O Inferno de Pandora Brasileira

Autor(a): Kamikaze


Volume 0

Capítulo 4: Quarta Sinfonia

Passaram-se duas semanas desde o ocorrido. Pandora e Kay estavam trabalhando no fundo da mansão. Kay estava responsável por lavar as roupas sujas da família de Ícaro, enquanto Pandora pendurava as que já estavam limpas no varal.

Era bem cedo da manhã, a brisa forte e fria soprava sobre os cabelos das duas enquanto o sol esquentava de leve os seus rostos.

— Como estão suas costas?

— Ainda doem muito, mas já estou conseguindo andar melhor…

— Mas por que fizeram isso com você? Nunca tinham feito isso nessa intensidade antes.

— Eu não sei…

— Você não disse nada de mais para eles, né?

— Eu já disse que não sei! — gritou Pandora.

Kay estranhou a reação dela, afinal, ela nunca havia visto Pandora perder o controle, ainda mais por causa de uma simples pergunta.

— Precisava gritar? Eu só estava preocupada com você…

— Desculpa… — disse ela, enquanto colocava a mão em sua testa.

— Você não tem andado muito animada recentemente, está acontecendo alguma coisa?

— Hmmm…

— O que foi? Você sabe que pode confiar em mim.

— A gente pode ir para um lugar mais discreto?

Kay ficou surpresa com o pedido da garota, mas acabou cedendo. Depois de concluírem o trabalho, foram para o quarto de Pandora.

— Você vai o quê?! — gritou Kay.

— Fala mais baixo! — respondeu Pandora, sussurrando.

— Como assim você vai tentar fugir? Por acaso perdeu o juízo? — disse Kay, enquanto simulava estar gritando em tom de sussurro.

— Eu não aguento mais ficar aqui, eles vão acabar me matando…

— Se você tentar fugir, aí sim que eles vão te matar!

— Prefiro morrer lutando, do que morrer fazendo o que eles querem! — gritou Pandora, com um olhar enfurecido. 

A atmosfera do ambiente ficou pesada, a conversa delas se esquentou e começou a virar uma discussão. 

— Ah, bom… Até porque uma garota de dezessete primaveras conseguiria lutar contra uma divisão inteira de soldados fortemente armados! — Kay se enfureceu.

— Eu sei muito bem me defender sozinha! 

Kay resmungou e deu um breve suspiro.

— Me diz que pelo menos você não contou esse seu plano idiota para a Júlia…

— Ela ainda não sabe de nada, mas vou levá-la comigo. A fuga será daqui a quatro meses, no dia vinte e oito… Se quiser, venha com a gente também…

— O quê?! Você é maluca mesmo. Além de colocar a sua vida em perigo, você ainda quer colocar a dela e a minha também? — Kay, que estava enfurecida, foi em direção à porta. — Eu nunca irei trair você, mas não me faça participar disso! Isso vai contra as nossas regras de sobrevivência e com certeza, vai deixar o senhor Heitor irritado!

— E quem liga para o que o Heitor pensa? Aquele desgraçado matou a nossa família! Ele queimou seus pais vivos e crucificou os seus três irmãos, ou será que você já se esqueceu?! Deixa de ser idiota e para de puxar o saco daquele bastardo maldito!

Ao ouvir as palavras duras de Pandora, Kay sentiu-se totalmente confusa. Ela deu um soco na porta e saiu correndo do quarto, deixando a mesma, aberta. Pandora, que estava sentada na sua cama, deitou-se com uma expressão vazia. 

— Que dor de cabeça — a garota pensou em voz alta enquanto levava sua mão a cabeça.

Uma voz desconhecida ecoou estridente nos ouvidos. Era oca, efêmera e tão assustadora, que parecia ser algo de outro mundo.

— Pandora.

Então, pôde ser ouvida a segunda badalada do relógio.

Pandora parou. Ela congelou. Pouco a  pouco, a sua realidade começou a se apagar, restando apenas ela em meio ao vazio. 

Várias vozes surgiram e continuavam a ecoar enquanto várias memórias ruins de sua estadia naquela mansão começavam a aparecer em sua mente.

Pandora. Pandora. Pandora. Pandora. Pandora. Pandora. Pandora. Pandora. Pandora. Pandora. Pandora. Pandora. Pandora. Pandora. Pandora. Pandora. Pandora. Pandora. Pandora. Pandora. Pandora. Pandora. Pandora. Pandora. Pandora. Pandora. Pandora. Pandora. Pandora. Pandora. Pandora. Pandora. Pandora. Pandora. Pandora. Pandora.

…O que… o que é isso…?

Pandora desesperadamente tentou cobrir seus ouvidos, mas as vozes continuavam a ecoar implacavelmente, assim como suas lágrimas teimosas. Enquanto as memórias invadiam sua mente, um lapso do dia em que ela quebrou a promessa com sua mãe passou por sua cabeça. De repente, uma voz sussurrante falou:

— Eles te fazem sofrer e é assim que você reage? Você chora como uma criança?

Outro momento se passou diante de seus olhos e dessa vez Pandora se viu abrindo a primeira página do conhecimento proibido, onde estava escrito: Magia do Chaos – Manipulação da Força Primordial.

— Aceite sua realidade e conserte as coisas do seu jeito. Você já sabe como fazer, só te resta pôr em prática. 

Outra imagem passou pela mente de Pandora. Ela se viu levitando com as pernas cruzadas, segurando o livro proibido em frente ao seu rosto enquanto lia suas páginas com uma aura caótica emanando de seu corpo.

— Tudo depende de você — sussurrou uma voz misteriosa em sua mente.

Várias memórias das páginas do livro começaram a aparecer em uma frequência ainda mais rápida, deixando a mente de Pandora à beira do colapso.

Até que a voz de um garoto a trouxe de volta para a realidade. Seus globos oculares que estavam completamente avermelhados como se estivessem totalmente ressecados ou até mesmo sangrando se tornaram brancos novamente ao ouvi-la.

— Você está bem?

Pandora se assustou com o rapaz que havia entrado no seu quarto e gritou enquanto jogava as almofadas que via pela frente em sua direção.

— Eii, calma!

— Quem é você? Por que você tá aqui? Saia já daqui! — gritou Pandora.

— A porta estava aberta, eu estava passando pelo corredor e vi você chorando. Eu só queria ajud–.

 O garoto foi brutalmente interrompido por um forte travesseiro que foi arremessado em seu rosto, o fazendo cair para trás.

— Você é doente? Você iria se aproveitar de uma garota sozinha e chorando, seu maldito? — gritou Pandora, enquanto tirava o travesseiro do rosto do garoto e aplicava uma sequência de travesseiradas nele.

— E-Eu só queria ajudar! — gaguejou o garoto, enquanto perdia a consciência. 

Ao ver o jovem soldado desmaiado bem na sua frente, ela entrou em desespero.

— É hoje que me matam!

Rodando em círculos a garota pensou em voz alta:

— Pelos deuses! Se ele contar para alguém eu estou ferrada… O que eu faço? O que eu faço? Será se eu o levo para longe daqui ou… Termino o serviço?! 

A garota se debateu ao perceber a besteira que havia pensado.

Talvez ele só esqueça o que aconteceu — ela pensou enquanto soltava um sorriso desconcertado de desespero.

Arrependida e sem saber o que fazer, ela o arrastou e com muita dificuldade, o colocou em cima de sua cama.

Minutos depois, ele acordou e viu Pandora sentada na cama ao seu lado.

— Argh… O que aconteceu?

— Hmn? Você acordou rápido.

— Ai… O que tem dentro desses travesseiros? — Ele indagou, claramente desconfortável.

Ele não esqueceu, hehe…

Pandora riu nervosamente antes de responder: 

— Bem, nós colocamos algumas pedras junto com as penas. Isso os torna mais volumosos e serve como defesa se necessário.

Ao ouvir isso, o jovem soldado ficou sem reação enquanto continuava olhando para ela.

— Você é novo por aqui? Eu não me lembro de ter te visto por aqui antes — perguntou ela com curiosidade.

— Sim, eu sou. Comecei a trabalhar na guarda da mansão hoje pela manhã — respondeu o soldado com um sorriso orgulhoso.

— Ah, então é por isso — ela disse compreendendo.

— O quê?

— O porquê de você está falando com uma escrava. Você não deve conhecer as regras daqui ainda. Os soldados são proibidos de interagir conosco — ela respondeu com uma expressão preocupada. — É melhor você sair daqui logo, ou pode acabar se machucando.

— Desculpe, eu não sabia disso. Não pretendia desrespeitar as regras — respondeu ele, claramente constrangido.

Ela o olhou com desconfiança, mas seu tom de voz suavizou um pouco. 

— Tudo bem. Só estou te alertando para o seu próprio bem. Os soldados aqui são bem rígidos com essas coisas. Não quero que você se meta em problemas por minha causa.

Ele assentiu com a cabeça, agradecido pela advertência.

O jovem soldado ficou em silêncio por alguns segundos e foi até a porta. Pandora, que já esperava uma reação deste tipo, apenas ficou quieta e deixou ele ir sem contestar.

Mas, de repente, ao invés de sair pela porta, ele a fechou. 

Ver essa cena, trouxe de volta memórias ruins à mente de Pandora… Memórias da noite em que outro soldado a trancou consigo em um quarto para chicoteá-la até o ponto de suas costas sangrarem.

Ao ver aquela fatídica cena se repetindo bem na sua frente, ela entrou em desespero e disse enquanto sua voz falhava:

— O que você está fazendo? Por favor, não faça isso. Eu não quero me meter em problemas, eu imploro.

— Pronto, problema resolvido — respondeu ele, em um tom convencido.

O soldado olhou para ela, surpreso pela sua reação. Ele notou a angústia em seus olhos e percebeu que havia acionado um gatilho doloroso nela.

— Desculpe, não era minha intenção te assustar. Eu só… Eu só queria dizer que… — Ele gaguejou, sem saber o que dizer.

Pandora tentou se acalmar, respirando fundo algumas vezes. Ela olhou para o soldado e, lentamente, se aproximou dele.

— Tudo bem. Eu sei que você não é como aqueles outros soldados. Eu só fiquei um pouco nervosa — disse ela, tentando sorrir para tranquilizá-lo.

O soldado olhou para ela com um olhar gentil e se desculpou novamente.

— Eu realmente sinto muito. Eu não vou te machucar, eu prometo.

Pandora olhou para ele, ainda um pouco receosa, mas notou a sinceridade em seus olhos. Ela finalmente conseguiu se acalmar um pouco e agradeceu a ele.

— Eu posso não conhecer bem as regras, mas mesmo assim, eu não iria deixar você chorando aqui sozinha… — ele continuou. — Ainda mais por causa de ordens de um nobre idiota. 

A jovem garota se surpreendeu, ela não esperava uma atitude dessas, ainda mais vinda de um soldado. Seu rosto havia ficado levemente vermelho e sua mente havia se perdido em meio às palavras.

— Po…? Por…? Por acaso… Por acaso você perdeu o senso de perigo? Se alguém te pegar aqui, você pode morrer!

— Hoo! Não dá para perder o que não se tem — respondeu ele, em um tom sarcástico.

Pandora olhou para ele em silêncio, até que ela não aguentou mais se segurar e começou a rir.

O jovem garoto, ao ver a reação dela, também soltou um breve sorriso.

Pelo menos consegui animar ela um pouco — pensou ele.

— Mas e então? Como você se chama, vossa Majestade? — ele curvou-se fazendo reverência e engrossando a voz, como se estivesse zombando do comportamento dos nobres.

— Eu me chamo Pandora — ela continuou. — E você, meu bravo cavaleiro? — perguntou ela, também zombando.

Os dois começaram a rir e então, ele respondeu:

— Meu nome é Pedro. Estou ao seu dispor, Majestade. 

— Que coincidência… — disse ela enquanto soltava um singelo sorriso. — Meu pai também se chamava assim.

— Sério?

 … … …

Eles continuaram conversando por horas, até que Pandora precisou sair para cuidar do almoço junto com as outras escravas e Pedro precisava continuar fazendo sua ronda.

Na noite deste mesmo dia, a luz do luar iluminava o rosto de Kay em um quarto escuro. Ela estava em um escritório e atrás dela havia uma enorme janela, com uma bela vista do céu noturno. A garota estava em uma enorme poltrona, sentada sobre o colo de Heitor e o abraçando.

— Então ela está planejando fugir, não é mesmo?

— Sim, ela também tem falado muito sobre sonhos e esperança. Se isso se espalhar para as outras escravas, a situação pode ficar complicada... — ela suspirou. — Tenho medo de que elas iniciem uma rebelião e algo aconteça com você, meu Senhor.

— Parece que teremos que usar ela como exemplo.

— Concordo plenamente, meu Senhor. 



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