O Inferno de Pandora Brasileira

Autor(a): Kamikaze


Volume 0

Capítulo 6: Sexta Sinfonia

Já era noite daquele mesmo dia. Pandora estava novamente em seu quarto lendo o seu livro. Neste dia, a garota não estava preocupada em ser vista com o livro, afinal, Júlia disse que iria demorar para voltar para o quarto, pois, a mesma havia recebido uma tarefa de última hora.

Ela estava totalmente concentrada, até que de repente, ela ouve uma batida na janela. Por um momento, a garota havia pensado que tinha sido fruto da sua imaginação, afinal, o quarto delas ficava no terceiro andar.

Até que ela ouviu novamente e olhou para a janela. Ao virar-se, a garota se deparou com Pedro pendurado na janela. Seu rosto estava pálido como o de um filhote assustado. Ela caiu de costas e soltou um grito enquanto via ele acenando com a mão do lado de fora.

— Você quer me matar do coração, é? 

— Talvez — respondeu o garoto, ainda soando frio.

Ela abriu a janela e deixou ele entrar.

— O que é que você tá fazendo aqui? E como você subiu pela janela?

— Eu escalei, ué… Voando é que não foi…— respondeu Pedro, rindo, enquanto entrava pela janela e continuou. — Já era tarde demais quando eu percebi que era um má ideia.

— Engraçadinho você, hein… — respondeu ela, revirando de leve os olhos.

— Eu sei disso, não precisa me elogiar. Enfim, só vim te ver mesmo.

Pedro pegou uma cadeira que estava perto, e colocou ao lado da cama de Pandora, enquanto ela se sentava na própria cama.

— Mas por que você vem aqui toda noite?

— Você é meio lerda, né? — Uma veia saltou para fora de sua testa.

Pandora não entendeu muito bem a pergunta.

— Você é meio estranho. Se estiver querendo me sequestrar, me avisa logo de uma vez.

— Pelos deuses… Me conta, como foi o seu dia?

— Foi normal, eu acho. Foi meio cansativo, mas… eu conheci a filha do Lorde Ícaro e, por incrível que pareça, ela é bem diferente daquele gordo nojento.

— Pera… Aquela garota saiu do quarto dela? É mais fácil ver uma carruagem voar do que ver aquela pessoa em miniatura andando pela casa.

— Hmm? Você é próximo dela?

— Mais do que eu queria. Eu fiquei responsável pela guarda pessoal dela. Aquela menina fica me perturbando o dia inteiro — enquanto Pedro dizia isso, seu rosto ficou pálido novamente.

— Realmente, você não tem cara de babá. Acho que as crianças iriam sair correndo só de olhar pra você.

— Isso não foi legal…

— Me desculpa, eu não consegui me segurar — respondeu ela, enquanto ria.

Pedro também riu enquanto olhava para Pandora. O olhar dos dois se encontraram e ambos ficaram em silêncio. Mas, poucos segundos depois, esse mesmo silêncio foi quebrado por Pandora.

— Muito obrigada. 

— Hmm? Pelo o quê? 

— Por me fazer sorrir. Eu não sei como eu estaria sem você e a Júlia. A companhia de vocês é muito preciosa para mim — respondeu ela, esboçando um singelo sorriso enquanto apoiava o cotovelo em seu joelho e levava sua mão ao queixo.

O rosto de Pedro ficou avermelhado ao ouvir as palavras da garota. Mesmo que eles conversassem muito, ele não sabia que era, de fato, importante para Pandora. Muito menos esperava uma demonstração tão direta disso vindo dela.

— O que foi isso tão de repente? — respondeu Pedro, sem graça e gaguejando, enquanto deu um peteleco na testa dela.

E em um piscar de olhos… Pedro é acertado na cabeça por um travesseiro que foi arremessado de longe, o fazendo cair.

— Pandora! Um invasor! Temos um invasor! Soldados! Posição de Ataque! Levantar artilharia! — gritou Júlia, que havia entrado no quarto sorrateiramente, sem que eles pudessem ouvir. 

— Eiii, Calma! Alarme falso! — gritou ela, assustada, enquanto fazia um “X” com os braços.

— Por que eu sempre recebo uma pancada na cabeça quando venho aqui? — disse Pedro, com a voz desnorteada.

E por que encher essas porcarias com pedras?  Pensou Pedro.

— Por que raios tem um garoto no nosso quarto, Pandora?! — gritou Júlia, enquanto segurava outro travesseiro, pronto para ser arremessado.  

— Ele é meu amigo, se acalme! Ele pode até ser um soldado, mas ele é uma boa pessoa. 

Ao ouvir isso, Pedro concordou levantando sua mão fazendo sinal de legal com os dedos enquanto ainda estava nocauteado no chão com o travesseiro sobre sua cabeça.

Júlia parte para o ataque segurando a sua almofada, até que Pandora vai até ela e a segura para que ela não se mexa. Ela fica debatendo-se e murmurando, até que é interrompida pelo som de um sino sendo tocado.

Todos que estavam no quarto congelaram ao ouvirem o som inquietante. 

Rapidamente, uma imagem apareceu na mente de Pandora. Era seu quarto pegando fogo e, no centro do quarto, o seu livro estava lá. Sua capa estava com manchas de sangue e uma risada maligna podia ser ouvida vindo dele.

— Preciso ir. Pelo visto, a coisa é séria dessa vez — disse Pedro, enquanto se levantava do chão.

A voz do jovem garoto trouxe Pandora de volta para a realidade.

— Uma reunião de emergência? — Perguntou Júlia.

— Isso é bem raro. Acho melhor a gente ir logo…

— Vou sair primeiro, se eles nos verem juntos vai dar problema — Pedro tirou algo do bolso. — Aqui, é para você.

Pedro entregou uma rosa vermelha para Pandora. Embora ela estivesse um pouco amassada, a flor ainda tinha uma cor vívida e seu cheiro era tão agradável que podia ser sentido de longe.

— O-Obrigada — respondeu ela, gaguejando enquanto seu rosto se tornava gradualmente vermelho.

Júlia que estava ao lado ficou com cara de paisagem enquanto via a cena.

— Bom, até mais. 

Pedro saiu em direção à porta e, ao passar pelo lado de Júlia, botou a mão na cabeça dela e disse:

— Até mais também, “Tampinha”! — E saiu pela porta, enquanto deixou Júlia murmurando.

— Ei!! Por que você contou isso pra ele? — gritou Júlia.

Pandora se fez de desentendida e não respondeu.

Quando o rapaz saiu do quarto, Júlia virou-se para Pandora e disse:

— Você não pode confiar nos soldados. Esse cara aí só está te manipulando. Não se esqueça que foram eles que nos tiraram das nossas famílias.

— Eu sei muito bem disso. Não precisa me lembrar.

— Então por que você confia nele? Você o deixou entrar no nosso quarto e ainda ficou conversando com ele, sabe-se lá por quanto tempo enquanto eu não estava presente. O quarto é meu também, sabia?!

— Eu não deixaria qualquer um entrar assim, mas ele me passou uma sensação estranha… Como se ele fosse diferente… Algo dentro de mim me dizia que eu poderia confiar nele.

— Você deve estar ficando esquizofrênica.

— Talvez… — a garota riu e continuou. —  Você sempre tem algo preparado na ponta da língua, não é? 

— Claro. Mais afiado que minha língua, só os meus dentes — respondeu ela, enquanto abria a boca com sua mão e mostrava seus dentes.

— Sinceramente, às vezes eu acho que você tem mais maturidade do que eu… Mas aí você manda uma dessas e eu até esqueço o que eu pensei.

— Você só não quer admitir que uma garota de quatorze primaveras tem mais senso do que você em não deixar um soldado entrar no seu quarto só porque ele tem um rosto bonito — debochou Júlia.

— Já disse que não foi por causa disso…

— Como não? É a única explicação possível. Ainda mais para você, já que todos esses soldados só te fizeram sofrer por todos esses anos.

Ao ouvir isso, Pandora lembrou das várias vezes que já foi machucada pelos soldados da mansão, mas desta vez, ela não ficou triste.

 Ela lembrou do olhar que exalava bondade e mansidão, mas ao mesmo tempo coragem e força, de Pedro, que estava preocupado com as lágrimas que escorriam de seu rosto.

— Não sei o porquê, mas ele parece ser uma boa pessoa — respondeu Pandora, com um leve sorriso no rosto.

— Você pode dizer o que for, mas ainda não confio nele.

— Você está exagerando com ele, mas talvez tenha razão.

— “Talvez”? Eu sempre estou certa.

— Tá, tá, tá…Vamos logo! Não podemos nos atrasar pra reunião, se não a gente vai acabar se encrencando.

 

Pedro foi em direção ao salão principal da mansão e se juntou aos guardas, enquanto as duas garotas foram minutos depois, para ninguém desconfiar que eles estavam juntos.

Enquanto elas caminhavam pelos corredores, Júlia notou uma estranha movimentação de dois soldados. Um deles era bem jovem e aparentava ter a mesma idade que a garota.

— Theo! Olha só o que eu peguei na cozinha — disse o mais velho, enquanto ia em direção do seu amigo com duas enormes coxas de frango assadas nas mãos.

— Oh! Isso tá com um cheiro muito bom! Como conseguiu pegar? — respondeu Theo.

— Todas as meninas ouviram o sino e saíram da cozinha enquanto eu estava passando por lá. Aproveitei e trouxe um pedacinho para nós — o garoto soltou um grande sorriso e continuou. — Eles nem vão sentir falta.

— Valeu, cara! Eu estava com muita fome!

— Hehe, disponha — respondeu o garoto mais velho

Júlia, que estava olhando a cena de canto, apenas seguiu em frente com Pandora, mas o que ela havia visto a fez refletir.

Parece que alguns deles não são tão ruins.

Após chegarem no grande salão, todos ficaram em suas posições aguardando o início da reunião. O enorme cômodo estava repleto de soldados e escravas. Todos que trabalhavam na mansão estavam ali presentes.

Heitor e Yuri apareceram no topo da escada para o segundo andar, que ficava no meio do salão da entrada principal.

— Ouçam todos! Daqui a dois meses no dia vinte e cinco, teremos um enorme evento na nossa mansão. Será uma reunião entre a burguesia de toda a região. Os nobres virão de todos os cantos do continente para o evento, então, faremos um evento ao nível! 

— Será o evento mais importante que já tivemos nesta mansão. Então, para que dê tudo certo, nós vamos começar os preparativos a partir de amanhã — completou Yuri. 

No dia vinte e cinco do mês… três dias antes da minha fuga…  pensou  Pandora.

— Quem se recusar a ajudar receberá um castigo severo, então, conto com o trabalho de todos —  disse Heitor.

Todas olharam para ele com uma certa frieza, aceitando o trabalho pelo qual elas não tinham nenhum poder de escolha de fazer ou não.

— Estão liberados, descansem para começarmos o trabalho amanhã.

Todos os escravos e soldados saíram. Pandora e Júlia foram para a cama. Júlia logo pegou no sono, mas Pandora continuou lendo seu livro.

Enquanto ela lia, ela estalou seus dedos repetidas vezes e todas as vezes que ela fazia isso, uma pequena faísca vermelha acompanhava o barulho emitido pelos seus dedos.

Está chegando a hora…

 † 

Alguns dias cansativos de trabalho se passaram.

 A noite do presente dia chegou ao horizonte e todas as escravas foram liberadas para descansar.

Como sempre, Júlia e Pandora estavam em seu quarto, ambas deitadas em suas camas. 

Júlia estava fazendo um desenho de como era a vista do pôr do sol de dentro do gazebo de Lady Lara em um pedaço de papiro, desenho esse que mais parecia ser um retrato de tão realista que estava ficando. Enquanto isso, Pandora estava sentada comendo um pouco das sobras do jantar.

— Ele está demorando mais do que o normal hoje…— disse Júlia.

— Será que aconteceu alguma coisa com ele?

— Tá preocupada com o seu príncipe encantado, por acaso?

— Hmm… — murmurou Pandora, incomodada.

— Hum? — Júlia virou o rosto em direção à Pandora, com um olhar de choque. — …Você tá mesmo?

A garota continuou em silêncio, mas suas bochechas já estavam vermelhas o suficiente para Júlia perceber seu nervosismo.

Júlia suspirou e após um breve momento de silêncio, disse:

— Deve ser a puberdade.

— Cala a boca! — gritou Pandora, enquanto jogava o ursinho de pelúcia de Júlia na mesma.

— Ei! Você quase me fez borrar todo o desenho.

No mesmo momento, alguém bate na porta e interrompe a discussão das duas.

Pandora se levanta e vai até a porta. Ao abrir, ela encontra Pedro, que estava segurando um baralho com cartas pintadas à mão. 

— Olha o que encontrei nas minhas coisas velhas. Vamos jogar?

Júlia, que estava focada em seu desenho, rapidamente parou de riscar o papel e olhou para Pedro.

— Vamos!! — gritou ela enquanto deu um salto da sua cama com um brilho intenso em seus olhos.

— Eu não sei jogar isso… — disse Pandora com uma expressão triste.

— Tá tudo bem, é bem fácil, eu posso te ensinar.

Pedro e Júlia explicaram as regras do jogo para Pandora, e então, se sentaram no chão para jogar. 

Eles passaram algumas horas se divertindo e conversando, o que fortaleceu ainda mais a amizade entre os três, mas principalmente a confiança de Júlia em relação à Pedro.

Pedro contou a elas sobre seu passado e de como teve que entrar para a força de segurança da mansão para poder pagar a dívida de seus pais. 

Após o garoto ter confiado nelas, elas também contaram sobre seus passados, porém, não só das partes sofridas, mas principalmente, das suas memórias mais felizes.

Pandora contou para ele sobre as noites que passeava com seus pais no centro do vilarejo de onde ela morava e sobre quando ela tocava harpa com sua mãe, enquanto seu pai cantava cantigas da época.

Júlia, no início, se sentiu um pouco desconfiada sobre o garoto, mas então, Pandora a encorajou. Ela finalmente contou para o rapaz sobre quando pescava com seus pais no Mar Mediterrâneo até que um dia, ao voltarem da pescaria, eles se depararam com sua casa em chamas. Sua avó estava morta e seu irmão mais velho havia sido enforcado. 

Eles ficaram perplexos com a cena que haviam presenciado, até que um grupo de soldados os emboscaram. Mataram o pai e abusaram da mãe da garota.

Júlia havia sido a única poupada, mas mesmo assim, a garota com o semblante e a voz abatida, implorava para ser morta. 

Os soldados a levaram para um local onde estavam reunidos os prisioneiros de guerra.

Até que Heitor e Yuri apareceram e compraram a garotinha, que na época tinha apenas doze anos.      

Após uma longa viagem de alguns dias, Júlia chegou na mansão e foi acolhida por Pandora.

—  Vocês passaram por tanta coisa…

—  É… Mas a gente não pode perder as esperanças — disse Júlia, e continuou. — Um dia nós iremos ter nossa liberdade novamente. Nem que a gente morra tentando.

—  Hum? P-Por acaso… Vocês…Planejam fugir? — perguntou o garoto, gaguejando.

— O quê?! Não, Não, Não! — gritou Júlia, na tentativa de desconversar e fazer com que ele não descobrisse o plano

— Sim, nós iremos tentar fugir — Pandora interrompeu bruscamente a tentativa desesperada de negação da garota.

Júlia ficou sem graça e tentou dizer para não dar ouvidos à Pandora, dizendo que ela estava delirando por causa do sono, mas sua voz havia murchado com a declaração surpresa de Pandora.

— Ma-Mas… Por que você disse isso pra ele?

— Eu já te disse… Eu confio nele.

— Vocês realmente acham que conseguem fugir? Vocês sabem do que aconteceu com a escrava que tentou fugir antes de eu entrar para a guarda da mansão, né?

—  A gente consegue. Eu tenho um plano. E também, eu tenho uma carta na manga para caso algo dê errado.

— Mas e se não der certo? Vocês estão malucas? E se vocês morrerem? 

—  Sinceramente, eu prefiro a morte do que continuar aqui. Se for para morrer, que seja lutando. Pode ser difícil imaginar ou entender o que nós sentimos, mas você precisa entender o nosso desejo pela liberdade. 

A garota olhou fixamente nos olhos de Pedro e disse:

   — Eu prefiro morrer tentando fugir, do que morrer fazendo o que eles querem.

Júlia permaneceu calada. Pela primeira vez, ela viu Pandora defendendo seu desejo e estava se sentindo orgulhosa pela sua amiga. Amiga essa que aceitava em silêncio tudo de ruim que faziam com ela, mas que agora estava disposta a lutar pelo seu sonho.

— Já vi que vocês não vão desistir mesmo dessa história…Olha, após quitar as dívidas dos meus pais, eu posso continuar trabalhando aqui para poder comprar a liberdade de vocês daquele lordezinho metido. Se precisar, até vou para o trabalho pesado — suspirou. — Só não tentem algo tão ousado para morrer antes de eu conseguir fazer isso...

As duas garotas se surpreenderam com o que o garoto havia dito. Pandora, que havia ficado um pouco envergonhada, respondeu:

— Mas isso não seria justo. Você teria que trabalhar duro para comprar nossa liberdade, enquanto a gente não iria poder fazer nada a respeito.

—  Eu não me importo. Só de saber que vocês ficariam bem, eu já estaria satisfeito.

— Mas isso também significaria que a gente iria ficar aqui e sofrer por mais tempo…— disse Júlia, e continuou. — Sabe-se lá quanto tempo iria durar para pagar nossa liberdade…

— Fora que a gente pode até ser morta nesse tempo.

Pedro murmurou e disse:

— Ah, que seja. Pelo visto, não tem mesmo como convencer vocês… — o garoto colocou a mão na cabeça e continuou. — Certo, vocês podem tentar fugir, mas eu vou ajudar. Melhor duas mentes pensando nisso do que apenas uma e… — o garoto olhou para Júlia. — meia.

— Ei!

Pandora novamente foi surpreendida com a determinação do jovem para ajudar elas, mas dessa vez, ela deu um breve sorriso e disse.

— Certo, então iremos fugir! Nós três!

— Bom, eu terei que voltar para a mansão após ajudar vocês… Se eu não pagar a dívida dos meus pais, aquele nobre de merda pode mandar matar eles. 

— Ah, tudo bem… 

O sorriso de Pandora havia sumido do seu rosto e ela baixou o olhar. Pedro percebeu isso, e então disse:

— Mas nada me impede de ir vê-las de vez em quando.

Ao ouvir isso, Pandora levantou rapidamente a cabeça e olhou para os olhos de Pedro. Ao ver que estavam brilhando, ela abriu um sorriso e então balançou a cabeça para confirmar.

Júlia, que estava ao lado deles se abanando usando as cartas do baralho que estavam em sua mão, disse:

— Pelos deuses, que vergonha alheia…

Os dois riram de desespero e coraram. 

— Da minha parte, você não precisa se preocupar em ir visitar a gente, viu? — disse Júlia.

— Você realmente tem uma língua afiada…

— Você prefere minha língua afiada ou que eu dê em cima do seu namoradinho?

— Você não perde uma oportunidade mesmo… Não é, “Pouca Sombra”?

— Hehe. 

Pedro se distraiu por alguns segundos e olhou para uma das cartas do baralho. Nessa carta, havia o desenho de um guerreiro com duas espadas negras, que o fez lembrar sobre o plano de batalha.

— E então? Qual é o plano de vocês? Com toda certeza eles nos atacarão se formos na base do improviso. A gente precisa ter um plano para passarmos despercebidos.

— Nosso plano é fugir daqui a três meses, no dia vinte e oito. É o dia em que Ícaro irá fazer uma viagem de negócios e a guarda da casa será replanejada e dividida, então estará mais fraca.

— Três dias após o enorme banquete? E como assim “dividida”?

— Sim. Isso me pegou de surpresa, mas a viagem ainda está marcada. Elas são bem raras, acontecem uma vez por ano, e quando chega o dia, metade da guarda fica responsável por fazer a escolta do Lorde Ícaro.

— Dizem que ele tem muito medo de ser assaltado no meio do caminho, por isso ele leva metade dos guardas consigo — disse Júlia.

— Bem típico desses nobres medrosos.

— Na madrugada deste dia, iremos fugir pelo terraço com uma corda, correremos até os jardins de Lady Lara e usaremos as paredes de grama como esconderijo, enquanto caminhamos em direção ao grande muro. Lá, nós iremos cavar um pequeno buraco para sair do outro lado do muro. Essa vai ser a parte mais demorada, mas a gente consegue!

— Mas e se soltarem os cães nessa noite? Sua chance de ouro será jogada fora, principalmente se tentarmos cavar um buraco. Os guardas podem até não nos ver, mas os cães sentiriam nosso cheiro.

— Cã-Cães?

— Sim, aqui tem vários deles. Vocês não sabiam?

— Não! — gritou Júlia.

— Eu sabia, mas não os vejo a tanto tempo que pensei que eles haviam morrido.

— Eles estão trancados no porão. Apenas a guarda da mansão pode entrar lá, mas te garanto que ainda tem mais de cinco cães lá.

— Mas você acha que eles iriam soltá-los logo agora? Depois de tanto tempo?

— Sem dúvidas. Ainda mais depois das tentativas recentes de fuga. Eles não vão deixar a segurança falha no dia onde só metade dos soldados estarão presentes.

— Você tem razão…

— E agora? O que a gente faz? — perguntou Júlia.

— O plano não está ruim, a gente só precisa ajustar algumas coisas. Mas… que tipo de carta na manga é essa que você diz que tem?

— Isso eu não posso contar. Prometi para minha mãe que iria manter em segredo. Mas caso for preciso, irei usar.

Júlia bocejou e acabou interrompendo Pedro.

— Se é uma promessa, então não vou insistir. Bom, acho que está ficando tarde, é melhor eu deixar vocês descansarem, fora que também estou com muito sono. Amanhã a gente discute mais sobre o plano. Vou aproveitar e ir pensando algumas coisas.

— Certo, então, até amanhã!

— Até! — respondeu Pedro, enquanto passava pela porta e acenava com a mão, logo após, continuou. — Tchau pra você também, “Tampinha”!

— Argh! Que seja… Até mais!

Pedro saiu do quarto e fechou a porta, então, Pandora virou para Júlia e disse:

— Você está parecendo uma criança rebelde e amargurada… Deve ser a puberdade.

— Essa fala é minha!

Alguns minutos depois, elas arrumaram suas camas e se deitaram para dormir. Pandora parecia já ter pegado no sono, afinal ela estava muito cansada.

Júlia, então, vira para o lado da cama de Pandora e, olhando para ela, a garota diz:

— Obrigada por não desistir do nosso sonho.

Júlia virou-se novamente para finalmente dormir.

Mas na outra cama, a jovem Pandora que estava de olhos fechados, mas ainda acordada, abriu um singelo sorriso em seus lábios ao ouvir as palavras de Júlia. 

Poucos minutos depois, ambas já haviam pegado no sono e finalmente puderam descansar.

 

 †  

Pandora estava novamente trabalhando. Desta vez, ela estava lavando as roupas, porém sozinha. Afinal, Kay nunca mais falou com a garota.

Ela estava sentada à beira de um pequeno lago ao fundo da mansão. Pandora mergulhava cada peça de roupa na água, retirava, esfregava e espremia para tirar a sujeira.

A garota passou horas repetindo esse processo várias vezes, de forma compulsiva

As horas passaram e a tarde caiu sobre o horizonte, mas Pandora ainda estava repetindo o mesmo processo. Só que, dessa vez, as peças de roupa estavam sujas de sangue.

Um barulho constante do mover do ponteiro de um relógio era ouvido vindo do céu, sem parar.

A garota continuava o trabalho. Ela afundava a roupa na água e espalhava o sangue pela água, mas não era o suficiente. Sempre que ela puxava a peça, ainda estava manchada.

As horas passaram novamente e a noite havia chegado.

O som ensurdecedor do movimento do ponteiro do relógio havia cessado, e tudo que restou agora foi o som do vento soprando entre as árvores e o barulho das corujas.

Pandora ainda estava tentando tirar as manchas de sangue, mas não ainda não tinha conseguido. 

Sua face estava vazia. Era como se sua alma estivesse apagada e seu corpo estava se movendo por si só.

Até que ela ouviu o badalar de um sino, alertando o fim do expediente do dia.

Instantaneamente, a garota parou e largou a peça de roupa que estava lavando, no meio da água, transformando toda a água do lago em sangue.

Ela se levantou e começou a andar enquanto limpava suas mãos sujas de sangue no avental do seu uniforme.

Ela continuou indo em direção a mansão enquanto as corujas a encaravam com seus olhos brilhantes no meio da escuridão.

A garota parou em frente a porta e entrou. Tudo estava vazio e escuro. Não era possível ouvir nenhum sinal de vida vindo de nenhum dos lados.

Ainda com o olhar vazio, a garota adentrou nos corredores sombrios e seguiu em frente, até que de repente, foi possível ouvir passos vindo em sua direção. Passos tão rápidos que parecia haver algumas pessoas correndo na escuridão.

A garota simplesmente ignorou e continuou a andar em linha reta. Porém, o som dos passos começou a chegar mais perto. Quando de repente, quatro vultos, com a mesma silhueta de Pandora, porém com olhos vermelhos, passaram rapidamente e entraram dentro de seu corpo.

Pandora recuperou a consciência e a expressão fria sumiu da sua face, enquanto a garota respirava fundo.

Ela voltou a andar em linha reta, mas parecia que o corredor não tinha fim.

Até que a garota chegou em um ponto do trajeto onde corpos começaram a aparecer no chão e as paredes estavam repletas de sangue. Em uma delas, a garota viu a mancha da palma de uma mão e colocou a palma da sua mão sobre a da parede.

Pandora parou e encarou a cena aterrorizante que estava presenciando, mas ela não sentiu medo e agiu com naturalidade.

De repente, a garota ouviu o badalar de um relógio vindo de trás. Ela virou-se e olhou para a direção do som, mas a escuridão tomava conta de tudo que estava há poucos metros de seu campo de visão, devido a baixa iluminação do luar dentro dos corredores. 

Ela virou-se novamente para frente e continuou a andar. A cada passo dado, mais corpos apareciam. Até chegar ao ponto em que o odor de sangue se tornava insuportável.

Por mais que Pandora tentasse, ela não conseguia identificar de quem eram aqueles corpos e nem ver com nitidez os seus rostos.

Enquanto a jovem garota continuava seguindo em frente, algo chamou sua atenção pela janela. Ao olhar, Pandora viu, de longe, uma enorme multidão do lado de fora do grande muro da mansão.

Todos seguravam uma vela e andavam calmamente. Alguns levavam pertences consigo, como colares, um pequeno baú com moedas e roupas de alta qualidade. Na frente de toda multidão, uma mulher coberta de um tecido branco, dos pés à cabeça, usando uma coroa de chifres e balançando seu turíbulo com uma das mãos, pelo qual exalava uma forte fumaça com cheiro de incenso, conduzia aquelas pessoas.

Pandora, com o olhar vidrado, mas ainda indiferente, vira-se novamente em direção ao corredor ao escutar um enorme chiado que a fez sentir como se seus tímpanos estivessem rasgando.

Ao colocar novamente seus olhos no escuro corredor, que agora foi iluminado pela fraca luz do luar, os corpos que antes eram desconhecidos, tornaram-se familiares para a garota.

O uniforme azul escuro com um avental branco tornou-se a imagem mais presente naquele local, porém, manchados de sangue e com marcas de cortes de espada.

Pandora olhou novamente para os rostos dos corpos e passou a reconhecer cada um. Aqueles corpos que estavam caídos no chão sobre as poças dos seus próprios sangues, eram das garotas que tiveram a sua liberdade privada e se tornaram escravas daquela infeliz mansão.

Rapidamente, a garota olhou novamente para a janela e, mesmo com a distância, ela podia apontar o seu dedo e dizer o nome de cada uma das pessoas que estavam na multidão.

O chiado em seus ouvidos não parava e chegou ao ponto de fazer os seus ouvidos sangrarem. A realidade se rasgou da mesma forma que um papel se despedaça ao ser puxado pelas duas extremidades com força, fazendo com que o silêncio voltasse. 

Tudo se tornou um profundo breu enquanto Pandora tentava falar, mas não conseguia ouvir sua própria voz. A garota ficou desesperada e achando que havia ficado surda, ela tentava desesperadamente limpar o sangue do ouvido, na tentativa de poder ouvir novamente.

Vendo que seus esforços não surtiram efeitos, a garota olhou para a palma das suas mãos e começou a encarar o vermelho carmesim do seu sangue enquanto entrava em um estado de surto silencioso, até que a garota chega ao máximo da sua capacidade mental para aguentar aquela situação, e ela grita com todas as forças enquanto olhava para suas mãos.

Mas o seu grito não pôde ser ouvido.

Um segundo badalar do relógio foi ouvido em meio a densa escuridão.

A garota, que até então, estava no corredor da mansão antes de tudo se tornar sombrio, agora se encontrava olhando novamente para suas mãos. Elas estavam limpas e, sobre elas, agora estava uma pequena e singela vela sobre uma bandeja.

Pandora se sentiu confusa, enquanto a jovem olhava a dança da pequena chama sobre sua vela. Ela tentava entender como a mesma foi parar em sua mão.

Até que ela percebeu que todo o breu havia se dissipado. Mas ao olhar para os lados, ela se deu conta de que estava no meio da multidão, andando em linha reta em direção ao norte.

Ela olhou ao redor e viu todas aquelas escravas que foram obrigadas a serem “nada" usando um vestido totalmente branco, que se parecia com um pijama, incluindo ela.

Agora, de fato, todas elas se tornaram um “nada”. 

Ela continuou seguindo em frente. O tempo parecia não passar, mas foi como se ela estivesse andando há dias. O caminho se manteve o mesmo, até que Pandora e a multidão chegaram às margens de um rio.

— Onde estamos? — disse uma das garotas ao lado de Pandora.

— Chegamos no Rio Aqueronte. Seremos julgadas pelos nossos pecados — respondeu outra garota.

Na sua margem, o barqueiro encarregado de atravessar as almas até o tribunal dos juízes, esperava por elas.

Pouco a pouco, uma por uma, elas foram entrando no pequeno barco e fazendo sua viagem sem volta. Até que chegou a vez de Pandora. 

A garota subiu no barco e então, o barqueiro disse:

— Uma moeda.

Pandora olhou para a pequena bandeja de metal por onde ela estava segurando sua vela, e pegou a moeda que estava apoiada sobre a mesma.

Ela entregou a moeda para o barqueiro misterioso, dando início à sua viagem.

Enquanto o barco seguia o leito do rio com as breves remadas do homem encapuzado, Pandora pôde ver vários barcos com outras pessoas, porém, elas estavam sozinhas. Apenas seguindo a  correnteza com suas velas.

Não havia lamento no rosto de nenhuma das almas ali presentes, apenas um olhar meigo e elas sorriam ao olhar para a garota.

Até que um brilho enorme surgiu por detrás de Pandora. Ela rapidamente se vira, mas não consegue olhar adiante porque a luz incomodava seus olhos.

— Chegamos. Que os deuses tenham misericórdia dos seus pecados.

O brilho tomou conta do campo de visão de Pandora fazendo com que sua pupila dilatasse, até que ela apagou.

Uma terceira badalada do relógio foi ouvida.

Ao abrir os olhos, a garota estava novamente no corredor da mansão, ela olhou para suas mãos, que estavam, novamente, sujas de sangue. Dessa vez, ela podia ouvir.

Os corpos largados no chão voltaram a ser desconhecidos.

Ela limpou suas mãos no seu avental, mas não adiantou muito. Então ela decidiu seguir em frente no corredor, mas antes disso, a garota olhou pela janela novamente e viu a procissão das almas de longe, mas decidiu ignorar e apenas continuou andando.

Pandora andou até chegar ao fim do corredor. Lá, ela encontrou uma porta e outro corredor à direita.

A garota segurou a maçaneta da porta e olhou para o corredor, que emitia uma luz vermelha vinda do fundo. Gritos aterrorizantes podiam ser ouvidos de longe.

Ela tentou ignorar os gritos e simplesmente abriu a porta e entrou no cômodo.

Era um dos banheiros da mansão. Curiosamente, era o único cômodo da mansão que estava com as velas acesas.

Pandora se aproximou da torneira, abriu a mesma e lavou o rosto. Ela olhou para o espelho enquanto observava o reflexo dos seus olhos, que estavam com manchas de cansaço.

A garota voltou a lavar na tentativa de tirar essas manchas e retirar o peso das suas pálpebras, mas foi surpreendida por um enorme estrondo vindo do corredor que a fez olhar para a porta.

— Estranho, não?

Uma voz familiar ecoou pelo banheiro. A garota olhou para os lados, mas não havia ninguém. Até que a voz surge novamente e Pandora olha para o espelho. Era seu próprio reflexo, se movendo por conta própria e com olhos vermelhos como os de um felino.

— Você diz um segredo para um amigo que está contigo desde o início das dores, mas ao invés de apoiá-la, essa pessoa desaparece da sua vida e, ao te ver, finge que você não existe…

Pandora olhou fixamente para ela mesma no espelho, e ficou apreensiva com as palavras ditas.

— Não confie em ninguém, minha jovem. As paredes têm ouvidos e as más línguas falam pelos cantos.

Em sua mente, Pandora lembrou de momentos que passou com Kay, desde a chegada das duas, e de como elas se aproximaram e se tornaram amigas.

— Essa história terá apenas dois desfechos. Só depende de você escolher qual será.

O reflexo de Pandora olhou em direção à porta do banheiro com um sorriso maligno em seu rosto. 

Ao perceber, a garota também olhou para a porta. Ao fazer isso, viu uma silhueta de cabelos vermelhos correndo rapidamente em direção à Pandora, até que a silhueta pulou sobre a garota e cravou uma faca no seu peito.

Ela caiu no chão e continuou sendo esfaqueada várias vezes enquanto gritava de desespero.

Quando seu grito cessou, as velas se apagaram.

Pandora acordou assustada em sua cama, no meio da madrugada. 

A movimentação e a respiração ofegante da garota acordaram Júlia, que estava na cama ao lado.

— Hmm… — murmurou Júlia. — O que aconteceu?

Os olhos de Pandora estavam tremendo, sua pele estava pálida e ela mal conseguia mexer os seus lábios para responder Júlia.

— Ei, você tá bem?

Pandora tentou esconder o seu nervosismo e começou a entender que tudo foi apenas fruto da sua imaginação.

Ela se acalmou e respondeu:

— Tô sim, foi só um sonho ruim…

Mas… Será que foi mesmo só um sonho?



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