um anão de cabelo loiro e bigode espesso, que parecia ter mais vinho do que sangue nas veias. Ao lado, uma garota de cabelos castanhos mantinha a postura ereta e os olhos atentos. Ela não sorria — escutava.
Kilian se aproximou devagar.
Cara de Prancha e o outro anão estavam envolvidos em uma animada troca de ofensas.
— Ei, Nariz de Batata, se seu nariz crescer mais um pouco, vai precisar de um elmo só pra ele! — provocou Cara de Prancha, rindo alto.
— E você, Cara de Prancha, sua cabeça é tão achatada que se cair de um penhasco, vai bater e quicar de volta! — rebateu Nariz de Batata, gargalhando.
— Seu sarnento, cabeça de porco, cretino! — continuou Cara de Prancha.
Nariz de Batata deu um sorriso malicioso. — Seu feio, com pele de orc, amante de uma goblin de três tetas!
— Monte de merda com cabeça de bigorna! — Cara de Prancha retrucou.
— Seu tolo, comedor de minério, beijador de troll! — Nariz de Batata riu, recebendo um tapinha nas costas de Cara de Prancha.
Kilian, observando a troca de insultos, não pôde deixar de sorrir. Ele se aproximou ainda mais da mesa, e Cara de Prancha o notou primeiro.
— Ah, o garoto dos paus de fogo primo! — exclamou Cara de Prancha. — Sente-se, meu jovem! Onde estão os outros?
— Eles não vêm — disse Kilian, ao se sentar, olhando para os dois anões e depois para a garota ao fundo.
— Este é o Nariz de Batata — disse ele, apontando para o anão loiro. — Não se preocupe, ele é feio, mas é inofensivo.
Nariz de Batata sorriu, balançando a cabeça. — E o Cara de Prancha aqui só é útil pra assustar raparigas. E você, garoto, o que sabe fazer?
— Eu sou Kilian. Filho de uma paladina — disse Kilian, tentando parecer confiante.
Cara de Prancha assentiu, parecendo satisfeito. — Muito bem, Kilian. E aquela ali é Maya Vhan — disse ele, apontando para a garota.
Maya lia um livro e, com a outra mão, manipulava a cerveja, fazendo-a flutuar em forma de uma esfera.
Kilian estendeu a mão para Maya, tentando ser educado. — Prazer em conhecê-la, Maya.
Maya finalmente desviou seus olhos castanhos do livro, olhando para Kilian por baixo das sobrancelhas. Ela deu um sorriso leve com o canto do lábio, apertou a mão dele e voltou a ler.
— Então você tá pronto pra uma missão — disse Cara de Prancha, erguendo sua caneca em um brinde.
Nariz de Batata olhou para Kilian com um sorriso sarcástico. — Espero que saiba que vai precisar de mais roupas do que isso para sobreviver.
Kilian olhou curioso para Nariz de Batata. — Mais roupas? Mas aqui sempre é quente de dia.
Nariz de Batata riu. — Primeiro de tudo, vamos numa missão de portal. Você vai precisar de roupas boas para o frio. Para onde vamos tem neve, muita neve. Um casaco de pele de urso deve resolver.
Kilian franziu o cenho, intrigado. — Neve? O que é isso?
Cara de Prancha soltou uma risada estrondosa. — Nunca viu neve, garoto? É água congelada, cai do céu. É fria pra cacete.
Maya levantou o olhar do livro por um momento. — Onde vamos, o frio é implacável. Você precisa estar preparado.
— A não ser que você confie na magia da pequena Maya — disse Nariz de Batata.
— Caramba. Eu não tenho dinheiro pra comprar roupas desse tipo — resmungou. — Mas afinal, que tipo de missão é essa que exige tanta preparação? — Kilian perguntou, a curiosidade aumentando.
Nariz de Batata inclinou-se para frente, um sorriso conspiratório nos lábios. — Nossa missão? Vamos matar um gigante do gelo.
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