Intangível Brasileira

Autor(a): Richard P. S.


Volume 1

Capítulo 15: Trabalho bem remunerado

O céu tingia-se de vermelho e roxo enquanto Kilian se afastava do ponto de compra dos catadores, os ombros encolhidos contra o vento frio. Ele ajeitou o capuz, como se tentasse bloquear a brisa cortante que trazia a promessa de uma noite gelada. Seus passos faziam a poeira subir, enquanto os olhos vasculhavam, atentos, o ambiente.

Casas feitas de madeira e metal enferrujado surgiam dos dois lados daquela estrada de lixo compactado, empilhadas de maneira irregular, prestes a desmoronar. As luzes fracas de algumas tochas improvisadas piscavam e projetavam longas sombras pelas ruas estreitas. Kilian caminhava em silêncio, mas seus ouvidos captavam cada ruído ao redor.

— Tomara que eles estejam lá mesmo. — disse Kilian, com um resmungo. — Esse Cara de Sapo adora me colocar numa fria.

Enquanto seguia, virou uma esquina estreita, dando de cara com os três capangas de Doo, os mesmos que o chutaram da pilha de lixo mais cedo. Eles estavam parados no meio da rua, conversavam em meio a risadas altas, com os braços cruzados e sorrisos debochados estampados em seus rostos sujos.

Até notarem Kilian.

— Olha só quem tá aqui de novo — o maior dos três, um homem de rosto marcado por cicatrizes, falou, depois de estalar os dedos com um som seco. — O moleque que não aprende.

Os dois outros riram, enquanto fecharam o círculo ao redor de Kilian. Um deles, um sujeito magro de olhos fundos, cuspiu no chão, bem próximo ao pé de Kilian.

— O que deu em você hoje lá no morro? Tá ficando surdo? — perguntou o segundo, com o tom carregado de desdém.

Kilian levantou uma mão, numa tentativa de manter a calma. Seus lábios hesitaram, receosos de dizer qualquer coisa que pudesse ser mal interpretada.

— Só tô passando... Não tô procurando confusão — disse, com a voz baixa e cuidadosa, enquanto olhava de um para outro. Tentou dar um passo para o lado, porém o mais alto bloqueou seu caminho, com um sorriso estampado no rosto.

— Passando? — zombou ele. — Escuta uma coisa, seu merda. Hoje é a última vez que tu faz aquilo. Tá ouvindo? — Antes de ouvir a resposta, o homem deu um tapa na orelha de Kilian, forte o suficiente para jogá-lo sentado no chão.

Alguns moradores espiavam de longe, parados nas sombras das portas e janelas das casas precárias. Ninguém se aproximava. Olhares vazios, sem intenção de intervir. Apenas observavam, como se aquilo fosse mais um evento comum no dia a dia do Vale.

Kilian engoliu em seco, ao mesmo tempo que sentiu o peso da situação. Mantinha os punhos fechados, como se aquilo o ajudasse a controlar o nervosismo, enquanto levantou-se com movimentos lentos e calculados.

— Eu sei... Eu não quero brigar... — murmurou, em meio a um sorriso forçado. — Já tô indo.

O sujeito magro deu um passo à frente, inclinou-se perto demais, o hálito azedo atingiu o rosto de Kilian. Ele riu baixinho, um som que parecia mais um rosnado.

— Tá indo? Vai pra onde? — Ele o empurrou de leve no ombro.

O maior gargalhou alto, enquanto estalava o pescoço.

— Isso se ele conseguir correr... — falou, depois de estreitar os olhos, enquanto os dedos das mãos se fechavam em punhos grandes como martelos.

Kilian ergueu as mãos de novo, numa tentativa de apaziguar: — Não precisa disso... Não tô desafiando ninguém. Só tô... de passagem. Já vou embora.

O terceiro capanga, que até então estava quieto, deu um passo à frente e bateu nas costas de Kilian com força. O garoto deu alguns passos desequilibrados para frente.

— Vai embora? — zombou ele, quando aproximou o rosto do de Kilian, os olhos carregados de malícia. — Acha que vai sair assim, fácil?

Por um momento, Kilian olhou em volta, as casas amontoadas, o ar pesado. Os poucos espectadores ainda assistiam, mas ninguém fazia nada, ninguém dizia uma palavra.

— Já disse: não tô aqui pra briga... — repetiu, a voz agora levemente trêmula, mas firme o suficiente. — Deixa pra lá. Só vou embora.

O homem mais alto soltou uma risada abafada, dando um passo para trás.

— Essa vai passar — disse ele, enquanto olhava para os outros com um sorriso cruel. — Mas na próxima...

Os três se afastaram um pouco, mas ainda riam enquanto Kilian dava um passo cuidadoso para sair do círculo que haviam formado. Em meio ao suor frio, manteve o olhar fixo no chão, caminhando rápido e sem olhar para trás.

Quando se afastou o suficiente, soltou o ar que nem sabia estar prendendo, os batimentos ainda acelerados.

— Droga... Minhas costas — disse ele, enquanto tentava olhá-los por baixo do capuz puído. — É, mas não foi nada... Podia ser pior.

Conforme avançava, Kilian notou alguns drogados pelo caminho. Um homem estava encostado em uma parede. Os olhos arregalados e sem foco. Ele balbuciava palavras sem sentido. Um pai que passava com o filho pelo outro lado da rua olhou com desprezo e balançou a cabeça.

— Tá vendo isso, garoto? — o homem murmurou, enquanto apertava o braço do filho. — Sussurro do Qasit. Essas porcarias que os druidas trazem pra cá... acabam com qualquer um. Não quero te ver nem passando perto disso, entendeu?

O menino olhou para o homem balbuciante e arregalou os olhos com medo antes de seguir em frente com o pai.

Kilian desviou o olhar da cena, mas não pôde evitar ouvir. Seus passos o levaram um pouco mais adiante, onde uma mulher tremia descontrolada. Ela se abraçava enquanto murmurava coisas sem sentido para si.

— Erva Brazina... — Kilian sussurrou para si. — Daqui a pouco ela vai ficar perigosa. — Acelerou o passo, ao mesmo tempo que o olhar direto para as cenas perturbadoras ao seu redor. Seu foco estava em sair dali o mais rápido possível.

A cada esquina, a decadência do vale se tornava mais evidente. Um grupo de jovens ria de forma histérica, com os olhos vermelhos e lacrimejantes, envolvidos numa euforia intensa seguida por um estado de completa apatia.

— Lírio Obtuso — disse Kilian para si, enquanto mantinha a cabeça baixa e o passo rápido. Era uma forma de evitar chamar a atenção enquanto se dirigia ao ponto de encontro.

Acima, os aeroplanos autômatos cruzavam o céu e despejavam o lixo da metrópole na pilha principal. As lamparinas presas às suas estruturas acendiam pontos de luz entre os veículos que entravam e saíam da cidade.

Kilian acelerou o passo, as mãos afundadas nos bolsos, onde as moedas de cobre tilintavam — fruto do mercado dos coletores. O vento cortava e agitava seu casaco, enquanto ele se dirigia ao ponto de encontro indicado pelo Cara de Sapo.

Quando passou por uma montanha de lixo, viu um grupo de seis paladinos aproximar-se de forma imponente. A maioria humano, exceto por um anão robusto e um descendente dos féericos de olhar penetrante. Eles escoltavam três pessoas com as mãos atadas, vestidas com trapos e capuzes que escondiam seus rostos.

Os murmúrios dos paladinos eram audíveis:

— Mais suspeitos de ajudar os druidas, mais julgamentos, é todo o dia a mesma coisa. Não sei o que essa gente tem na cabeça — disse um dos humanos, enquanto segurava firme seu escudo com o emblema da Ordem.

— Espero que o processo seja rápido, esses tipos traidores são piores do que os próprios druidas — comentou o anão, depois de lançar um olhar desconfiado aos prisioneiros.

Kilian parou e se escondeu atrás de uma pilha de sucata. A visão dos paladinos fez seu coração acelerar. Ele observou em silêncio, os músculos tensos, enquanto esperava eles passarem sem notá-lo.

— A presença dos druidas está aumentando — disse o descendente dos féericos quando passou pelo monte onde o garoto se escondeu, seus olhos brilhavam à luz das lamparinas. — Em pouco tempo, como nos tempos de Xander, haverá guerra aberta de novo.

— Concordo — respondeu outro paladino, o mais jovem deles. — Mas, na minha humilde opinião, prefiro uma guerra aberta a essa situação.

O anão xingou o garoto paladino, mas as palavras já não eram mais audíveis para Kilian. Quando o grupo se afastou, o garoto saiu de seu esconderijo, com um suspiro de alívio.

Kilian chegou à beira do penhasco indicado por Cara de Sapo e avistou Darin e Imaniul. O vento gelado cortava a borda rochosa, levantava poeira e fazia o lixo seco girar aos pés dos dois.

O céu escurecia. Sons de animais noturnos ecoavam pelo vale. Perto deles, os bastões estavam no chão, divididos em quatro fardos presos com cordas.

Mais ao longe, perto de uma parede de pedra, alguém estava de pé, voltada para ela. Estava urinando. Kilian a ignorou.

— Kilian? — Darin franziu a testa ao vê-lo. — Você não tinha chamado o Cara de Sapo?

Imaniul riu, cruzando os braços. — É! Nem sei o que esse cara tá fazendo aqui — comentou, ainda com o sorriso convencido no rosto.

Kilian abriu a boca para responder, mas o som de passos se aproximando fez seu estômago apertar.

— Então é você... Kilian...

Era Nilego.

— Que bom que veio. Assim eu arrebento sua cara aqui mesmo.

O aperto no peito de Kilian voltou com força.

Imaniul colocou a mão no ombro de Nilego, como uma forma de impedi-lo de avançar. — Ei! Vai querer brigar ou ganhar dinheiro, criançola?

Nilego hesitou, a mandíbula tensa. Por fim, deu um passo para trás e resmungou algo inaudível. Ele chutou uma pedra, que rolou penhasco abaixo e logo depois desapareceu na escuridão crescente.

— E aí? — perguntou Darin. — Fala duma vez. Cadê o Cara de Sapo?

— Ele não tava a fim, então eu vim no lugar dele. — disse Kilian, enquanto olhava de soslaio para Nilego, que cerrava os punhos.

Darin olhou para Kilian com desconfiança, os braços cruzados, apoiando um pé sobre a pilha de paus de fogo primo. — Vai querer ir mesmo? Nada é garantido.

Kilian respirou fundo, o ar frio da noite queimava em seus pulmões. — Sim, estou dentro — disse sem hesitar.

Darin indicou os bastões com um movimento de cabeça. — Tá bom, pega um daqueles fardos e vamo duma vez.

Kilian fitou um dos fardos. O volume das varas de madeira encantadas parecia complicado de carregar. Uma leve pulsação mágica emanava daqueles artefatos descartáveis. Um brilho amarelado pulsou deles com o toque.

— Eu e o Cara de Sapo vimos gnolls aqui mais cedo. Não preferem pular noutro lugar? — Kilian sugeriu, enquanto se sentava sobre o fardo.

Darin balançou a cabeça, os olhos fixos no horizonte. — Não, vamos seguir o plano. Fique atento.

Enquanto o grupo se preparava, as sombras das montanhas cresciam a ponto de engolir a paisagem. Um silêncio tenso pairava no ar, quebrado apenas pelo som das respirações pesadas e pelo farfalhar das roupas ao vento.

Imaniul soltou uma risada curta, tentando aliviar a tensão. — Bem, espero que todos estejam prontos para uma noite interessante.

Nilego bufou e chutou outra pedra, mas desta vez não disse nada. Ele apenas lançou um último olhar fulminante para Kilian antes de se virar para ajustar sua própria carga.

O aeroplano lixeiro se aproximava devagar da borda do penhasco, sua caçamba de madeira, agora suja e vazia, indicava que já havia despejado o lixo na pilha principal. O som de suas velas ressoava como um trovão distante, misturado ao som do vento que uivava entre as rochas. As luzes bruxuleavam em ondas regulares, como um sinalizador de sua rota através da escuridão crescente.

— Lá vem ele — disse Darin, antes de ajustar a alça do fardo no ombro. — Todo mundo pronto?

— Pronto — respondeu Kilian, a voz firme enquanto olhava para o abismo abaixo deles. A altura era vertiginosa, e uma queda seria fatal.

Os jovens se posicionaram, enquanto aguardavam o momento certo. Darin ergueu a mão. Era um sinal para esperar. Quando o aeroplano estava a uma distância ideal, ele fez um gesto brusco.

— Agora!

Darin foi o primeiro a agir. Ele pegou um fardo de paus de fogo primo, correu até a beira do penhasco e, com um arremesso preciso, o lançou na caçamba do aeroplano. Logo depois, ele correu e saltou para dentro da caçamba.

Kilian observou a habilidade de Darin e se preparou para sua vez. Um calafrio irrompeu de sua espinha.

— Vamos, Imaniul! — gritou Darin de dentro da caçamba, sua voz mal audível contra o vento.

Imaniul sorriu e repetiu o movimento de Darin com a mesma destreza.

Kilian apertou o fardo em suas mãos, respirou fundo e correu em direção à beira. Ele o lançou para dentro da caçamba e pulou logo em seguida, o vento gelado parecia querer cortar seu rosto. Seus dedos agarraram-se à borda. Ele puxou o próprio corpo com toda a força.

Dentro da caçamba de madeira, Darin e Imaniul já estavam acomodados. Kilian ia se sentar quando viu o segundo fardo de Nilego ser lançado de forma desajeitada na caçamba. Nilego corria em direção à borda do barco, mas o penhasco estava quase no final.

— Não vai conseguir… — murmurou Kilian, apoiado na borda ao ver Nilego avançar com passos pesados na direção do aeroplano.

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