Volume 0
Capítulo 3: Terceira Sinfonia
Passaram alguns dias e Pandora continuou lendo seu livro todos os dias durante a madrugada, isso a deixava um pouco desgastada durante o dia, o que acabava atrapalhando sua rotina de trabalho com Kay e Júlia.
Com o tempo, as novas escravas foram se acostumando com a violência e abuso do lugar. Agora, não era mais uma escolha se adequar, era sobreviver. Elas tinham apenas três opções: ficar paradas e chorar até morrer de fome, se rebelar e morrer nas mãos dos guardas, ou se adaptar e mostrar que eram úteis para continuar vivas.
Um dia, uma das garotas escolheu se rebelar e tentou fugir durante a noite. Mas Ícaro ordenou que seus soldados soltassem os cães e a capturassem para dar um exemplo. Quando a pegaram, mataram-na e colocaram seu corpo no salão principal para que as outras escravas o retirassem e o enterrassem.
Tudo se manteve igual, até que um jovem soldado foi recrutado para aquele casarão, ele tinha apenas dezessete anos e foi vendido pelos pais para pagar uma dívida ao Lorde Ícaro. Claro, escravos que eram vendidos para se tornarem soldados não passavam pelo mesmo sofrimento das escravas, eles não sofriam violência física ou psicológica e ainda podiam ver suas famílias a cada dois anos.
Ele chegou na mansão para seu primeiro dia e foi diretamente para a sala de armas. A sala ficava em um depósito no fundo da mansão, vigiada pelos soldados o dia inteiro e funcionava como se fosse um posto de operações da guarda da mansão.
Ao entrar, o garoto olhou para o canto da sala e viu que havia uma porta que levava a um tipo de escritório. Ele a abriu e, ao entrar, viu um homem sentado atrás de uma mesa, escrevendo em uma folha de papiro.
— Ah! Olha só se não é o nosso novato! — disse Yuri.
— Bom dia, Senhor Yuri.
O jovem soldado foi de encontro à mesa e sentou-se.
— Não precisa de tanta formalidade, garoto. Como é o seu nome?
— Me chamo Pedro Keffali Drakon, Senhor!
— Que nome mais estranho hein, garoto… — Yuri deu um breve riso. — Significa “Cabeça do Dragão”, não é?
— Sim, há uma lenda na minha família que diz que nossos ancestrais eram domadores de dragões — um sorriso sarcástico apareceu em seu rosto. — É uma loucura, mas é daí que vem o sobrenome.
— Domar dragões? Meio difícil de acreditar, hein… — respondeu Yuri, enquanto gargalhava.
— Pois é, sei bem disso.
Yuri percebeu que as mãos de Pedro estavam trêmulas.
— Bom, você tá nervoso para seu primeiro dia, menino dragão?
— Nem um pouco, senhor! — gritou Pedro, em um tom de orgulho, enquanto continuava a tremer.
— Uhum… Se é o que você diz… — Yuri respondeu em um tom irônico ao ver o nervosismo de Pedro. — Mas pode ficar tranquilo, a casa é bem pacífica. Você só precisa tomar cuidado para não esbarrar com o Comandante Heitor, ele anda muito estressado recentemente.
Pedro levantou-se da cadeira.
— Certo, darei o meu melhor! — gritou Pedro, enquanto batia o punho em seu peito, que era a saudação militar da região.
— Assim que se fala, soldado! Agora vá, pegue sua espada e coloque sua armadura, jovem!
Pedro confirmou balançando a cabeça e depois saiu pela porta.
Antes de começar o expediente, o garoto foi até o seu alojamento, sentou-se sobre uma mesa, pegou um papel e começou a escrever.
"Querida Mamãe, passei pelo treinamento e finalmente vou começar o meu primeiro dia na guarda. Espero que seja divertido e que eu faça novos amigos, mas, confesso que estou um pouco nervoso. O senhor Yuri parece ser uma pessoa bacana, ele me tratou muito bem, mas o comandante Heitor me dá calafrios rsrs.”
— Vamos lá novato! — um dos seus novos colegas o chamou e continuou. — Temos muito trabalho hoje.
“Bom, preciso ser breve, já estão me chamando. Cuidem bem do maninho por mim, irei trabalhar duro para pagar nossa dívida e mandarei o que sobrar do salário para vocês, ah, quase esqueci, mande um abraço para o papai, diga que estou com saudades. Espero poder vê-los logo, se cuidem!”
O garoto pegou um envelope pequeno, e após dobrar a carta, colocou-a dentro do mesmo. Após isso, ele pegou uma das velas que estava próximo e usou para derreter a cera para lacrar a carta.
Pedro correu e após entregar a carta para o porteiro da mansão, foi direto para o seu posto designado, do lado oeste da mansão, perto de um pequeno lago, e começou o expediente do seu primeiro dia de trabalho.
†
As horas se arrastaram e a noite chegou, acompanhada pelo som da harpa de Pandora. Houve um encontro fechado naquela noite, com apenas cinco nobres presentes.
Eles representavam o mercado ilegal de armas do continente, desviando um terço da produção da fábrica de Ícaro e vendendo armas de todos os tipos — lanças, espadas, machados e escudos – para rebeldes e criminosos a preços acessíveis. Essa era a verdadeira fonte de riqueza de Ícaro.
Pandora tocava a harpa enquanto jantavam. Ela estava sozinha, sem a banda particular de Ícaro, ouvindo discretamente a conversa dos cinco nobres sobre seus planos de expansão das vendas ilegais.
Ao final da reunião, um dos nobres sussurrou:
— Ícaro, não é arriscado demais deixar essa garota ouvir a nossa conversa?
Os outros resmungaram entre si como se estivessem concordando com a pergunta. Mesmo ouvindo tudo, Pandora continuou a tocar e a olhar diretamente para o chão, fingindo não estar ouvindo nada.
— Podem ficar tranquilos, nós daremos um jeito de deixar ela calada — disse Ícaro, dando um breve sorriso ao terminar de falar.
Ao ouvir isso, os olhos dela arregalaram-se, mas ela continuou tocando sua harpa, como se nada tivesse acontecido.
Após os nobres terem ido embora, Pandora saiu do salão de jantar e foi a caminho do seu quarto, até que, enquanto passava por um dos corredores, uma porta ao lado da garota se abriu e rapidamente um soldado a puxou para dentro de um quarto escuro e a jogou no chão.
O soldado trancou a porta e retirou um chicote de seus bolsos. Ele a pressionou no chão e amarrou suas pernas e mãos e começou a chicoteá-la.
Após alguns minutos de chicotadas, ele cortou as cordas que amarravam suas pernas e mãos. Ela já estava sem força para fugir e mesmo segurando com todas as forças, algumas lágrimas acabavam escapando de suas pálpebras.
— Trate de nunca abrir a boca sobre o que você ouviu nesta noite ou então pagará com a sua vida! — o soldado cuspiu no chão. — Isso foi só um aviso!
Ele saiu e deixou Pandora. Ela ficou deitada no chão por um tempo, até que conseguiu forças para ficar de pé novamente. Seus olhos, ainda cheios de lágrimas, arderam de ódio e, mesmo com dificuldade, ela se levantou e foi mancando em direção ao seu quarto.
Seu vestido branco estava manchado, afinal, suas costas estavam sangrando muito. Mas não havia ninguém para ajudá-la, pois já era tarde da noite e todos já estavam dormindo.
Ela chegou no quarto e foi até o banheiro com todo cuidado para não acordar Júlia. Ela tirou o vestido branco e pôs no cesto para lavar no dia seguinte. Ela tentou limpar as feridas das costas sozinha, mas não conseguiu por causa da dor, então entrou na banheira e tomou banho.
A água da banheira rapidamente se tornou vermelha, enquanto suas lágrimas escorriam sobre o seu rosto.
Ela terminou de se banhar e vestiu o seu pijama. Ainda mancando e com um olhar de ódio, ela foi até seu guarda roupa e pegou o seu livro.
Pandora saiu do seu quarto e foi até o porão. Ela trancou a passagem e se sentou no chão.
— Öffnen Sie die Türen des verbotenen Wissens!
Ao falar esses comandos em voz alta, um círculo mágico de cor azulada, brilhante como a luz do luar, se formou no chão. No mesmo momento que o círculo se formou, o livro se abriu e começou a passar as páginas rapidamente, sem que Pandora sequer o tocasse.
As velas do porão, que até então estavam apagadas, acenderam-se misteriosamente, ardendo em chamas azuis.
De repente, o livro parou de folhear e instantaneamente, as chamas azuis e o círculo mágico tornaram-se vermelhas. Na página onde o livro parou de folhear, estava escrito: Conhecimento Proibido, e abaixo: O poder pode alimentar o ego, mas o preço é caro e as consequências são de sangue e alma.
E então, ela ouviu em sua mente uma voz familiar.
— Pandora!
A garota lembrou-se de uma conversa que teve com sua mãe há muito tempo atrás.
†
— Pandora, esse é o livro de Alta Magia da nossa família — disse Catarina, enquanto segurava o mesmo com as duas mãos. — Ele é passado de geração em geração, desde que nossos ancestrais fugiram da invasão dos Gútios ao Império de Acádia, há mais de trezentos anos atrás.
Pandora, que na época possuía apenas nove anos de idade, ouvia atentamente sua mãe, enquanto seus olhos brilhavam.
— Ele foi passado para mim pelo meu pai e no futuro, será passado para você.
— Então eu vou poder aprender magia também, mamãe?
— Sim, minha querida.
— Ebaaaa! — gritou Pandora, eufórica, enquanto sua mãe, ao lado, ria de felicidade.
— Mas lembre-se: com a magia, você receberá poder, mas tudo tem seu preço, e o preço para o poder, arde como fogo. Por conta de erros no passado, eu paguei um preço e já não consigo mais usar nenhuma magia, mas farei de tudo para te treinar do jeito certo.
Quando Pandora completou dez anos, Catarina começou a ensinar magia para Pandora.
Um dia, Pandora conseguiu criar uma pequena bola de fogo com as mãos. Essa havia sido a primeira magia que ela havia aprendido. Ela ficou maravilhada com o que havia conseguido fazer.
— Está vendo? No começo é difícil, mas você só precisa se esforçar, treinar muito e se concentrar, que dará certo.
— Não vejo a hora de mostrar isso para as minhas amigas, mamãe! — disse Pandora, enquanto saltitava de alegria.
— Nada disso. Magia é um conhecimento restrito, poucas pessoas no mundo sequer sabem que ela existe e isso deve se manter assim. As pessoas temem o que elas não conhecem, e tentam destruir o que não entendem. Me entendeu?
— Sim, mamãe. — respondeu ela, enquanto seus olhos se entristeceram.
— Mais uma regra: ainda estamos no começo do livro, mas nunca, em hipótese alguma, leia o conhecimento proibido que contém nele. Só a leitura dele já basta para corromper o usuário do livro.
— Conhecimento proibido?
— Sim — Catarina abriu o livro e mostrou a página que avisava para não continuar lendo. — Apenas magos de alto nível conseguiriam ler e usar esse conhecimento sem se consumir, mas o preço ainda é alto… Até mesmo para eles.
Pandora havia compreendido, mesmo que ainda estivesse curiosa sobre o que havia naquelas páginas.
— Me promete que nunca irá passar desta página?
— Prometo sim, mamãe.
— Boa garota — respondeu Catarina, com um sorriso no rosto, enquanto fazia cafuné em sua filha.
†
Enquanto a cena da promessa que Pandora fez para sua mãe se repetia várias vezes em sua cabeça, as memórias de tudo que ela sofreu na mansão e tudo o que as outras escravas passaram, se misturavam em sua mente e cada vez mais se sobrepuseram às memórias de sua promessa.
A mente da garota colapsou. Seu coração e seus olhos se enchem de fúria, e então… Pandora passou a página do livro e adentrou na primeira página proibida.
No mesmo momento que a página virou, Pandora sentiu uma presença maligna que a arrepiou até a espinha, mas isso não a desencorajou.
Em meio ao silêncio, a dor das chicotadas, que não cessavam nem mesmo por um segundo e ao brilho carmesim que tomava conta de todo aquele pequeno e apertado cômodo, a garota só conseguia pensar em uma coisa:
— Eu vou fugir desse inferno!