Volume 1
Capítulo 15: O Pesar do Silêncio
As chamas das tochas tremulavam nas paredes, lançando sombras longas que se contorciam. O corredor parecia não ter fim, moldado em rocha antiga e úmida, cada passo ecoando num compasso lento que preenchia o silêncio. Donavan seguia sozinho. O som ritmado de suas botas batendo no chão era a única prova de movimento em meio à quietude sufocante.
De tempos em tempos, ele erguia o olhar para os relevos entalhados na parede — símbolos deformados pelo tempo, figuras de olhos e correntes, rostos de pedra que o fitavam com um ar de julgamento mudo. A capa escura balançava levemente atrás dele, arrastando poeira e gotas de água que escorriam das fissuras no teto.
Foi então que o estrondo ecoou. Grave, distante, como se uma parede inteira tivesse cedido. O barulho rolou pelos corredores, reverberando nas abóbadas subterrâneas, até se perder em um silêncio ainda mais profundo. Donavan parou no mesmo instante, o corpo imóvel, apenas os olhos se movendo na direção de onde viera o som.
— …O que foi isso? — murmurou, a voz baixa, abafada pela rocha.
O eco de sua própria pergunta voltou distorcido. Ele esperou. O único som que veio foi o gotejar da água, insistente, compassado.
Donavan estreitou os olhos. Um músculo em sua mandíbula se contraiu. Por um momento pareceu pronto para mudar a rota, mas a expressão se suavizou em um meio sorriso frio.
— Apenas pedras caindo… — disse para si, com a calma de quem não se deixa iludir. — Este lugar está podre, é natural que desabe.
Girou o rosto de volta para frente, ajeitou a capa sobre os ombros e retomou a caminhada. O barulho distante ficou para trás, mas ainda rondava sua memória, uma lembrança incômoda.
Donavan desapareceu na escuridão de um dos corredores, os passos abafados até sumirem de vez. O eco de sua presença morreu lentamente, e o silêncio pesado voltou a tomar conta do santuário. Mas não demorou até que o mesmo estrondo — agora distante, difuso — alcançasse outro ponto das galerias.
Em uma sala mais ampla, iluminada por tochas presas em suportes metálicos, três dos bandidos esperavam. O teto alto deixava pingos de água caírem em poças que já cobriam o chão irregular, e o cheiro de pedra molhada se misturava ao de couro e suor. Eles estavam sentados em torno de uma pilha de caixas quebradas, improvisando aquilo como assento.
O primeiro a quebrar o silêncio foi um sujeito magro, de nariz adunco e olhos nervosos. Cutucava uma lasca de madeira com a ponta da faca, sem olhar para os outros.
— Vocês ouviram isso, não ouviram? — perguntou, a voz tensa, quase acusatória.
O segundo, um brutamonte de braços largos e barba desgrenhada, levantou os olhos devagar, como quem foi arrancado de um cochilo. Coçou o queixo com calma, soltando um resmungo.
— Claro que ouvi. Até surdo ouviria. — Endireitou-se, jogando a cabeça para trás. — Mas pedra caindo não é novidade aqui. Esse lugar parece que vai desabar desde que entramos.
O terceiro, mais jovem, mantinha-se afastado, encostado contra a parede. Os braços cruzados e o olhar fixo no chão denunciavam impaciência. A cada poucos segundos, ele batia o pé no piso molhado.
— Não foi só pedra. — a voz dele saiu baixa, mas firme. — Soou… diferente. Como se algo tivesse quebrado lá embaixo.
O magro ergueu o olhar pela primeira vez, encarando-o.
— Exato! Eu sabia que não era só impressão minha.
O grandalhão bufou, balançando a cabeça.
— Vocês dois sempre veem coisa onde não tem. Se fosse sério, Donavan já teria voltado pra avisar.
O silêncio que se seguiu pareceu pesar ainda mais que as pedras do teto. O jovem descruzou os braços, aproximando-se dos outros dois.
— E é justamente isso que me preocupa. Donavan saiu faz tempo. Onde ele está?
O grandalhão deu de ombros, mas havia uma sombra de desconforto em seu rosto.
— Ele sabe cuidar de si. Se não voltou, é porque não quis.
— Ou porque não pode. — o magro rebateu, a voz mais aguda do que pretendia. A faca escapou de sua mão por um instante, caindo no chão de pedra com um tinido seco. Ele a pegou rápido, limpando o cabo na calça, tentando disfarçar o nervosismo. — Vocês sabem tão bem quanto eu, esse lugar não é normal.
O mais jovem estreitou os olhos, fitando o escuro do corredor de onde o estrondo parecera vir.
— Eu vou ver o que foi.
— Vai nada. — o brutamonte esticou o braço, bloqueando a passagem dele. — Não seja idiota. A ordem era esperar aqui.
— Bran, tira a mão de mim. — o rapaz empurrou o braço dele, sem sucesso. O brutamonte, agora chamado pelo nome, não se moveu, sólido como a parede. — Esperar por quanto tempo? Até as pedras caírem na nossa cabeça?
O magro interveio, levantando-se também. A voz saiu mais calma dessa vez, como se tentasse convencer a si mesmo.
— Escuta, o Kael tem razão. Se o barulho veio mesmo do fundo, pode ser que algo tenha desmoronado. Se ficarmos aqui parados, não vamos saber se Donavan está precisando de ajuda ou se é só paranoia nossa.
Bran suspirou fundo, passou a mão pelos cabelos desgrenhados e soltou um palavrão baixo.
— Droga… vocês dois vão acabar enfiando a gente numa armadilha.
Kael encarou-o de frente, firme.
— Então vem junto, ou fica aqui sozinho.
Houve uma pausa. O brutamonte rosnou, mas não respondeu. O magro aproveitou o silêncio para colocar a faca de volta no coldre, ajeitar a cinta no ombro e dizer:
— Vamos, Rurik. Só nós dois. Se for besteira, voltamos.
Rurik assentiu sem hesitar, já dando os primeiros passos em direção ao corredor escuro. Bran permaneceu sentado, observando-os sumirem na penumbra, o maxilar trincado. Passou a mão na barba, resmungando.
— Idiotas…
O som dos passos dos dois ecoou até desaparecer. A sala voltou a ficar em silêncio, apenas o gotejar constante e o estalar das tochas enchendo o espaço vazio.
E o tempo passou.
As paredes estreitas exalavam umidade, e filetes de água escorriam em silêncio pelas fendas da pedra. O ar parecia mais denso a cada metro, carregado de ferrugem e mofo.
O silêncio só era quebrado pelo eco dos passos, um compasso que se multiplicava nas profundezas.
A chama da tocha que Kael carregava oscilava a cada movimento, projetando sombras distorcidas nas paredes rugosas. Ele ergueu o braço, tentando iluminar melhor o teto, mas não conseguiu ver o fim da abóbada. Soltou um assobio baixo.
— É absurdo… — murmurou. — Um lugar desse tamanho enfiado dentro de uma montanha. Como é que ninguém lá fora nunca falou disso?
Rurik ajeitou a cinta no ombro, os olhos estreitos varrendo a escuridão.
— Falaram, sim. Só não de um jeito que dava pra acreditar. — fez uma pausa curta, como se pesasse as palavras. — Kassim disse uma vez… que isso aqui era um tipo de santuário.
Kael virou o rosto para ele, a chama da tocha iluminando sua expressão surpresa.
— Santuário? Isso? — gesticulou em volta, indicando as paredes úmidas, as marcas de desmoronamento, a água que escorria em filetes constantes. — Parece mais um túmulo abandonado.
— É. — Rurik coçou o nariz, pensativo. — Mas Kassim jurava que não. Falava de rituais antigos, gente que vinha até aqui pra… sei lá, deixar oferendas, pedir proteção. Nunca explicou direito.
O jovem estreitou os olhos, a curiosidade evidente.
— Proteção de quê?
Rurik deu de ombros, desconfortável, como quem repete algo sem acreditar totalmente.
— Isso eu já não sei... — a voz saiu baixa, quase como se tivesse receio de acordar o próprio lugar. — Disse que esse templo foi construído não pra honrar deuses… mas para buscar esperança.
A chama da tocha estalou, jogando um clarão repentino no corredor. Kael engoliu em seco, encarando a escuridão à frente.
— Esperança, é? — forçou um riso nervoso. — Ótimo. Essa foi a coisa mais ridícula que eu já ouvi.
Rurik não respondeu. Continuou andando, o olhar fixo à frente, como se não quisesse pensar mais no assunto.
O corredor se abriu em uma clareira de pedra mais larga, quase como uma pequena câmara esquecida. A luz tremeluzia ao longe, uma chama solitária no meio da escuridão.
— Tá vendo aquilo? — sussurrou Kael, apertando mais a tocha nas mãos.
— Vejo sim… — murmurou Rurik, o magro de nariz adunco, olhos sempre inquietos, que agora estreitava a visão na direção do clarão. — Mas me diz… quem larga uma tocha acesa no chão, desse jeito?
A chama dançava fraca sobre o piso irregular, iluminando apenas um círculo apertado de pedras molhadas. O resto do salão permanecia mergulhado em sombras densas.
Os dois se entreolharam. A respiração de ambos parecia mais alta do que deveria. Com passos cuidadosos, avançaram até a chama, cada um tentando se convencer de que não havia nada demais ali.
Foi nesse momento que as sombras se moveram.
Um vulto rápido saiu da escuridão, colidindo contra Kael. Num piscar de olhos, ele estava de cara no chão, os braços torcidos para trás por uma força que o imobilizava sem esforço. Suu-Yuky pressionou o joelho contra suas costas, mantendo-o rendido.
Rurik mal teve tempo de reagir. Um estampido ecoou no espaço fechado, o som seco reverberando nas paredes. A dor o atingiu como uma marretada na perna — Greg havia disparado contra a parte de trás de sua coxa. Ele gritou, mas o som morreu abafado quando uma mão firme tapou sua boca.
— Quieto. — Greg sussurrou ao pé do ouvido, frio, pressionando o cano do revólver contra a lateral da cabeça dele.
Kael, ainda esmagado no chão, tentou virar o rosto.
— Quem… quem são vocês? — a voz saiu rouca, quase engasgada pelo peso de Suu-Yuky sobre ele.
Nenhuma resposta.
Greg lançou um olhar rápido a Suu-Yuky, e a tensão que pairava entre os dois não era com os inimigos, mas com o que fariam a seguir.
— Não podemos ficar batendo cabeça aqui. — murmurou Greg, ainda segurando firme Rurik. — Eles sabem o caminho até o covil. Se forçarmos, podem levar a gente direto até o Donavan.
Suu-Yuky pressionou mais o joelho nas costas de Kael, que gemeu de dor.
— Ou direto pra uma armadilha. — rebateu. — Mas… é a melhor chance que temos.
Greg assentiu, inspirando fundo.
— Então usamos eles. Simples.
Foi nesse instante que Rurik reagiu. Sentiu a mão abafando sua boca, e a raiva misturada ao desespero subiu mais rápido do que o medo. Num movimento súbito, mordeu com força os dedos que o calavam. Greg xingou, o punho vacilou, e foi a brecha que ele precisava. A lâmina da faca surgiu em sua mão como se tivesse brotado do nada. Girou o corpo, tentando cortar o peito do adversário, mas o golpe pegou de raspão no pulso de Greg. O sangue escorreu quente.
— Greg! — a voz de Suu-Yuky ecoou, alarmada.
Num segundo, a luta virou um caos. Greg e Rurik rolaram pelo chão, cada um tentando dominar o outro. Rurik agarrou o revólver, puxando-o para si, os dedos brigando pelo gatilho. O esforço arrancava grunhidos sufocados, os dois com os rostos a centímetros de distância, suados, dentes cerrados.
O disparo explodiu sem aviso.
O corpo de Rurik estremeceu. A força saiu dele como ar de um balão furado. Os olhos se arregalaram, a boca abriu sem emitir som. O peito agora trazia um buraco negro, fumegante. Ele cambaleou para trás, os dedos ainda escorregando pela arma, até que caiu de bruços, o rosto virado para o lado.
Greg permaneceu ajoelhado, os olhos vidrados, o revólver ainda firme na mão. A respiração vinha irregular.
Kael ainda preso sob Suu-Yuky, esticou o pescoço o quanto pôde para ver o companheiro no chão. A raiva sumiu de seu rosto, substituída por algo muito mais cru: desespero.
— Ei! Ei, Rurik! — sua voz quebrou, engasgada. — Levanta, porra! Não… não faz isso comigo.
Suu-Yuky afrouxou a pressão, sem dizer nada. Kael ignorou, tentando se arrastar para perto, mas o joelho nas costas o manteve preso. Os olhos dele se fixaram no companheiro, que respirava cada vez mais fraco.
— Tá tudo bem, cara. — insistiu, a voz embargada, como se pudesse convencer o outro pela força da vontade. — Escuta… a gente ainda tem que voltar. Donavan tá esperando a gente. Lembra? Lembra do que ele prometeu?
Nenhuma resposta. Apenas o som da respiração falhando, quebrada como um vidro prestes a ceder.
— Não me deixa sozinho aqui, irmão… — Kael murmurou, os olhos marejados — A gente passou por tanta merda junto… não pode acabar assim. Não pode.
As tochas estalaram, cuspindo faíscas. O silêncio da câmara parecia zombar das palavras do rapaz. Ele forçava a voz a soar firme, mas a cada frase se despedaçava mais.
— Vamos… fica comigo. — implorou, apertando os olhos com força — Só… só aguenta mais um pouco.
Mas o corpo diante dele já não respondia. Rurik permanecia imóvel, os olhos semicerrados fixos em um ponto perdido, distante.
Kael ficou imóvel por um instante, o olhar ainda fixo em Rurik, o desespero transformando-se em um grito engasgado.
— Desgraçados! Vocês dois… desgraçados! — explodiu, a voz reverberando nas paredes úmidas, ecoando pelo corredor da câmara, cheia de dor e fúria.
Greg permaneceu de joelhos, os dedos ainda tensos em torno do revólver. Engoliu em seco, sentindo a frustração se acumular no peito. As mãos tremiam levemente, o ar parecia pesado demais para o movimento.
Ele ergueu os olhos, encarando Kael. O rosto do jovem ainda mostrava incredulidade e medo, os músculos tensos, a respiração irregular. Greg cerrou os dentes, fechando o punho ao redor da arma, e se levantou devagar, cada passo marcado pelo peso da situação. A raiva não dominava — era frustração, impotência diante do que havia ocorrido e da necessidade de controlar o que restava.
Quando alcançou Kael, pressionou o cano do revólver contra a lateral da cabeça dele. A ponta fria encostou na pele, um lembrete silencioso do poder que agora estava nas mãos de Greg.
— Se não quiser ter o mesmo destino… — murmurou, a voz tensa, mas firme — é melhor começar a cooperar.
Kael não respondeu. Fechou os olhos com força, os ombros tremendo enquanto lágrimas silenciosas escorriam pelo rosto. Nenhuma palavra, nenhum som além do gotejar da água nas pedras e do próprio fôlego irregular.
Greg manteve a arma firme, observando cada reação, sentindo a frustração se misturar ao cansaço. Ao redor, a câmara permanecia silenciosa, apenas o peso do vazio e da morte preenchendo o espaço.
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