Volume 1
Capítulo 13: O Vale do Suplício
Kilian avançava pelas ruas, os passos rápidos em meio ao caos da manhã. As vias serpenteavam de forma única — algumas largas o suficiente para acomodar até um aeroplano cargueiro, enquanto outras mal permitiam a passagem de duas pessoas lado a lado.
Ele se esquivava de vendedores ambulantes e crianças correndo, que vez ou outra lançavam olhares curiosos para a massa vegetal que agora dominava o distrito vizinho.
— Droga! — resmungou enquanto forçava a passagem entre a multidão. — Se continuar assim, já vai ter passado.
Ao entrar em uma rua mais ampla, um castelo imponente despontava no horizonte, com suas muralhas impecáveis e bandeiras em tons de vermelho e preto.
Um homem caminhava ao lado de Kilian, ele vestia roupas simples enquanto carregava uma mochila surrada. Olhava aquela construção com admiração.
— Ei, garoto. Por acaso esse castelo ainda pertence a uma das cinquenta e duas familias da segunda era? — perguntou, curioso.
Kilian não diminuiu o passo.
— Sim. Os Selawsky. Uma das poucas que ainda restaram.
— Impressionante que ainda vivam ali. Ouvi dizer que muitos castelos agora pertencem aos Beyaras.
— A maioria, sim. Mas não todos — respondeu sem perder o ritmo.
O homem sorriu, enquanto ainda mantinha os olhos no garoto.
— Sabe garoto, até que você conhece bem o lugar para alguém da sua idade. Já pensou em ser um guia turístico? Os de lá de cima pagam bem por isso.
— É mesmo?
— Sim, você faria sucesso.
— Vou pensar nisso. — Kilian apressou o passo. — Mas agora preciso ir. — E se afastou em direção ao ponto elevado do distrito. — Espero que esse cara não tenha me atrasado.
Conforme ele se aproximava da parte mais alta, o fluxo de carroças e mercadorias ainda mantinha as ruas agitadas, ao mesmo tempo que o aclive acentuado dificultava o caminho.
Quando chegou ao topo, uma visão ampla de Jillar se revelava. Ele atravessou alguns quarteirões até se deparar com a borda do platô, onde uma corda de contenção, posicionada estrategicamente, servia para evitar acidentes. Kilian passou por ela e avançou até a beirada, antes de sentir a brisa fresca.
Dali, via-se o distrito vizinho, suas árvores agora transformadas em gigantescas massas de vegetação que em alguns pontos tocavam as camadas superiores da cidade.
— Essas árvores... — murmurou, enquanto observava o horizonte. — Legal! Ainda bem que eu não perdi.
Perto do penhasco, uma enorme barcaça de madeira flutuava no ar como se ignorasse o peso da caçamba abarrotada de detritos. As velas, agitadas como nadadeiras, mantinham o veículo suspenso e em movimento, enquanto ganchos mecânicos recolhiam o lixo dos distritos abaixo. O som leve de engrenagens se mesclava ao vento, o maquinário oculto operava sem intervenção humana.
Kilian esperou o momento exato e, com um impulso ágil, correu para a borda do penhasco e saltou. Suas mãos encontraram a madeira gasta da caçamba, os pés cravando firmemente ao tocar o fundo vazio do aeroplano, enquanto o veículo seguia sua rota pelo céu.
— Nada melhor do que pegar uma rabuja no lixeroplano — disse ele com um murmúrio, enquanto sorria para si, e se acomodava na sua nova carona.
Passado algum tempo, outro garoto realizou o mesmo movimento audacioso: ele saltou de uma borda e agarrou-se a uma das velas do aeroplano. Kilian torceu o nariz com a chegada da nova companhia, enquanto o veículo sobrevoava a metrópole desértica.
— Tô de cara contigo — disse Kilian, agarrado na vela do aeroplano, enquanto tentava fazer sua voz vencer os ventos.
— De cara, por quê? Você que é burro. Não devia ter chamado o Nilego de tucano daquele jeito — rebateu o garoto magro com um sorriso de seus lábios desproporcionais.
— A gente não tinha combinado um plano? — perguntou Kilian, exaltado. — Eu não ia provocar pra gente encurrala ele num beco e dar um pau nele? Você que me convidou pra fazer isso.
— Não, não, não. Eu só disse que queria dar um pau no Nilego porque ele tava muito metidinho — argumentou o garoto de olhos grandes.
— Eu confiei em você, Cara de Sapo — disse Kilian, resignado.
— Olha, eu não fiz nada fora do combinado. E mesmo se tivesse feito, nem tô. Ou vai dizer que se eu pulasse daqui agora, tu ia pula também?
— É, tem certas pessoas que nem valem a pena confiar.
— É mesmo. Eu sempre confio desconfiando.
Kilian permaneceu em silêncio por um tempo, de cara fechada, enquanto Cara de Sapo tentava algumas vezes puxar assunto.
— E onde você estava todo esse tempo? — perguntou Cara de Sapo, com o cenho franzido.
— Em casa. Tava resolvendo umas coisas — respondeu Kilian. — E você?
Cara de Sapo assentiu, mas manteve o olhar desconfiado. — Isso não te interessa, mas vou te dar um avisinho. As coisas mudaram no vale. O Doo agora é grandão por lá. Ele e os caras dele tão achando itens mágicos todos os dias.
— Itens mágicos, é? Mentira! Como isso? — Kilian perguntou, intrigado.
— Não sei bem como é, só sei que tão encontrando um monte de coisa valiosa. E o pior, é dos mesmos bolos de lixo que nós mexe. Como eles conseguem isso, ninguém sabe — Cara de Sapo deu de ombros.
— Não sabe? E ninguém tentou descobrir?
— Alguns tentaram, mas o Doo não quer ninguém perto das fontes dele. Ele protege os lugar. — Cara de Sapo suspirou, enquanto balançava a cabeça em desânimo.
— Será que ir num lugar desses é perigoso?
— Não sei, mas tu não lembra? O Doo há poucos dias era só um pobre coitado, um catador, agora do nada ele anda pra lá e pra cá assim. — Cara de Sapo remendava o caminhar de Doo por cima do lixo enquanto Kilian ria. — Parece até o general Vanlasnor do Vale do Suplício.
— O que você acha que o Doo está fazendo com todos esses itens mágicos? — perguntou Kilian.
— Não sei, mas o pessoal anda dizendo que ele tá vendendo — respondeu Cara de Sapo, pensativo. — Por muito dinheiro.
— Por muito dinheiro... — Kilian repetiu, intrigado. — Tipo o quê?
— Eu não sei, e ninguém sabe — Cara de Sapo respondeu, dando de ombros. — Mas todo mundo no vale tá falando disso. O Doo não deixa ninguém chegar perto dele sem permissão agora.
Enquanto os garotos conversavam, o aeroplano lixeiro deixou Jillar. Agora ele planava sobre o vasto deserto vermelho. Kilian e Cara de Sapo observavam aquela quase infinita paisagem árida se estender abaixo, com o calor refletindo nas rochas rubras. À frente, montanhas escarpadas surgiam no horizonte, o destino final para despejar o lixo da caçamba.
À medida que se aproximavam do vale, os paredões de pedra se multiplicavam ao redor. Eles lançavam sombras sobre uma vila modesta à margem do deserto. A vila, com suas casas simples e hortas resistentes, encostava-se às grandes rochas, numa busca por refúgio contra o sol implacável.
— Olha lá, chegamos, é a vila das grávidas! — Cara de Sapo riu ao apontar para algumas mulheres ao redor de um poço, que aos olhos de Kilian parecia ser o único por perto. — Vamo nos divertir um pouco.
— Como assim? — Kilian perguntou, já desconfiado.
— Vamos jogar lixo nelas! São tudo umas imunda! — Cara de Sapo pegou um pedaço de detrito da caçamba, sem hesitar. — Não mandei elas virem parar aqui.
O primeiro pedaço de lixo que Cara de Sapo jogou acertou o poço, provavelmente contaminando a água. As grávidas tentaram se proteger como podiam, algumas apenas abaixavam a cabeça em resignação conforme restos de comida e fezes as atingiam, outras tentavam correr.
— Olha a bomba! — gritou Cara de Sapo enquanto despejava uma caixa com vegetais podres sobre algumas delas. — Vê se não vai explodir de medo, suas piranhas!
— O que tá esperando? — Cara de Sapo gritou, enquanto atirava ainda mais lixo. — Vai! Joga logo!
Kilian tomou um pedaço de lixo na mão, pronto para acompanhar Cara de Sapo em sua brincadeira, porém, ao olhar para baixo, uma menina morena de olhos castanhos entre as mulheres. Ela também estava grávida, seus olhos encontraram os de Kilian, cheios de tristeza e resignação. Ele congelou, incapaz de seguir com aquilo.
— Anda! — insistiu Cara de Sapo. — Vai deixar passar essa chance?
Kilian balançou a cabeça, o pedaço de lixo, um legume podre, caiu de sua mão sem força.
— Não consigo — murmurou.
Cara de Sapo rolou os olhos, antes de continuar sua agressão. Kilian apenas observava, imóvel, enquanto o aeroplano se distanciava da vila. O olhar da menina ainda o assombrava.
— Você é um fraco, Kilian. Sempre foi. — Cara de Sapo deu de ombros, quando se virou para o horizonte.
— Você nunca se perguntou?
— Se perguntou o quê? Desembucha.
— Por que isso?
— Ah, não, cara, já vais ficar com essa lição de moral pra cima dos burro? — resmungou Cara de Sapo enquanto se flexionava com as mãos e pés no suporte da vela.
— Não é lição de moral, é que isso tudo deve ter um motivo. — reclamou Kilian.
— E quem se importa com isso? Grávidas explodem. Sempre explodiram, e vai ser assim.
— É...
Passado algum tempo, o aeroplano sobrevoou a região mais profunda do vale, que parecia uma grande ferida no chão vermelho rochoso. As montanhas escarpadas e o grande buraco no meio se intensificaram à frente, o destino de todo o lixo de Jillar era aqui. Kilian e Cara de Sapo observavam o vale familiar, enquanto ele ainda mantinha o olhar distante.
— Acha que ela vai sobreviver? — Kilian perguntou de repente.
Cara de Sapo deu de ombros.
— Ela quem?
— Deixa pra lá…
O aeroplano lixeiro avançava lentamente pelo céu sobre o Vale do Suplício, seu casco marcado pelo uso contínuo. Lá embaixo, as montanhas de lixo começavam a surgir, amontoadas em forma de montanhas gigantescas. O som das velas impulsionadoras cortava o ar quente e seco do deserto.
Ao redor, outros aeroplanos pairavam, enquanto despejavam suas cargas no vale caótico. Cada uma delas parecia adicionar mais à imensidão de detritos abaixo.
Mais adiante, a montanha central de lixo se erguia, envolta em mistério. Camadas de resíduos se acumulavam dia após dia. No vale, as pessoas habitavam os níveis mais baixos, onde o lixo era mais estável. Cabanas de madeira e metal formavam pequenas comunidades, enquanto poços improvisados e hortas dependiam da magia para sobreviver.
Conforme o transporte lixeiro se aproximava cada vez mais das montanhas de lixo, Kilian e Cara de Sapo passaram por uma infinidade de outros aeroplanos acima. Eles abriam suas comportas e despejavam suas caçambas. Era um balé caótico, onde cada aeroplano adicionava mais lixo à sua vasta extensão.
— Olha só a quantidade de aeroplanos que tem hoje — disse Kilian, depois de observar o movimento ao redor.
— É, hoje é o dia deles. Vamos se dar bem, melhor pra gente — respondeu Cara de Sapo, antes de se preparar para saltar.
Quando o aeroplano deles chegou perto de uma borda do vale, à direita, Cara de Sapo se preparou para saltar, mas Kilian o segurou pelo braço.
— Espera! Olha ali. Gnolls — sussurrou Kilian, enquanto apontou para três criaturas humanoides que vasculhavam o lixo abaixo.
Kilian e Cara de Sapo prenderam a respiração quando o som de garras arranhando a madeira chegou até eles. No horizonte, figuras sinuosas surgiam, enquanto se moviam rapidamente por entre as dunas de lixo.
— Não se mexe... — murmurou Kilian, enquanto tentava controlar a respiração.
Sem fazer um único som, os dois se encolheram na borda do aeroplano, cada músculo tenso, no que o ruído do veículo mascarasse sua presença. As sombras das criaturas se aproximavam, enquanto o som de suas respirações ásperas ficava mais nítido.
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