Volume 1
Capítulo 17: A parte dos Quangras
Os outros hesitaram diante da sala. Trocaram olhares preocupados enquanto Kilian se aproximava da pesada porta metálica. A energia pulsante do cristal Etherdoorium podia ser sentida mesmo do lado de fora. Ele emanava um brilho rosado através das frestas.
Imaniul segurou o braço de Kilian. — Eu não sei, Cara. Isso parece uma má ideia. Vamos arrumar outro jeito. Entrar ali é perigoso demais.
Darin olhou para Imaniul, que encarava a porta com expressão tensa. — Fica quieto, Imaniul. Vamo deixar ele tentar.
— Fiquem de olho. Eu vou abrir isso. — disse Kilian, enquanto pegava um pedaço de metal para usá-lo como alavanca improvisada e forçar a tranca.
Nilego observou, a expectativa evidente em seus olhos. — Tomara que esse cristal te frite vivo.
— Vai se danar, tucano desgraçado.
Kilian tentou forçar a tranca. Seus dedos tremiam por conta do esforço, porém a porta era resistente, como se estivesse soldada ali. Ele soltou um grunhido frustrado, todo o seu corpo tenso. Sem fôlego, virou-se para Imaniul, que hesitava à porta, os olhos cheios de incerteza.
— E aí? — Kilian deu um passo para trás, enquanto limpava o suor da testa com o antebraço. — Dá uma mão aqui, cara. — A voz saiu baixa, quase um sussurro de urgência.
— Eu... não posso. — Imaniul balançou a cabeça, enquanto se afastava de forma involuntária.
Nilego balançou a cabeça. — Sai daí! Deixa pra mim, seu fraco.
Após alguns momentos de esforço, a tranca da porta se rompeu com um rangido. Pela pequena fresta, a sala autômata tornou-se visível.
— Agora é com você, fracote — disse Nilego, enquanto se afastava junto com os outros.
Kilian assentiu e voltou sua atenção para a porta destrancada. Com um pouco de esforço, conseguiu empurrá-la mais, até que ela rangeu lentamente para dentro. Um zumbido baixo ecoou da sala, acompanhado pelo brilho intenso do cristal.
— Pronto...
Kilian entrou devagar. O ar vibrava ao redor, o que provocava um leve formigamento em sua pele.
— Tem certeza de que isso é seguro? — a voz de Nilego ecoou atrás.
Darin fez um gesto, mandando-o calar.
Lá dentro, a luz rosada pulsava. Tudo era banhado por aquele brilho quase hipnótico.
— Caramba... — sussurrou Kilian, enquanto encarava o cristal Etherdorium no centro da sala.
Ondas ritmadas de energia emanavam dele, elas reverberavam em seu peito como um tambor. Ele permaneceu imóvel por um instante, os olhos fixos no espetáculo.
Pelos cantos, quatro autômatos se moviam com precisão. Seus braços mecânicos subiam e desciam em sincronia impecável.
A energia fluía pelos dutos como um rio de luz, que seguiam até as velas em forma de nadadeiras. Um sussurro baixo, quase inaudível, indicava o trabalho invisível que impulsionava o aeroplano com uma eficiência fantasmagórica.
Do lado de fora, Kilian ainda sentia os olhares nervosos dos outros. Ninguém ousava cruzar o limiar.
— Uau, é isso que faz o aeroplano funcionar? — disse, sem tirar os olhos do mecanismo.
— Cuidado, Kilian! — gritou Darin.
— Relaxa, eu sei o que tô fazendo. — Kilian respondeu, enquanto mexia nos controles ao acaso.
— Vamos deixar um gancho pra você! — gritou alguém do lado de fora.
— Já peguei tanta rabuja antes, mas nunca tinha parado aqui dentro... — resmungou, enquanto testava comandos aleatórios.
O primeiro fez as luzes piscarem freneticamente. O segundo ativou as velas de impulsão. O aeroplano acelerou bruscamente, quase derrubando os outros lá fora.
— Droga, esses não!
Com mais cuidado, girou a única alavanca que ainda não havia mexido. Os mecanismos responderam com um zumbido suave. Os ganchos começaram a se estender para fora do aeroplano.
Kilian suava. Suas mãos, antes incertas, agora agiam com firmeza. Um a um, os ganchos foram liberados sem falhas.
— Pronto. Os ganchos estão fora. — anunciou, depois de voltar até a porta.
— Vamos descer, então. — disse Darin, aliviado.
Os ganchos se desenrolaram com um ruído suave de metal contra metal. Cada um pegou seus fardos e se posicionou em volta da corda de aço. Darin, com dois fardos nos braços, lançou um olhar rápido aos outros, depois à rua movimentada abaixo.
— Vou na frente — murmurou ele, enquanto fechava firmemente os dedos no cabo antes de se lançar ao vazio.
O carretel da casa autômata zumbia, enquanto Darin descia com os olhos fixos na rua, que se aproximava rapidamente.
— Não demorem — disse Imaniul. Nilego apenas assentiu. Então ambos se prepararam para a descida. Assim que Darin aterrissou, Imaniul se pendurou com destreza na corda metálica, logo seguido por Nilego.
Abaixo, a rua se estendia como um tapete vibrante de vida, iluminada pelas luzes cintilantes das lâmpadas mágicas. Pessoas caminhavam apressadas; algumas ostentavam roupas elegantes, mas o que mais chamava a atenção eram aquelas com implantes metálicos que substituíam membros.
Construtos também se mesclavam à multidão. Alguns pareciam armaduras pesadas ambulantes, enquanto outros lembravam simples cidadãos.
— Que lugar movimentado... — murmurou Nilego, quando aterrissou ao lado de Darin, que já observava ao redor, com os paus de fogo primo em punho.
Imaniul pousou logo em seguida. Ajustou suas roupas de maneira quase automática.
— Fiquem atentos. — Ele lançou um olhar rápido para as luzes e os rostos desconhecidos que passavam. — O pessoal daqui pode não gostar da superfície.
Kilian foi o último a descer, os dedos firmes no cabo enquanto seus pés tocavam o chão com leveza, quase sem ruído.
Ao aterrissar, ele se viu cercado pela agitação vibrante da cidade. Luzes mágicas cintilavam por todo o lado, enquanto as pessoas cruzavam as calçadas de pedra apressadas. Mercadores gritavam suas ofertas, e o som de conversas se misturava a uma melodia distante, tudo compondo um caos envolvente e hipnotizante.
— E agora? — perguntou Kilian, enquanto olhava de relance para Darin.
— A gente já conseguiu chegar aqui. Alta mão, pessoal. Agora precisamos ir ao endereço desse carinha que vai recarrega essas coisas. Senão, vir até aqui não adiantou de nada. — disse Darin, sério, enquanto o silêncio era preenchido pelos músicos de rua que tocavam uma sinfonia caótica.
Um cartaz colado num poste chamava atenção com letras garrafais: “Protejam a Terra, devolvam-na aos druidas!”. Ao lado, uma jovem de roupas caras gesticulava com fervor, enquanto discursava para os que passavam.
— Toda a Terra pertence a eles desde sempre! — sua voz ecoava pelo cruzamento. — Nós, Jillarianos, é que estamos ocupando o que é deles por direito! Estamos destruindo a natureza com nossa ganância!
Kilian se esgueirou por entre as pessoas que começavam a formar um pequeno círculo em torno da garota. Desviou de ombros e cotovelos, sem tirar os olhos de Darin.
— Concordo..., mas será que esse cara vai falar com a gente a essa hora? — murmurou, quase como se falasse consigo mesmo.
— Se os Santos transformaram este belo lugar em um deserto cheio de dor e sofrimento, o que podemos esperar dos Quangras? — continuava a garota, enquanto elevava a voz. — Os druidas estão aqui para restabelecer a ordem natural!
Nilego lançou um olhar distraído na direção da oradora e sorriu de canto.
— Até que ela é bonitinha.
Darin nem olhou. Com a atenção dividida entre os rostos desconhecidos e a movimentação ao redor, passou as instruções de forma seca:
— Kilian, procura um lugar pra gente dormir. Nilego, comida. Imaniul e eu vamos atrás do cara da recarga.
Ninguém respondeu.
Mais adiante, um grupo de golens ornamentados atravessava a avenida com passos ritmados. Suas placas de metal polido refletiam as luzes mágicas das fachadas, e as engrenagens giravam com um zumbido quase melódico.
Imaniul diminuiu o passo, fascinado.
— Olha só esses golens... são incríveis!
— Aqueles ali são sencientes — disse Kilian, acompanhando o grupo com o olhar. — Tem um paladino na ordem chamado Harok que também é assim. Dizem que esses modelos são tão antigos e bem feitos que acabaram ganhando vida própria.
— Incrível... — murmurou Imaniul, absorto.
— Ei — resmungou Darin, sem nem parar de andar. — Vocês dois querem fazer turismo ou cumprir a missão?
Kilian e Imaniul trocaram um olhar rápido, como se só então percebessem que estavam para trás. O barulho da cidade pareceu engolir os sons delicados das engrenagens, e o passo apressado de Darin devolveu o grupo ao ritmo da rua.
— Espera aí! Por que você e o Imaniul? Vão tentar me passar a perna de novo? — questionou Nilego. — Depois daquela do aeroplano, não confio mais em vocês.
Imaniul cortou:
— Que droga, Nilego, por que você sempre arruma discussão?
— Isso é bobagem — disse Darin, antes que a briga piorasse. — Se a gente continuar assim, vai acabar perdendo o dinheiro. — Ele se virou para Kilian. — Hoje você catou lixo o dia inteiro, certo?
Kilian fez que sim com a cabeça, os olhos ainda presos nos golens.
— Quanto você e o Cara de Sapo ganharam? — Darin insistiu.
Kilian hesitou, mas respondeu:
— Dez peças de cobre. Cada um.
— Tá vendo? — disse Darin. — Um dia inteiro pra conseguir uma peça de prata. Agora temos a chance de sair daqui com no mínimo trinta peças de ouro. Isso vale por trezentos dias como o de hoje.
Enquanto todos mantinham a cabeça baixa, a avenida fervilhava com vida.
Humanos, descendentes dos féericos, halflings e anões cruzavam a rua. As barracas se alinhavam pelos cantos, ofereciam de tudo — de alimentos exóticos a itens mágicos.
Criaturas fantásticas, grandes e pequenas, circulavam entre as pessoas. Algumas voavam acima das cabeças, o que deixava essa parte da cidade ainda mais diferente da superfície.
— Tudo bem, você venceu. — Nilego cedeu. — Mas vou ficar de olho.
— Melhor, vamos mudar as coisas então — concluiu Darin. — Eu e Nilego vamos negociar. Imaniul, você busca comida. Kilian, procure abrigo. Pode ser assim?
Todos concordaram, Imaniul entregou os fardos para Nilego, Kilian para Darin, e depois partiram para suas tarefas.
Kilian seguiu por ruas mais isoladas, atento às construções ao redor.
— Preciso de uma porta ou janela fechada... — murmurou, enquanto percorria com os olhos as fachadas. — Algum lugar com areia... deve estar lacrado há muito tempo.
Franziu o cenho ao notar uma parede desbotada e poeira nas dobradiças.
— Acho que é aqui... não! Tem gente!
Continuou a caminhada até voltar para a larga avenida. Lá, avistou um construto metálico coberto por inscrições divinas. As insígnias das Megacompanhias e da Ordem dos Paladinos brilhavam em seu corpo.
— Boa. Um golem informativo.
Aproximou-se com cautela.
— Com licença. Preciso de uma informação. Sou o paladino Caelinus — disse, firme.
O golem o fitou por um instante. As palavras saíram com eco metálico, pausadas e reverberantes:
— Identidade requerida. Pronuncie a senha, paladino Caelinus.
Kilian piscou, tentando improvisar.
— Kilian?
Silêncio.
— Melangie?
Nada.
— Ledígia?
As inscrições brilharam. O construto ergueu a cabeça e seus olhos ganharam um tom verde vivo.
— Acesso concedido. Ordem reconhecida. Solicitação?
Kilian recuou um passo, surpreso. Sorriu.
— Estou caçando um arruaceiro. Acredito que esteja abrigado em uma casa abandonada por aqui. Procuro algo discreto, afastado, sem patrulhas frequentes.
As inscrições brilharam com mais força. O construto permaneceu imóvel por alguns instantes.
— Consulta em andamento. Resultado: duas estruturas disponíveis. Rua Teja, nº 32. Avenida Fulgor, nº 15. Condições: abandono registrado, sem ameaça ativa.
— Sou um paladino da superfície. Quanto tempo de caminhada até o mais próximo?
— Estimativa concluída. Rua Teja, nº 32. Tempo estimado: um ciclo de marcha integral.
— Um dia?! — Kilian protestou. — Está bem... isso é tudo.
— Processo incompleto. Motivação detectada: perseguição persistente. Solicita registro no banco da Ordem?
Kilian hesitou.
— Pode registrar. Nome e descrição.
— Inicie transmissão.
— Doo. Alto. Robusto. Cabelo escuro. Cicatriz na bochecha esquerda. Traficando drogas dos druidas. Fugiu do Vale do Suplício.
— Entrada registrada. Dados anexados. Deseja incluir prioridade ou alerta tático?
— Não. Obrigado.
Kilian se afastou, enquanto falava sozinho:
— Espero que os paladinos não descubram... senão o Caelinus...
Virou-se para partir. A voz do golem ecoou uma última vez, baixa, arrastada, como se brotasse do próprio chão:
— Que a missão se conclua... longe da luz da superfície.
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