O Inferno de Pandora Brasileira

Autor(a): Kamikaze


Volume 0

Capítulo 5: Quinta Sinfonia

O sol nasceu mais uma vez, pintando o horizonte com suas cores vibrantes. No jardim, as garotas encarregadas de cuidar das flores, Pandora e Júlia, estavam ocupadas em suas tarefas. Pandora aparava as flores e cuidava dos pequenos muros de grama, enquanto Júlia regava as rosas restantes. As flores eram mantidas em uma área isolada do jardim, considerada a mais bela da mansão. Passear pelo roseiral era o passatempo favorito da filha do Lorde Ícaro e, portanto, cuidar dele com excelência era uma tarefa crucial.

Todas as tardes, a pequena garotinha ia para o gazebo que ficava no meio do recanto para desenhar até o pôr do sol. Enquanto trabalhavam, Júlia perguntou a Pandora se ela achava que Kay estava brava com ela.

— Por que você acha isso? — perguntou Pandora.

— Ela tem me evitado há algum tempo e eu quase não a vejo mais. Ontem à noite, nós nos encontramos no corredor depois de muito tempo e eu falei com ela, mas ela fingiu que eu nem estava lá… — respondeu Júlia, preocupada.

— Não acho que o problema esteja em você… Eu conversei com ela ontem, mas ela estava diferente… Ela não parava de falar daquele traste e acabamos discutindo.

— Sério? Vocês discutiram? — Júlia perguntou, com um tom sarcástico. — Eu nunca conseguiria imaginar vocês duas brigando, são tão próximas.

— É estranho, né? — suspirou Pandora. — Parece que tudo está desabando de uma vez só. — ela completou com um sorriso no rosto, mas seus olhos abatidos revelavam a sua tristeza.

— Eu sei como é isso, minha cabeça está tão cansada que até meu corpo dói.

— Caramba, ouvir isso de uma criança faz eu me sentir uma idosa — brincou Pandora.

— Ei, eu não sou mais uma criança! — retrucou Júlia, aumentando o tom de voz.

— Desculpe, não quis ofender. Só estou dizendo que não precisa ter tanta pressa em crescer, Tampinha. — Pandora soltou um breve sorriso.

— Para de me chamar assim! — Júlia protestou.

— Tudo bem, tudo bem. Desculpe, Anão de Jardim. — Pandora riu.

— Ei, para com isso- 

Júlia foi interrompida pela chegada de uma pequena garota de cabelos loiros em dois rabos de cavalo.

A presença repentina da garota assustou as duas, mas logo se recompuseram e a cumprimentaram educadamente:

— Bom dia, Lady Lara! — disseram juntas, curvando-se levemente.

— Que flor linda! — exclamou a menina ao avistar as Rosas Brancas de York. Uma espécie de rosa tão alvas que se for vista de longe pode até mesmo ser confundidas com um simples algodoeiro.

— Elas começaram a desabrochar há poucos dias — respondeu Pandora.

— Incrível! Venho sempre por aqui, mas ainda não tinha visto elas… — respondeu Lara, boquiaberta. — Elas são lindas!

— Que surpresa te encontrar aqui tão cedo, Lady Lara. Aconteceu algo? Precisa de alguma ajuda? — perguntou Júlia.

— Não, não aconteceu nada. Só estava um pouco entediada e quis mudar um pouco a minha rotina — explicou a menina.

— Ah, certo — respondeu Júlia, se afastando disfarçadamente. Ela estava com medo de receber uma reclamação por ter sido pega conversando enquanto estava na hora de serviço. —  Então, eu vou voltar ao trabalho.

Ela voltou a regar as plantas do outro lado do jardim.

— O que você está fazendo? — perguntou Lara, ao ver Pandora cortando as flores, enquanto esboçava um sorriso sereno em seu rosto.

Hmm… Ela está tentando interagir comigo? Pelo visto ela é mesmo bem diferente do pai como todos dizem...

— Estou podando as flores, isso as ajudam a crescerem mais rápido — Pandora respondeu enquanto mostrava como se fazia para a garotinha.

— Ohhh, que incrível!

Ao ver o entusiasmo dela, Pandora decidiu fazer uma pergunta ousada para a realidade daquele tempo.

— Você quer tentar?

Ao ouvir a proposta de Pandora, Júlia parou o que estava fazendo e ficou apreensiva. Seu coração havia pulado uma batida, mas mesmo assim ela não virou o olhar para elas. Júlia começou até mesmo a questionar a sanidade de Pandora. Afinal, ninguém em sã consciência, na condição de escravo, chamaria um de seus lordes para trabalhar consigo.

— Claro!! Posso mesmo? — perguntou Lara, animada. 

Ao ver a reação da menina, Júlia suspirou de alívio.

— Claro que pode! — respondeu Pandora com um sorriso no rosto. 

Enquanto Lara pegava as tesouras com cuidado, Pandora explicou como segurá-las e onde cortar, sempre com um tom paciente e encorajador. Júlia observava a cena com curiosidade, e mesmo com medo das possíveis consequências, sentiu uma pontada de inveja pela liberdade de Pandora.

— Isso é muito divertido! — exclamou Lara.

— Que bom que está gostando. — disse Pandora, feliz em ver a alegria da garota. — Você sabe, eu também adoro flores. Imagina só poder correr em um campo repleto delas... Deve ser incrível.

Ela realmente não se parece nada com ele, pelo menos algo bom tinha que sair dessa família — pensou Pandora enquanto um leve sorriso se desenhava em seu rosto.

Júlia continuou regando as plantas, mas não pôde deixar de se surpreender com a atitude de Lara. Ela sempre tinha sido gentil com todos os escravos, mas Júlia nunca tinha visto nenhum dos seus senhores se sujarem de terra ou se envolverem com o trabalho braçal.

As três continuaram a podar as flores juntas, conversando, rindo e se divertindo. Por um breve momento, parecia que as diferenças sociais entre elas não existiam.

— É um sonho bonito, acho que seria divertido. 

— Não é? — os seus olhos se iluminaram. — Mas, e você? Qual é o seu sonho?

— Hmm…? Um sonho...? Eu acho que não tenho um faz muito tempo.

— Mas por que? Isso é algo que todos tem, não é? Somos movidos a continuar vivendo apenas por causa dos nossos sonhos, vivemos para realizar nossos desejos mais profundos, por isso que quando um deles se torna realidade, nossa mente já cria outro, e assim vai por toda a vida. Sem os nossos sonhos não somos nada, tanto que muitos daqueles que perdem tudo preferem a morte do que continuar lutando. 

— Nossa, você é mais inteligente do que parece — disse Júlia cerrando os olhos de leve — Tem certeza que você é mais nova do que eu? Crianças não falam esse tipo de coisa.

— Não fale como se você também não fosse uma criança.

— Bom, não foi eu que pensei nessas coisas — ela riu. — Eu só estou repetindo o que eu li, meu pai sempre traz livros da cidade de Micenas para mim e algumas coisas grudam na cabeça. 

— Ohhh! Você sabe ler? Eu queria poder ler um livro daqueles bem grandões um dia — depois de perceber a pergunta com a resposta mais óbvia possível, Júlia ficou sem graça — Bom, acho que o estranho seria você não saber, não é?

— Eu posso te emprestar um, na verdade, posso te emprestar vários. No meu quarto tem uma estante cheia deles, gosto bastante de ler, então sempre que termino um eu já peço outro para meu pai.

— Então… É que eu não tive oportunidade de aprender a ler — respondeu Julia, meio desapontada com si mesma e continuou. — Minha família não tinha condições nem de aprender, quanto mais me ensinar.

— Se você quiser eu posso te ensinar — disse Lara.

Surpresa com a proposta da garota, Júlia respondeu enquanto gaguejava várias vezes.

— Bom, eu não queria te atrapalhar e nem nada assim.

— Tá tudo bem, não irá.

— Eu também posso ajudar — afirmou Pandora.

Júlia ficou completamente sem reação e apenas agradeceu com a voz incrivelmente baixa como se ela estivesse morrendo de vergonha.

— Mas enfim, com toda certeza você tem um sonho, mesmo que ele esteja escondido dentro do seu coração é ele que te faz levantar da cama todos os dias.

Ao ouvir isso, memórias de quando sua mãe ensinava a tocar harpa passaram em sua cabeça.

Ah… É verdade, acho que finalmente entendi…

Após olhar para o seu passado e refletir por várias noites, Pandora, que até então havia enterrado a sua esperança junto das pequenas sementes das flores que a garota havia plantado, finalmente reacendeu a sua vontade de estar viva e, agora, ela poderia seguir firme na espera de atingir o seu principal objetivo: transformar o seu desejo em realidade. 

— Meu maior sonho é poder ver minha mãe novamente — disse Pandora, enquanto um enorme sorriso abria em seu rosto e seus olhos brilharam como a chama de uma fogueira.

Lara não conseguiu entender a profundidade das palavras de Pandora, a única reação que a pequena garotinha teve foi apenas continuar olhando para ela.

Júlia estava novamente regando as flores, mas mesmo que de longe, não deixou de ouvir o verdadeiro desejo de Pandora.

Ela sentiu… Ela conseguiu sentir o verdadeiro amor, a verdadeira chama de esperança saindo dos olhos e do coração de Pandora. Os sentimentos dela foram tão intensos que contagiaram e incendiaram o coração de Júlia, que também passou pelo enorme peso de perder seus pais com tão pouca idade. 

— Pandora, você está com um sorriso tão bonito no rosto agora. — disse Júlia, olhando para a garota com admiração enquanto uma lágrima de felicidade descia pelas curvas de seu rosto — Acho que é a primeira vez que vi você sorrindo assim.

As três ficaram conversando e rindo por um breve momento, apreciando a beleza das flores que crescem diante delas, enquanto uma nova esperança começava a brotar nos corações das duas garotas que tiveram as suas liberdades arrancadas de si. 

E então, ouviu-se uma voz feminina vindo de longe.

— Lady Lara!!! 

As garotas se assustaram.

— Opa… Parece que estão me procurando, hehe! — disse ela, enquanto se encolhia.

— Você não disse para ninguém que estava aqui?

— Não, eu meio que fugi do meu quarto… — Lara riu, coçando a cabeça. — Mas agora preciso ir!

Antes de partir, Lara virou-se para Pandora e Júlia.

— Ah, quase me esqueci. Como vocês se chamam?

— Pandora — respondeu ela, sorrindo timidamente.

— Júlia! A garota que reunirá o maior exército da terra para dominar Micenas e se tornar a próxima a próxima rainha — disse a garota enquanto fazia uma saudação militar.

— Pandora… Que nome bonito. Prazer em conhecê-las! E não vejo a hora disso acontecer, Júlia — disse Lara, estendendo a mão para cumprimentá-las como uma igual.

Depois, correu em direção à voz que a chamava.

Pandora e Júlia trocaram olhares, ainda um pouco perplexas com a repentina aparição e partida de Lara.

— Ela não se parece nada com o Lorde Ícaro, não é? — comentou Júlia, olhando para Lara brincando com as borboletas enquanto corria para longe.

— Não mesmo — concordou Pandora.

— Pelo visto, ela não puxou ao desgraçado do pai — Júlia continuou, suspirando.

— Fico feliz por ela. Imagina se ela fosse sem coração igual aquele maldito? Eu sentiria pena dela... E de nós — Pandora respondeu, sentindo um peso no peito ao pensar no passado.

Júlia bocejou alto e esticou os braços.

— Vamos voltar ao trabalho e acabar logo com isso. Não vejo a hora de terminar para podermos descansar um pouco.

— Sim, "Senhora"! — respondeu Pandora, em um tom sarcástico.

Elas pegaram suas ferramentas de jardinagem e voltaram a trabalhar, mas as palavras de Lara ainda ecoavam na mente de Pandora, trazendo de volta memórias que ela havia enterrado há muito tempo. Memórias felizes da sua infância e da sua família.

No fim da noite, Júlia, que estava voltando do serviço de última hora que foi lhe designado no galpão, estava andando pelos corredores em direção ao seu quarto.

Já era tarde, todos já estavam em seus dormitórios, então aquela enorme mansão estava completamente deserta e todas as velas já haviam sido apagadas. Enquanto caminhava, raramente alguns guardas passavam por ela, então, na maioria do tempo, os únicos resquícios de vida daqueles corredores eram os sons dos passos e da própria respiração da garota.

Ao caminhar por alguns minutos, Júlia já estava na metade do caminho, até que ela passou por um dos corredores que continha um grande espaço salão à direita. Nele, havia uma enorme estátua de um anjo apontando uma espada para os céus, que ocupava metade do enorme salão.

Enquanto ela seguia adiante, Júlia ouviu um barulho de vozes abafadas, sendo uma delas de uma garota, vindo deste salão. A garota queria fingir que nem estava ouvindo, já que isso acontecia frequentemente. Porém, ela reconheceu uma voz familiar e não resistiu a curiosidade. Com passos leves, Júlia espreitou pelos cantos, tentando se aproximar sem ser vista ou ouvida.

Ao chegar perto o suficiente, mas ainda mantendo a distância, a garota observou a discussão.

— O que mais você quer de mim?! 

— Eu quero que você me deixe em paz! 

Ao ouvir a resposta do homem, Júlia, que estava atrás de um pilastra ouvindo tudo, moveu-se um pouco para reconhecer quem era.

Após fazer isso, ela pôde ver com clareza. Kay estava segurando o colarinho de Heitor e gritando aos prantos.

— Mas por quê? Eu já fiz tudo por você, até mesmo trair meus amigos só para garantir sua segurança. Por que você não se importa com os meus sentimentos? 

— O quê? Sentimentos? — Heitor riu e continuou. — Você é mesmo uma idiota. Eu só te usei esse tempo inteiro, mas… Como você não tem mais nada para me oferecer, eu não preciso mais de você.

— Mas e a promessa de sair desse lugar para nos casarmos?! 

— Hmmf… Que promessa? 

Os olhos de Kay arregalaram-se ao ouvir tais palavras.

— Eu não me lembro de ter feito nenhuma promessa — completou Heitor, enquanto ria da situação. — Eu nunca me casaria com uma escrava como você.

Kay, ainda tremendo, em uma última tentativa desesperada de poupar o seu coração de ser partido, sacrificou o seu senso lógico e jogou-se em direção a Heitor novamente.

— Por favor, me diga o que mais você quer de mim… Eu não me importo de ser apenas um objeto que você usa e descarta quantas vezes quiser. 

Heitor, com uma expressão desconfortável, deu dois passos para trás, mas mesmo assim ela continuava agarrada a ele.

— Eu sacrifiquei tudo por você, até mesmo meus amigos. Só me diga o que você precisa. Qualquer coisa! Só não me deixa sozinha! Se quiser, eu te deixo usar até mesmo o meu corpo!

Já impaciente, o homem de cabelos longos a empurrou, conseguindo assim afastar a garota. Após isso, Heitor estapeou o rosto de Kay. O tapa foi tão forte que a fez cair no chão de joelhos.

— Eu já disse! Eu só preciso que você me deixe em paz! Criança idiota! Vá atrás de outro idiota como você para te aturar!

Após dizer isso, Heitor deu um chute na barriga da garota e saiu lentamente. 

Júlia, que estava vendo de longe, continuou olhando para Kay chorando enquanto estava deitada sobre o chão, até que os olhos de ambas se encontraram.

A garota com uma expressão séria e olhar vazio, olhou profundamente nos olhos de Kay e disse:

— Então foi por esse aí que você trocou a gente?

Kay não conseguiu responder e apenas continuou chorando enquanto olhava para Júlia, que virou-se novamente em direção ao corredor e seguiu direto para o seu quarto sem olhar para trás, deixando a garota chorando, dividindo a solidão com apenas uma companhia…

A culpa.



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