Volume 1
Capítulo 16: Sombras do Esconderijo
O punho de Donavan bateu contra a madeira reforçada, e o eco percorreu o túnel com um som abafado. Do lado de dentro, o som dos ferrolhos se arrastando parecia mais demorado do que o normal Finalmente, a porta se abriu numa fresta iluminada pelo tremular vacilante das tochas, revelando dois rostos que primeiro congelaram de surpresa e, em seguida, se transformaram em alívio e euforia.
— Donavan! — exclamou o mais magro, segurando a porta com força para abrir caminho.
O outro não esperou resposta: deu dois tapões fortes no ombro do chefe, quase rindo de nervoso.
— E então? Qual foi o fim daqueles malditos?
Com passos lentos e firmes, ele atravessou o batente, o som seco das botas ressoando contra a pedra. A capa negra arrastava-se pelo chão irregular, riscando o silêncio da entrada. Não respondeu de imediato — deixou que o peso de sua presença preenchesse o espaço. Os homens aguardaram, tensos.
— Dei a eles o descanso que mereciam. — a voz saiu calma, quase cortês, mas havia nela uma frieza que apagava qualquer possibilidade de dúvida.
O efeito foi imediato. O silêncio explodiu em aplausos, risadas, assobios. Um deles ergueu a adaga para o alto; outro batia o cabo do machado no chão como se fosse um tambor. A vibração das comemorações corria pelas paredes, misturada ao cheiro metálico do óleo queimado que alimentava as tochas.
No meio da euforia, Donavan manteve-se imóvel, suportando os olhares reverentes. Quando finalmente falou, a voz firme e direta cortou a celebração sem esforço.
— Onde está Kassim?
A pergunta secou os risos num instante. Um dos homens coçou a nuca, sem graça.
— Ele… foi ajudar lá atrás. Está com os outros, organizando as coisas para a partida.
Donavan assentiu devagar, como se essa fosse a resposta que esperava. Seguiu pelos corredores estreitos, e a multidão abriu caminho sem necessidade de ordens.
O esconderijo era um labirinto de pedra fria, onde o ar cheirava a ferrugem e suor antigo. As tochas, encravadas em suportes de ferro, ardiam preguiçosas, lançando sombras que se retorciam. A cada curva, vozes e marteladas se misturavam: homens arrastando caixas, armas sendo conferidas, cordas sendo presas. Havia pressa no ar, mas também uma vibração nervosa, como se todos estivessem cientes de que aquele abrigo, antes seguro, já não passava de uma casca prestes a ruir.
Pelos corredores, a trilha terminou diante da saída lateral. Lá, Kassim lutava contra o próprio corpo, arqueado sobre uma caixa de barras de ferro. O esforço o fazia cerrar os dentes e perder o fôlego, mas, assim que largou a carga na carroça, esboçou um sorriso ao reconhecer a figura que se aproximava.
— Donavan! — disse, a voz carregada de sincero alívio. — Finalmente voltou.
Ele limpou o suor da testa com o antebraço, mas não deu tempo ao cansaço. Endireitou-se e foi em direção ao chefe, estendendo-lhe a mão num gesto quase impulsivo.
O líder apenas o encarou em silêncio por um instante. Seus olhos percorreram o corpo de Kassim, demorando-se sobre a faixa encharcada no ombro — lembrança recente dos disparos. Só então falou:
— Ainda está ferido. — o tom não foi de acusação, mas de uma constatação seca, como um veredito. — Você levou dois tiros e já tá carregando ferro como uma mula.
Kassim riu baixo, sem se ofender.
— Eu me recupero rápido. — bateu de leve no próprio peito, embora o gesto tenha tremido. — Não ia ficar parado enquanto todos trabalham.
Donavan avançou um passo, até a sombra de ambos se misturar na parede da carroça.
— Coragem não cura feridas, Kassim. Só as abre mais fundo.
O rapaz desviou o olhar, mordendo o lábio, mas voltou a erguer os olhos logo depois, firme.
— Talvez. Mas se vamos partir, quero ajudar a garantir que tudo esteja pronto. Não quero ser um fardo.
Um suspiro longo escapou dele, os olhos fixos na carroça quase carregada. A calma que exibia era enganosa; por trás dela, a mente já pesava os próximos passos.
— Vamos deixar o reino. — disse, em tom sereno, mas certo. — Este lugar não nos serve mais.
Kassim desviou o olhar para as chamas de uma tocha próxima, como se buscasse ali alguma resposta. Mordeu o lábio antes de falar:
— Abandonar tudo assim… Não sei se é o certo. Temos aliados, contatos… esconderijos. — balançou a cabeça, hesitante. — Mas, se é o que decidiu, eu confio na sua decisão.
Um silêncio breve pesou entre os dois. Donavan ergueu o queixo, os olhos semicerrados refletindo a oscilação da tocha.
— Não se trata de querer. É necessidade. Lugares seguros tornam-se armadilhas quando deixam de ser secretos.
Kassim deixou escapar um riso fraco, cansado, e assentiu.
— Como sempre, você pensa alguns passos à frente.
Foi nesse momento que passos firmes ecoaram do corredor, abafando qualquer resposta. Bran surgiu da escuridão, a sombra massiva tomando quase toda a entrada. O brutamonte trazia o cenho franzido e o olhar inquieto.
— Chefe, vocês viram o Kael e o Rurik? — perguntou sem rodeios, a voz grave ressoando pelo espaço. — Faz tempo que saíram. Disseram que iam checar um barulho, mas não voltaram.
Kassim se endireitou, apoiando-se no carro, tentando esconder a dor ao mover-se.
— Não voltaram? — o tom dele misturava surpresa e preocupação. — Então vou atrás.
Donavan, porém, não respondeu de imediato. Algo mais profundo o atravessou, como se o ar do lugar tivesse mudado de peso. Um arrepio percorreu-lhe a espinha, subindo até a nuca e deixando a pele arrepiada. Os dedos se cerraram involuntariamente, e por um instante parecia que até o som da masmorra cessara. Um frio denso se instalou em seu peito, diferente da umidade comum das pedras.
Kassim percebeu o esbranquiçado repentino em seu rosto e se aproximou, baixando a voz.
— Está tudo bem? Você parece… diferente.
A respiração de Donavan saiu lenta, controlada, mas os olhos permaneciam fixos em um ponto invisível do corredor. Quando falou, o tom não carregava hesitação:
— Preciso resolver algo. Continuem os preparativos.
Bran inclinou-se para frente, pronto para questionar, mas a firmeza naquelas palavras bastou para fazê-lo recuar. Kassim apenas assentiu, embora a preocupação permanecesse evidente no brilho do olhar.
Sem outra explicação, Donavan virou-se. A capa negra arrastou-se pelo chão irregular enquanto ele se perdia no corredor lateral, as chamas das tochas projetando sua silhueta.
O espaço ficou mais silencioso, e, pela primeira vez desde o retorno do chefe, Kassim e Bran trocaram um olhar pesado, cheios de perguntas que não ousaram pronunciar.
O som dos passos de Donavan se dissolveu pelo corredor estreito, arrastando consigo a sensação pesada que sua presença deixava.
Foi nesse silêncio entrecortado de ruídos metálicos e o ranger das carroças que outras sombras se infiltraram pelo subsolo. Suu-Yuky avançava pela lateral da masmorra, atento ao menor som. Seus olhos percorriam as fendas das paredes úmidas. À sua frente, Greg empurrava Kael, as mãos dele presas por cordas. O rapaz mancava, tropeçando de tempos em tempos, e cada queda era acompanhada por um puxão ríspido que o colocava de volta em pé.
— A gente não pode simplesmente entrar lá de peito aberto — Greg quebrou o silêncio, a voz grave, olhando para Suu-Yuky. — Eles vão estar preparados.
Suu-Yuky permaneceu imóvel por alguns segundos, o olhar fixo nas sombras que o fogo projetava nas paredes. Só depois respondeu:
— Por isso temos ele. — fez um gesto breve em direção a Kael. — Donavan confia nos seus homens. Se aparecermos com um deles nas mãos, a surpresa será nossa arma.
Greg estreitou os olhos, franzindo a testa.
— Surpresa só dura até a primeira bala voar. Você acha que Donavan vai negociar?
Suu-Yuky não respondeu de imediato. Parou apenas o suficiente para examinar um arco de pedra que se abria adiante, uma passagem estreita onde a luz de tochas se misturava ao cheiro de ferrugem e fumaça.
— Ninguém é intocável — retrucou, sem elevar o tom. — Se nosso refém abrir a boca no momento certo, pode nos levar direto a ele Não precisamos derrubar cada lobo do bando, apenas arrancar a cabeça do alfa.
Kael, entre eles, não ergueu a cabeça. Sentia o coração bater rápido demais, mas disfarçava. O tempo que passara sendo arrastado não fora apenas de espera: a cada tropeço, a cada torção de pulso, ele aproveitava para forçar as cordas. O atrito já abrira marcas vermelhas em sua pele, mas também havia criado espaço — pouco, mas suficiente para deslizar um dedo, depois outro. As mãos ainda estavam presas, só que menos. Muito menos.
Eles atravessaram uma área mais ampla do esconderijo, onde o teto se abria em arcos grossos de madeira, sustentando vigas que rangiam como ossos velhos. Pilhas de caixas e engradados formavam corredores improvisados. Ouvia-se ao longe o arrastar de rodas, a preparação dos bandidos para a fuga.
Greg parou, respirando fundo.
— Tá, entramos, mostramos o garoto e exigimos Donavan. Se der errado... — Ele bateu de leve com os dedos no tambor do revólver. — A gente resolve no modo difícil.
Kael fechou os olhos por um instante. Cada palavra deles caía como uma sentença de morte. Mas no fundo, uma centelha se acendia. O suor descia por sua nuca enquanto ele discretamente torcia os pulsos, sentindo o último nó ceder um pouco mais.
De súbito, ele percebeu sua chance. Bem ao lado, uma pilha instável de caixotes estava apoiada contra a parede. Bastaria um impacto para fazê-los desmoronar. Fingindo tropeçar, jogou o corpo inteiro contra a madeira.
O estrondo ecoou pelo esconderijo. Caixas se espatifaram no chão, espalhando barras de ferro que ricochetearam contra as pedras. O barulho foi tão brutal que abafou até as vozes distantes dos bandidos.
Greg saltou para trás, instintivamente erguendo a arma.
— Droga! — gritou, os olhos procurando nas sombras algum inimigo invisível.
Suu-Yuky também se virou, em posição de combate, os músculos tensos como cordas prestes a arrebentar.
No meio da confusão, Kael já estava no chão, as cordas cedendo sob o atrito de um metal pontiagudo que havia se partido entre os escombros. O coração dele parecia querer explodir no peito.
Era a sua chance.
Sem pensar duas vezes, agarrou uma das barras caídas e arremessou em direção a Greg. O ferro zuniu pelo ar, obrigando-o a recuar com um xingamento. Antes que o revólver pudesse alinhar a mira, Kael já corria, o corpo leve disparando entre os caixotes, usando-os como muralha contra os possíveis disparos.
— Pega esse maldito! — Greg rugiu, avançando.
Suu-Yuky não respondeu; seguiu como uma sombra, o olhar fixo na presa que escorregava por entre as fendas do esconderijo.
Kael corria sem olhar para trás. Cada passo parecia rasgar a sola dos pés. O som das botas de Greg e Suu-Yuky atrás dele só aumentava seu pânico. Seguiu em disparada até que a escuridão do corredor se abriu em um espaço maior — e ali estavam os outros bandidos. Haviam interrompido os preparativos, alertados pelo barulho.
Greg e Suu-Yuky frearam ao vê-los. O choque transformou o silêncio em tensão palpável. O cheiro de ferro espalhado no chão misturava-se ao da pólvora e do suor frio.
Porém, Kael não hesitou. Seus olhos marejados avistaram Kassim, que carregava outra caixa, e correu até ele cambaleando. Caiu de joelhos aos pés do homem, soluçando de forma descontrolada.
— Eles… eles mataram o Rurik! — a voz dele saiu rasgada, cada palavra quebrada pelo choro. — Me desculpa… por favor, me desculpa, Kassim! Eu tentei… eu juro que tentei…
Kassim, ainda arfando pelo esforço, largou a carga sem pensar. Se abaixou, puxando o garoto pelos ombros, tentando erguê-lo.
— Ei, calma, calma… — sua voz soava áspera, mas carregava algo paternal. — Você está vivo, isso é o que importa agora.
Kael se agarrou a ele como se fosse sua última âncora, o rosto escondido no peito do companheiro.
— Eu devia ter feito mais… ele confiou em mim… e eu… eu falhei…
A cena inteira parecia mergulhada em uma penumbra pesada, onde cada chama das tochas tremulava. Os outros bandidos olhavam em silêncio, alguns cerrando os punhos, outros já puxando as armas. A tensão era tão espessa que parecia grudar na pele.
Greg e Suu-Yuky permaneciam imóveis, apenas observando, cada um com a respiração firme e calculada. Mas sabiam: o momento da colisão havia chegado.
Enquanto o caos fervia naquele salão, Donavan seguia por outro corredor. A cada passo, a masmorra parecia mudar. A luz das tochas diminuía, substituída por uma penumbra azulada que se infiltrava pelas frestas do teto. O ar, antes denso de umidade e suor, agora tinha um peso diferente — algo próximo ao sagrado, ainda que corrompido pelo tempo.
O corredor desembocou em uma câmara distinta de todas as outras. O chão era liso, coberto por desenhos circulares gravados na pedra, que brilhavam fracamente com um resquício de energia antiga. Colunas retorcidas sustentavam o teto, como árvores fossilizadas que se dobravam sob o peso dos séculos. O cheiro ali era seco, quase mineral, diferente do resto do templo.
Donavan parou no limiar, os olhos estreitando. Havia duas figuras na escuridão do outro extremo da sala. Não passavam de silhuetas, imóveis, mas o simples fato de estarem ali já distorcia a atmosfera do lugar.
O silêncio durou alguns instantes. Então, a voz de Donavan se ergueu, baixa, mas carregada de uma raiva contido:
— Tinha certeza de que não teria que lidar com você novamente… Pombo Branco.
As palavras ressoaram pela câmara, ganhando ecos que pareciam não se dissipar.
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