Volume 1
Capítulo 12: Quero ser como você
Caelinus parou de súbito e girou sobre os calcanhares com agilidade. O silêncio entre eles pesava, quebrado apenas pelo movimento distante dos transeuntes, enquanto seu olhar, antes focado, agora refletia algo mais profundo, quase melancólico. Ele deu um passo à frente e abaixou devagar a cabeça até ficar à altura de Kilian.
— Você acha que foi um jogo ontem? — Caelinus apertou a mandíbula e seu tom, embora controlado, carregava uma intensidade palpável. — Você viu o que aquele tigre quase fez com a gente? Comigo? Com você?
Kilian ficou em silêncio por um instante, seus punhos cerrados ao lado do corpo. Seus olhos vagaram brevemente pelo chão, como se buscassem algum tipo de resposta ou justificativa.
— Eu sei o que vi — ele murmurou, a voz baixa, mas ainda carregada de frustração.
Caelinus balançou a cabeça lentamente, seus lábios se apertaram em uma linha fina. Ele se ergueu novamente, de braços cruzados, sem tirar os olhos de Kilian.
— Não, você não sabe. Coragem sem sabedoria é um atalho para a morte. — Ele descruzou os braços e apontou para o horizonte. — Essa vida... não é como você imagina. É curta. Dolorosa. Eu estou aqui porque esse é o meu fardo. Mas você... — Sua voz vacilou por um instante. — Você ainda pode escolher algo melhor.
Kilian levantou a cabeça, a expressão determinada.
— E eu quero escolher o meu caminho. Você não pode decidir isso por mim, Caelinus. Eu já provei que posso fazer isso!
Caelinus soltou um longo suspiro, e seus ombros caíram levemente.
— Ouça — disse ele, agora mais calmo. — Não vou brigar com você, mas precisa entender a realidade. Ontem, tivemos sorte. Só que sorte não dura, Kilian. E se eu tivesse morrido? Como ela ficaria? E você...? — Fez uma pausa, esperando uma resposta. Diante do silêncio, prosseguiu: — Não duvido do seu potencial. Mas, agora, há algo mais importante que você precisa fazer.
Kilian franziu o cenho, confuso.
— O que pode ser mais importante do que isso?
Caelinus se inclinou um pouco, sua voz baixa, como se estivesse prestes a revelar um segredo.
— A coisa mais importante é a Melangie. Ela precisa de você agora. Ela pode não estar mais aqui amanhã. — As palavras saíram da boca dele com uma suavidade incomum, mas o peso delas era inegável.
Kilian apertou os lábios, depois engoliu em seco. Tentou se manter firme, mas suas mãos tremiam levemente.
— Eu... — A voz falhou por um segundo, e ele respirou fundo antes de continuar. — Eu só queria ser como você, Caelinus. Eu quero lutar ao seu lado.
Caelinus colocou uma mão firme no ombro de Kilian, quando o apertou de leve.
— Eu entendo isso, Kilian. Mas ser como eu exige sacrifícios, e o sacrifício agora é estar ao lado de quem mais precisa de você. — Ele o encarou com firmeza. — Lutar não é a única maneira de ser útil. O que Melangie mais precisa agora é que você esteja presente, com ela. Quando ela partir, aí sim conversamos sobre o que vem depois. Até lá, preciso que você seja forte. Por ela.
Kilian baixou a cabeça, resignado, mas ainda com a chama da determinação nos olhos.
— Tá bom... Eu vou cuidar dela.
Caelinus deu um leve aceno antes de desaparecer entre as ruas agitadas. Kilian ficou parado por um instante, enquanto o paladino se afastava até desaparecer na multidão. Apesar do peso das palavras, ele se forçou a seguir em frente, de volta para casa. A movimentação ao seu redor parecia mais distante, como um borrão.
Ao chegar numa esquina de uma rua principal, algo quebrou sua concentração. Do outro lado, avistou Nilego. Parado com os braços cruzados e o olhar fixo nele, um sorriso malicioso se desenhou lentamente em seu rosto. Kilian congelou, suas mãos instintivamente se apertaram ao lado do corpo.
— Aí, merdinha! — gritou Nilego, a voz carregada de desprezo. — Achou que ia escapar dessa, hein?
Nilego descruzou os braços com um movimento deliberado, enquanto caminhava em sua direção. Seus passos ecoavam pesadamente pelo chão de pedra, ritmados e decididos, como se cada um tivesse um propósito. Kilian percebeu que as pessoas ao redor se afastavam levemente.
O ar entre os dois parecia mais denso.
Kilian respirou fundo, numa tentativa de não demonstrar medo. Porém ficou firme, pronto para enfrentar o garoto mais forte.
— Não vou fugir, Nilego — respondeu Kilian, com voz firme.
Nilego riu, enquanto aproximava-se cada vez mais, seus olhos brilhavam de satisfação.
— É melhor assim. Mais divertido pra mim.
Quando Nilego chegou perto o suficiente, desferiu um soco. Kilian desviou por pouco. Tentando contra-atacar, acertou um golpe direto no estômago do oponente. Nilego sentiu o impacto, mas resistiu, seus dentes agora cerrados.
Nilego revidou com um soco. Acertou o maxilar de Kilian e o jogou para trás.
Kilian tentou se levantar.
Antes que conseguisse, Nilego já estava sobre ele. Os punhos caíam como martelos. Kilian ergueu os braços para se defender.
Os golpes eram implacáveis. Alguns atingiram seu rosto em cheio.
As pessoas assistiam, mas ninguém se movia para separar a briga. Kilian sentia a dor latejante em cada golpe, mas se recusava a ceder. Quando Nilego levantou o punho para desferir o golpe final, algo inesperado aconteceu.
Um escudo surgiu de repente, numa pancada no rosto de Nilego. Ele caiu no chão com a força do golpe. Caelinus estava ali, a expressão sombria e determinada. Ele chutou Nilego na barriga, enquanto o garoto rastejava pelo chão poeirento.
— Já chega, Nilego! — disse Caelinus, com voz autoritária. — Vou levar você para o seu pai. Isso precisa parar.
Ainda atordoado pela escudada, Nilego tentou atacar Caelinus.
Com um grito de raiva, ele correu e desferiu um soco. O paladino aguardou o golpe e, com um movimento ágil, colocou o escudo na frente para bloquear o punho. A mão de Nilego chocou-se contra o metal sólido, ao ponto de seus ossos estalarem.
Em um movimento fluido, Caelinus agarrou o braço de Nilego, e o torceu até a completa subjugação. Apesar de forte, Nilego não tinha chances. Com a greva do paladino pressionada no seu rosto, Nilego fora completamente neutralizado.
— Você está bem, Kilian? — perguntou Caelinus, sem desviar o olhar de Nilego.
— Estou, sim. — Kilian respondeu, seu rosto cheio de hematomas, ainda ofegante. — Obrigado, Caelinus.
Caelinus apenas acenou com a cabeça.
— Vamos, Nilego. É hora de você encarar as consequências de seus atos.
Nilego resmungou, mas não conseguiu se soltar do aperto firme do paladino. A multidão começou a se dispersar, enquanto alguns ainda cochichavam sobre o ocorrido.
Caelinus segurou com uma mão os cabelos de Nilego pela nuca, e com a outra imobilizou o seu braço enquanto caminhavam pelas ruas. Cada vez que Nilego tentava resistir, Caelinus puxava seus cabelos com mais força. A dor o obrigava a seguir em frente. Kilian observando aquilo apertou os lábios e decidiu se aproximar mais.
— Caelinus... — disse Kilian, sua voz hesitante. — Tem certeza que não é melhor deixar ele ir embora? Já aprendeu a lição.
— Não se preocupe com isso, Kilian. Você sabe tão bem quanto eu que os crimes são punidos com proporcionalidade. — Ele então puxou os cabelos de Nilego mais uma vez, para forçar o rapaz a erguer o rosto. — E eu vou garantir que ele receba uma lição inesquecível.
O rosto de Nilego empalideceu, seus olhos se arregalaram enquanto suas pernas vacilavam por um momento. A boca se entreabriu como se ele quisesse dizer algo, mas o medo o silenciava. Caelinus apenas apertou o braço dele mais forte quando um sorriso frio brincou nos lábios.
Kilian observou em silêncio, a tensão era crescente no ar.
— Paladino de merda! Vai se ferrar, você e esse infeliz aí. Acham que são melhores que todo mundo, né?
Caelinus continuava impassível, os olhos fixos no caminho à frente, ao mesmo tempo que ignorava as palavras raivosas de Nilego.
— Não tem outra coisa pra fazer, paladino desgraçado? Vai lá comer aquela vagabunda aleijada! — Nilego berrou. — Isso mesmo que você ouviu, aquela vadia inútil e semimorta. Não consegue nem comer ela!
Caelinus parou por um momento, os músculos tensos. Entretanto, respirou fundo e continuou a caminhar.
— Ficou ofendidinho, paladino? — Nilego continuou, sua voz carregada de desprezo. — Aquela vadia inútil, sim! Não vai durar muito tempo mesmo! E você, Kilian, vai ver ela se juntar com a sua mãe, outra cadela que nem sabe o nome do teu pai!
Kilian fechou os punhos. Caelinus tentava controlar a sua respiração, quando apertou ainda mais a mão nos cabelos de Nilego, para ele acelerar o passo.
Ao se aproximarem da casa de Nilego, um homem de aparência robusta, mas de baixa estatura, esperava na porta. Seus cabelos pretos e grisalhos eram ralos na parte da frente.
— O que está acontecendo aqui? — gritou o homem quando saiu de seu quintal. Ele tomou em mãos um pedaço de madeira já encostado na parede de sua casa. — Por que você está fazendo isso com o meu filho?
Caelinus, por um momento fechou os olhos, inspirou, de depois expirou. Por fim, soltou Nilego de maneira firme, mas controlada.
— Senhor Marcellus — disse Caelinus, a voz firme e serena. —, seu filho agrediu Kilian. E eu fiz o que era necessário para parar a briga.
Marcellus balançou a cabeça em incredulidade, suas mãos apertaram mais forte o pedaço de madeira.
— Tinha que ser mesmo. O Kilian está sempre provocando meu filho, chama ele de “tucano” toda hora. O que você esperava que Nilego fizesse? — rosnou ele.
Caelinus manteve o olhar fixo no homem.
— A lei de Jillar não pune ofensas, senhor Marcellus. — respondeu Caelinus, sem desviar o olhar. — Ofende-se apenas quem quer. Mas a agressão é um crime, e deve ser punida.
Marcellus deu um passo à frente, ele balançava a cabeça em indignação.
— Isso é ridículo! Você nem pode julgar essa situação. Está claramente protegendo Kilian.
Caelinus manteve o olhar fixo no homem, a mão firme no escudo diante da postura agressiva de Marcellus.
— Não estou aqui como juiz, senhor Marcellus. — disse Caelinus, com uma calma gelada. — Estou aqui como cidadão, que viu uma agressão e a fez cessar.
Ele empurrou Nilego para o pai, os olhos fixos no garoto.
— Considere isso um aviso, Nilego. Se tornar a tocar em Kilian, tomarei as medidas cabíveis.
Nilego, com o rosto vermelho de vergonha e raiva, lançou uma última ameaça.
— Vou te matar, Kilian! — gritou ele, seus olhos mergulhados em ódio.
Caelinus girou rapidamente nos calcanhares, então aproximou-se de Nilego com uma expressão severa.
— Ameaças que podem ser concretizadas também são crimes, Nilego. — disse Caelinus, a voz baixa e ameaçadora. — Desta vez, vou deixar passar. Mas também vou avisar aos Beyaras sobre este incidente.
Marcellus, ainda mais ofendido, balançou a cabeça em um sinal de desespero.
— Isso não vai ficar assim, Caelinus. — murmurou ele, o rosto contorcido de raiva.
— E o senhor vai fazer o que? Cumpra a lei, senhor Marcellus, e nada terá com que se preocupar. — respondeu Caelinus, ao mesmo tempo que deu as costas e conduziu Kilian para fora dali com a mão sobre o seu ombro. — Vamos.
Caelinus e Kilian caminharam em silêncio pelas ruas, mais uma vez para casa.
Caelinus parou na entrada, logo depois encarou Kilian.
— Como você sabia que ele tava me esperando?
— Kilian, quero que me prometa uma coisa — disse ele, com voz firme. — Nunca mais volte ao Vale do Suplício. Não importa o motivo, não quero saber de você por lá.
Kilian, com o olhar baixo, assentiu lentamente.
— Eu prometo, Caelinus. Não vou mais lá.
Caelinus colocou a mão no ombro de Kilian, dando um leve aperto como sinal de confiança.
— Bom, então é isso. Cuide da Melangie por mim.
Com isso, Caelinus se virou e caminhou para longe. Kilian ficou na porta, até Caelinus se afastar por completo.
Passados alguns dias, Kilian cumpriu com o prometido, não saía quase de casa. A rotina era monótona. Com ele envolvido nos cuidados de Melangie, aos poucos ela parecia estar melhor. No entanto, o tédio apenas crescia.
Numa manhã, enquanto Kilian estava sentado à mesa, a luz do sol era filtrada pelas cortinas velhas da janela, ele olhou para Melangie, que dormia tranquilamente.
— Droga, Caelinus! Vou apenas dar uma olhada — disse Kilian, enquanto tentava convencer a si. — Ela está bem, vou voltar antes do anoitecer.
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