Volume 1
Capítulo 14: Ossos do oficio de um catador
Os gnolls caminhavam por aquela borda do vale, alheios à presença dos dois garotos.
O Vale do Suplício se estendia abaixo, e pilhas de lixo formavam montanhas irregulares. O cheiro era insuportável, uma mistura de podridão e ácido. Kilian apertou os olhos, na tentativa de ignorar a sensação de sufocamento que o ambiente trazia.
— Que lugar, cara — murmurou Cara de Sapo, baixinho, enquanto se abaixava para pegar um pedaço de metal amassado. Ele o girou entre os dedos, como se aquilo pudesse valer algo, mas logo o descartou com um gesto de desdém.
Kilian não respondeu de imediato, apenas mantinha os olhos fixos nos gnolls.
— Agora! — disse Kilian, e ambos saltaram para a outra borda do vale, à esquerda, onde estavam a um abismo de distância das criaturas.
— Essa foi por pouco — disse Cara de Sapo, enquanto recuperava o fôlego.
— Temos que ser mais cuidadosos. Esses gnolls andam perambulando cada vez mais perto das casas — disse Kilian, ainda com os olhos atentos nos arredores.
— Vamos logo, temos trabalho a fazer — disse Cara de Sapo, enquanto pegava de uma pilha próxima uma caixa de madeira para coletar os materiais.
— Se eu tiver sorte hoje, acho um lingote de Zig Resil e nunca mais volto aqui, — disse Kilian com um suspiro profundo.
— Um lingote de Zig Resil? Sonha alto, hein! Ninguém joga fora um condutor mágico tão caro que nem esse. — Cara de Sapo deu um sorriso cínico enquanto carregava a caixa de madeira velha.
— É, dá de pegar umas cem peças de ouro lá em cima, nos Quangra. Com uma dessas, daria pra viver bem por muito tempo. — Kilian respondeu, distante, ao pensar naquela possibilidade.
— Cem peças de ouro... Isso é dinheiro demais. Um prato de comida custa só três peças de cobre. — Cara de Sapo riu. — Uma peça de ouro compra comida de restaurante por um mês inteiro, cem peças…
— Lembra aquela vez do Jarek? Nunca mais vi ele depois daquela adaga de Albastrógeno. — Kilian comentou enquanto eles caminhavam em direção a uma pilha de lixo alta, onde estavam mais três coletores.
— Ah, claro. Me contaram que ele vendeu a adaga por mil peças de ouro e ficou rico. — Cara de Sapo balançou a cabeça, como se afastasse a lembrança. — Nunca mais ninguém vai encontrar isso de novo.
— E esse Doo? — perguntou Kilian. — Ele não tá conseguindo desenterrar essas coisas?
— É, mas o Doo não vale. Aquele cara tem algum rolo. Deve ser alguém lá de cima, um ricaço que tá pagando pra ele achar alguma coisa que perdeu aqui — disse Cara de Sapo enquanto eles passavam por mais um trio de coletores.
Quando Kilian e Cara de Sapo chegaram ao pé do morro, Cara de Sapo parou de repente e puxou Kilian pelo braço.
— Melhor a gente ir pra outro morro — sussurrou Cara de Sapo, seus olhos desproporcionais fixos no topo da pilha de entulho.
— Por quê? — Kilian perguntou com o cenho franzido.
— Aqueles caras são do Doo. Ele não quer ninguém mexendo no mesmo morro que os homens dele. Ali tem itens mágicos — disse Cara de Sapo, com um olhar preocupado.
— Agora é que eu vou subir mesmo! — Kilian respondeu, determinado.
— Não faz isso! — alertou Cara de Sapo, porém Kilian já escalava o morro.
Ao se aproximar do topo, os homens do Doo o encararam.
— Ei! Sai fora! Esse morro aqui é do Doo — um deles gritou.
— Isso aqui não é propriedade de ninguém. Quem encontrar primeiro, ganha! — retrucou Kilian.
Um dos homens se aproximou, antes de apoiar a sola do pé no ombro de Kilian, e depois o empurrar para baixo.
— Abre fora se não quiser morrer — ameaçou o homem.
Kilian insistiu. Ele forçou seu corpo para cima, mas o homem o empurrou com força. Ele perdeu o equilíbrio e rolou pela pilha de lixo. Os detritos machucaram sua pele enquanto rolava descontrolado pelo morro de lixo até o chão.
— Seus infelizes... — Kilian começou a se levantar, seus movimentos lentos e pesados.
Seus músculos tremiam, mas ele manteve o olhar fixo na pilha de lixo, a raiva e a teimosia claras em seus olhos. Ele cerrou os punhos, enquanto ignorava a dor que irradiava pelo seu corpo, determinado a subir novamente.
— Deixa isso pra lá, cara. Vamo procurar outro lugar — disse Cara de Sapo, enquanto ajudava Kilian a se levantar.
— Droga, Cara de Sapo. Isso não vai ficar assim — disse Kilian. Ele esfregava o ombro dolorido, enquanto se afastava do morro.
— Vamos procurar outro. Tem um monte deles por aqui — respondeu Cara de Sapo, numa tentativa de dissuadir Kilian.
— Tá! Dessa vez passa. Mas você vai ver, eu ainda vou ferrar muito esses caras.
Logo após isso, eles seguiram por entre as pilhas de lixo até encontrar um novo morro, mais afastado. Começaram a coletar metal, couro e madeira, enquanto jogavam tudo na caixa de madeira que haviam trazido.
De repente, surgiu um homem lá embaixo:
— Ei, garotos! Querem experimentar uma Fantasia? Produto natural, extraído de raiz rara! — gritou ao mesmo tempo que balançava uma garrafa com um líquido escuro e brilhante.
Cara de Sapo franziu a testa. — O que isso faz?
Kilian sacudiu a cabeça. — Não, não queremos.
— Espera, deixa eu explicar. — O homem insistiu. — Você bebe isso e vai pra um mundo onde pode criar o que quiser. Pode até levar amigos que beberam da mesma raiz. Produto dos druidas, completamente natural!
Cara de Sapo olhou curioso mas Kilian manteve a expressão firme.
— Não precisamos disso. — disse Cara de Sapo.
O traficante deu de ombros e se afastou, enquanto Kilian e Cara de Sapo continuavam sua coleta, focados na tarefa.
A dupla de garotos encheu uma caixa com aquilo que poderia ser vendido como lixo reciclável. No fim da tarde eles se juntaram a uma fila de catadores que esperava para negociar suas mercadorias com um homem que aparecia diariamente no seu pequeno aeroplano.
A fila era longa, repleta de pessoas com caixas e sacolas cheias de metal, couro e madeira. Kilian e Cara de Sapo se posicionaram no final da fila, enquanto aguardavam sua vez.
— Sabe, Caelinus me contou que essas drogas são feitas de propósito para enfraquecer as pessoas e dominar a cidade — disse Kilian, em voz baixa, de forma que apenas Cara de Sapo conseguisse ouvir.
Cara de Sapo balançou a cabeça. — Druidas só fazem merda.
Enquanto aguardavam na fila, um garoto loiro com vestes acima da média dos catadores surgiu; seu caminhar era como o de um rei em meio aos súditos.
— E aí, Kilian, achou algum tesouro no lixo? — disse ele, com um sorriso sarcástico.
— Achei, a tua mãe, aquela velha horrorosa. — respondeu Kilian, irritado.
— Pelo menos eu tenho uma. — retrucou, rindo.
— "Pelo menos eu tenho uma “. — remendou Kilian, imitando a voz dele.
O rapaz riu e chamou Cara de Sapo para um canto. Kilian tentou espreitar, mas a fila não lhe permitia sair de sua posição. Enquanto o jovem conversava com Cara de Sapo, Kilian só podia observar de longe, e tentar imaginar algo.
Logo depois, o garoto altivo se despediu e saiu apressado. Finalmente, chegou a vez de Kilian e Cara de Sapo venderem seus itens.
O homem do aeroplano, de cabelos grisalhos e roupas surradas, examinou o conteúdo da caixa.
— Então, garotos, vamos ver. Esse pedaço de metal é puro aço, bem pesado e útil para fundição. Vou dar oito peças de cobre por ele — disse o homem, depois de levantar o metal para inspecioná-lo melhor à luz do sol.
Kilian franziu a testa.
— Tudo bem, senhor.
O homem suspirou, mas cedeu um pouco.
— Acho melhor não, sete peças pelo metal. — Ele colocou o aço de lado e pegou um pedaço de couro.
Cara de Sapo torceu o nariz.
— Agora, esse couro, embora esteja um pouco desgastado, ainda pode ser usado para reparos. Ofereço três peças de cobre.
— Três? Esse couro é de boa qualidade, deveria valer quatro — insistiu Kilian.
— Quatro peças de cobre por couro de qualidade decente — disse o homem com um olhar calculista. — Vamos seguir em frente. E quanto a essa madeira... parece ser carvalho, resistente e ótima para construção. Pago seis peças de cobre.
Cara de Sapo interveio.
— A madeira de carvalho vale mais do que seis peças, todo mundo sabe disso. Dez, no mínimo.
O homem balançou a cabeça, mas cedeu novamente.
— Oito pela madeira. E isso é tudo. Então, fechamos em... — ele contou mentalmente — vinte peças de cobre.
Kilian e Cara de Sapo se entreolharam com um sorriso de satisfação pelo resultado. Dividiram as vinte peças entre si e se afastaram da fila. O som metálico das moedas se misturava ao murmúrio distante da multidão.
— Muito melhor do que a gente esperava, né? — comentou Cara de Sapo, enquanto passava os dedos pelas moedas, como se ainda duvidasse da sorte.
Kilian assentiu, guardando sua parte com cuidado no bolso interno do casaco.
— Com isso já dá para planejar algo — disse ele, depois de apertar o fecho do bolso remendado.
Cara de Sapo franziu o cenho; seus dedos ainda deslizavam pelas moedas, como se estivesse perdido em pensamento.
— Quanto custa a viagem que você quer dar para sua amiga? — Ele olhou de lado para Kilian, com um interesse despreocupado.
Kilian respirou fundo; seus dedos roçavam o bolso, como se o peso das moedas pudesse lhe trazer uma resposta.
— Não é amiga, é irmã; e eu não sei ao certo, talvez umas dez peças de ouro.
Cara de Sapo assobiou e sacudiu a cabeça.
— Vai demorar muito pra juntar isso.
— Eu sei — Kilian suspirou, enquanto seus olhos fitavam um grupo barulhento que passava carregado de sacos de mercadorias.
Cara de Sapo parou de brincar com as moedas e lançou um olhar rápido a Kilian antes de falar, como se estivesse testando o terreno.
— Então, não vai querer saber o que o Imaniul queria?
Kilian ergueu a sobrancelha, curioso.
Cara de Sapo hesitou; ele riu, depois coçou a nuca, como se ainda não tivesse decidido se deveria continuar.
— Ele disse que o Darin fez um negócio com o Doo. Comprou, pra pagar semana que vem, cem paus de fogo primo usados.
Kilian parou de caminhar, seus olhos arregalados.
— Que tipo de negócio é esse? Paus de fogo primo são descartáveis. O Darin não sabe disso?
Cara de Sapo deu de ombros, enquanto evitava o contato visual do companheiro.
— Mas eles acharam um cara na parte dos Quangra que consegue recarregar eles.
Kilian soltou uma risada curta e cética.
— Nunca vi isso antes. Paus de fogo primo, depois de usados, não prestam mais.
Cara de Sapo soltou uma risada curta e seca, com um toque de sarcasmo.
— Será? Eles acham que a gente vai pegar pelo menos umas quinze peças de ouro.
— Toda essa correria só por quinze peças de ouro? Entre quantas pessoas?
— Aí que você se engana. É quinze pra cada.
Kilian sacudiu a cabeça, a incredulidade estampada em seu rosto.
— Eu não acredito nisso. E também, nem tem como ir para a parte dos Quangra por aqui.
Cara de Sapo esfregou o queixo e olhou ao redor, como se alguém pudesse estar ouvindo.
— Tem sim. Eles acharam um lugar que dá pra pular num aeroplano dos Quangra lá no outro lado do vale, semana passada.
Kilian cruzou os braços, seu corpo levemente inclinado para a frente.
— Sério mesmo?
Cara de Sapo estreitou os olhos, fingindo ofensa.
— Ia te mentir por quê?
Kilian relaxou os braços e olhou para o horizonte.
— E onde fica esse lugar?
Cara de Sapo deu de ombros, enquanto jogava suas moedas para dentro do bolso.
— Não sei ao certo, mas tô até a fim de deixar você ir no meu lugar.
Kilian inclinou a cabeça, enquanto observava a reação de Cara de Sapo.
— Sério? Então eu vou no seu lugar.
Cara de Sapo arregalou os olhos por um segundo, mas logo sorriu.
— Tem certeza? — A voz dele saiu com um tom de desafio.
Kilian olhou para ele de relance, enquanto seus lábios se curvavam em um meio sorriso.
— Sim. Por quê?
— Por nada...
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