Intangível Brasileira

Autor(a): Richard P. S.


Volume 1

Capítulo 18: Hospitalidade estrangeira

Kilian caminhava pelas ruas, cabisbaixo, como se algo pressionasse seus ombros. As luzes da cidade se estendiam à sua frente como um labirinto sem fim. Ele andava sem rumo, sem encontrar uma direção clara.

De repente, uma gritaria cortou o murmúrio constante da rua.

Uma mulher de pele morena e cabelos brancos discutia com um vendedor. Suas mãos gesticulavam no ar, rápidas e indignadas.

— Isso aqui não vale nem metade do que você tá pedindo! — disse ela, apontando para uma pequena caixa de madeira.

Kilian se aproximou, atraído pelos tons agudos da discussão.

— Tá duvidando do meu preço? Eu já disse que não vendo itens para estrangeiros. Jillar é para os Jillarianos!

— Mas eu sou uma aventureira! Vim de longe para lutar por Jillar, contra os druidas! — a mulher ergueu sua voz, suas mãos agitadas no ar.

— Ei! Por que você tá tratando ela assim? — perguntou Kilian, tomando a frente da mulher.

— Não se meta, garoto da superfície. — retrucou o vendedor, visivelmente irritado.

— Me meto sim! — Kilian respondeu, antes de cruzar os braços. — Você só vende quinquilharias! Qual a diferença? Se alguém de Jillar quisesse comprar já teria feito isso. Por que não vende para ela de uma vez? Não vê que está espantando os clientes?

O vendedor encarou Kilian, o olhar relutante. — Tá, leve o que quiser de uma vez. — cedeu, contrariado.

— Muito obrigada — disse a mulher, apontando para um colar delicado. Ela sorriu com os olhos e os lábios.

— Sim, acho que vai ficar ótimo em você. — respondeu Kilian, enquanto a mulher pagava o vendedor.

— Por que você se importou? — perguntou a mulher com um olhar curioso.

— Por nada. Mas, mudando de assunto, pela sua cor de pele e cabelo, dá para ver que você vem das terras combatentes. É ou não é?

—  Sim, eu venho de lá. — respondeu Zara.

— Legal, minha mãe também veio de lá.

— Entendo. E onde está sua mãe agora? — perguntou a mulher, com o tom de voz agora mais suave.

— Ela morreu quando eu nasci — disse Kilian, hesitante, com a voz carregada de tristeza. — Aliás, me chamo Kilian.

— Ah... me desculpe pela indelicadeza — respondeu a mulher, um pouco sem graça. — Meu nome é Zara. Zara Tariana.

— Eu ouvi você dizer pro cara que era uma aventureira. Que veio lutar contra os druidas. Então... o que você faz como aventureira?

— O que eu faço? Eu luto — respondeu Zara, e bateu levemente na espada presa à cintura. — Vim das terras combatentes. E quem nasce nas terras combatentes...

— Combate — completou Kilian com um sorriso. Zara sorriu junto.

Ela soltou um suspiro e olhou para o céu estrelado. — Na minha terra, toda mulher aprende a se defender. E você? O que veio fazer aqui?

— Tô com uns amigos. A gente quer vender uns paus de fogo primo que estão descarregados. Achamos eles no lixão.

— Sério? E alguém compra assim?

— Meus amigos disseram que tem um cara capaz de recarregar.

— Ah, entendi. E onde estão eles?

— Como a gente mora na superfície, cada um saiu pra procurar alguma coisa. Há pouco, eu buscava um lugar pra passar a noite, mas ainda não encontrei — disse ele, enquanto cruzavam uma rua cheia de vendedores que gritavam ofertas e tentavam chamar a atenção de quem passava.

— É curioso ver tanta gente diferente junta, né? — comentou Zara. Passaram por barracas com frutas exóticas e especiarias, entre aromas fortes e conversas agitadas.

— É. Nunca vi nada assim na superfície — respondeu Kilian com um sorriso. Os dois atravessaram uma praça iluminada por lanternas mágicas. A luz refletia nas fontes cristalinas, criando um cenário quase irreal. Crianças corriam de um lado para o outro, e os adultos trocavam palavras e fechavam negócios com expressões animadas.

— E você, Zara? Por que veio parar aqui? — perguntou Kilian.

— Desci desde minha terra até este lugar. Depois descobri que estão pagando bem pra quem caça druidas — explicou, com os olhos firmes. — Mas entrar nesse mundo tem sido difícil.

— Imagino — disse Kilian. — Os Quangras são exigentes. E, pelo visto, sabem reconhecer quem não é daqui.

— Sabem, é? Como?

— Como eles fazem eu não sei, mas olhe ao redor. Quase todo mundo tem alguma parte do corpo diferente.

— É verdade!

— Pois é. Mesmo vindo aqui pela primeira vez, eu já vi isso logo de cara. Talvez esse seja o jeito Quangra de ver a vida: aperfeiçoamento. Lá na superfície, ninguém liga pra isso.

Zara sorriu de leve para Kilian.

— Sabe, você me lembra um pouco o meu irmão mais novo. Ele também tem essa coragem de encarar o desconhecido.

— É mesmo? Obrigado. — Kilian respondeu, com certa timidez.

Eles caminharam por um bom tempo até chegarem diante de uma taverna barulhenta. Música alta e risadas escapavam pelas frestas da porta, em contraste com a rua quase deserta — só havia movimento perto dali.

— Bem, então aqui estamos. — Zara parou diante de uma pensão modesta, com fachada simples, mas acolhedora. — É um lugar barato, mas a dona é muito amigável. Aposto que ela terá um quarto para vocês.

— Não, Zara. Eu não posso.

— Por quê?

Kilian não respondeu de imediato. Apenas mostrou algumas moedas de cobre, ainda sujas do vendedor.

— O problema é dinheiro? Não se preocupe com isso. Você me ajudou antes — nada mais justo que eu retribua. Vocês só vão passar a noite aqui e depois voltam para casa. Então, fique tranquilo. Deixe essa comigo.

Kilian olhou ao redor, depois passou as mãos no rosto, aliviado por enfim encontrar um lugar onde pudesse descansar. Zara foi até a dona da pensão, uma senhora de meia-idade com um sorriso caloroso, e falou com ela.

— Boa noite, dona Lira. Tenho um amigo aqui que precisa de um quarto. Tem algum disponível? — perguntou Zara.

Kilian se manteve em silêncio, os ombros já um pouco mais relaxados.

A senhora, que parecia conhecer Zara de outras vezes, acenou com a cabeça.

— Ah, claro, Zara. O de sempre, não é? — disse ela, lançando um olhar simpático para Kilian.

— E esse é o seu pequeno amigo?

Zara assentiu e se virou para ele. Kilian retribuiu com um leve sorriso e um gesto discreto.

— Isso. Ele e mais três. Se tiver algo para eles também, seria ótimo.

Dona Lira refletiu por um instante, então pegou uma chave do balcão.

— Tenho este aqui. É calmo e confortável. Podem subir quando quiserem.

Zara recebeu a chave com um sorriso.

— Obrigada, dona Lira. Vamos lá, Kilian. Vou te mostrar o quarto.

Kilian assentiu em agradecimento e foi com Zara até o andar de cima.

— Aqui está. Espero que você e seus amigos consigam descansar bem — disse ela, ao entregar a chave.

Kilian esticou a mão, e um sorriso breve, mas sincero, iluminou seu rosto.

— Muito obrigado, Zara. Você me salvou hoje.

Apertou a mão dela com firmeza. Havia um brilho nos olhos dele, difícil de ignorar.

— Não foi nada. Cuide-se. E boa sorte com a venda dos paus de fogo primo — respondeu ela, deu um aceno e logo sumiu pela escada.

Kilian deixou a pensão às pressas, com passos quase em disparada pelas ruas agitadas. Assim que chegou ao ponto de encontro, viu Darin, Imaniul e Nilego juntos. Todos demonstravam impaciência.

— Onde você se meteu, Kilian? Sumiu do nada! — disse Darin, com um tom de reprovação.
Kilian puxou o ar com força.

— Desculpa, pessoal. Tentei achar uma casa abandonada, mas não deu certo. Conheci uma mulher chamada Zara. Ela nos ajudou bastante. Até pagou uma hospedagem pra hoje.

A tensão se dissolveu em alívio. Darin bateu no ombro de Kilian e abriu um sorriso.

— Alta mão! Finalmente uma boa notícia nesse dia.

— Única? — Kilian arqueou a sobrancelha.

— Fica frio — disse Imaniul. — Vamos. No caminho, a gente te explica.

— Tá. Vem comigo. Eu levo vocês até lá.

Kilian seguiu pelas mesmas ruas de antes, guiando os outros até a pensão.

Pouco depois, ele quebrou o silêncio: — E os paus de fogo primo? Conseguiu vender?

Darin soltou um suspiro pesado.

— Mais ou menos. O velho Boran cobrou uma fortuna pra recarregar. Vai ficar com metade deles.

Balançou a cabeça, visivelmente frustrado.

— Amanhã à tarde a gente tem que voltar lá pra pegar o que sobrar.

Nilego franziu o cenho.

— Isso foi um assalto. Eu não ia deixar, mas esse abobado insistiu.

— É, mas sem ele, os paus não prestam — respondeu Darin.

A conversa seguia até que Imaniul lançou uma pergunta de canto de boca:

— E essa mulher, Kilian... Era bonita?

O rosto de Kilian ficou vermelho. Ele desviou o olhar, sem soltar uma palavra.

Os outros caíram na risada.

Depois de caminhar por mais um tempo, eles chegaram à pensão. Ao entrarem, foram recebidos por Lira. Ao lado dela, algumas cobertas repousavam sobre o balcão.

— Bem-vindos, meus jovens! Levem essas cobertas para os quartos — disse Lira com o seu típico sorriso bonachão. — Vou levar vocês para jantar. Depois, podem tomar banho ali mesmo. Deixei bacias com água nos quartos.

A sala de jantar era simples e acolhedora, iluminada por velas mágicas que lançavam uma luz suave sobre a mesa de madeira robusta. Pratos fumegantes de ensopado de raízes e carne, pães frescos e frutas da estação estavam dispostos ali, como se aguardassem os famintos viajantes.

Enquanto devoravam a refeição, a conversa surgiu entre garfadas e goles apressados.

— Tá, agora explica direito — disse Darin, depois de apontar com a colher. — Como você conheceu essa tal de Zara?

Kilian engoliu rápido, limpou a boca com as costas da mão e apoiou os cotovelos na mesa.

— Eu tava procurando uma casa vazia, sabe? Aí vi uma mulher brigando com um comerciante. Até briguei com o cara por causa dela.

— Do nada? — perguntou Imaniul, desconfiado.

— Sim, só porque ela não é daqui o cara não queria vender aquelas quinquilharias pra ela.

— Tá certo — comentou Nilego. — Mas... e aí? Era velha? Ou... sei lá, bonitona?

Kilian hesitou. Os olhos dele baixaram por um instante.

— Ela era... simpática. E... bonita, eu acho.

Darin soltou um assobio baixo. — Aí sim. Kilian o encantador.

— Para com isso — resmungou ele, sem levantar a cabeça, mas com um meio sorriso entregando o embaraço.

— Só tô dizendo — riu Imaniul. — Vai ver ela gostou do seu “jeitinho valentão”.

Nilego cutucou o braço de Kilian com o cotovelo. — Aposto que ficou até vermelha quando você agradeceu.

— Vocês são idiotas — disse Kilian, tentando conter o riso.

A mesa explodiu em gargalhadas.

A tensão que pairava desde mais cedo foi sumindo aos poucos, varrida pelo calor da comida e das brincadeiras.

Após o jantar, dirigiram-se ao modesto quarto alugado para eles. O aposento simples possuía duas camas de madeira e um tapete desgastado sobre o chão de pedra, porém não eram suficientes para todos.

Com uma disputa de sorte, Nilego e Imaniul dormiram no chão, com cobertores e almofadas, enquanto Kilian e Darin ajustaram suas mochilas ao lado da cama.

— Amanhã vamos resolver isso de uma vez. Vamos pegar o dinheiro e voltar para a superfície — disse Darin, deixando escapar o pensamento em voz alta.

Kilian ajeitou o cobertor na cama e assentiu com um sorriso leve, o rosto iluminado pela fraca luz das lanternas que atravessavam a janela.

Na manhã seguinte, Kilian e os outros se reuniram, prontos para partir.

Ao descer para a sala de jantar, onde a dona da hospedagem já preparava o desjejum, Kilian se aproximou dela, com as sobrancelhas levemente franzidas.

— Bom dia, senhora. A Zara ainda está por aqui? — perguntou, tentando disfarçar a apreensão na voz.

A senhora passou a mão pelos cabelos grisalhos e o olhou com um sorriso acolhedor.

— Ah, querido, ela partiu esta manhã — respondeu, enquanto lhe estendia uma xícara de chá de Névoa Matinal. — Mas posso te oferecer algo para o caminho?

Kilian baixou os olhos por um instante. A notícia o pegou de surpresa.

— Que pena... — murmurou. — Não precisa. Depois do desjejum, vamos embora.

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