Volume 1
Capítulo 63: Joe Roe I
Manhã, 1 de setembro 1590 – Império de Cristal. Sodorra
“Esse reino futrespurco é pior do que nós pensávamos, não existe organização, não existe honestidade, e tudo que é agraciado ele torna ruim. Qualidade aqui é exclusivo só para os preferidos e leais. O treinamento aqui é forte e focado, mas sem honra, com muito uso de trapaças e golpes traiçoeiros. A localidade e expansão são vantajosas, mesmo com más intenções, tudo é de forma egoísta, atrasada e que prejudica a natureza ao redor, não vendo que os prejudicará em breve por falta de cuidados com a natureza... Eu andei e vi muito e só vejo relaxo, maus cuidados e pouco caso com a principal forma de vida aqui, que são os cidadãos comuns e a mão de obra que levantam e mantêm tudo isso de pé. Eu achei que Mascul seria o auge da maldição que é esse frutrespurco, e de longe vejo o grande e majestoso Castelo de Cristal, cheio de luxo, segurança e mordomia, e a população vivendo dessa forma precária.”
O quarto nível da cidade de Sodorra está em expansão, aumentando o consumo de recursos naturais, como as florestas, água e seres vivos que habitam pelas proximidades; seres mais inteligentes e humanoides são escravizados para melhorar a mão de obra que o Império explora além de aumentar sua dominação contra eles.
“Triste ver seres que vivem pacificamente terem seus lares devastados e ainda ter que trabalhar para seus carrascos...”.
Além de uma grande muralha que está sendo construída, há nos planos a construção de mais casas para aldeões, algumas torres para prisioneiros e estábulos para animais de guerra e de uso doméstico.
“Ouvi de alguns soldados e aldeões que a maior parte das casas feitas para eles mesmos são construídas através do seu próprio trabalho extra, o futrespurco auxilia eles com bem pouco, meus amigos devem estar presenciando coisas ruins também, espero que eles mantenham o controle para não revidar e querer ajudar esses inocentes, pois é muito difícil ver tanta injustiça... Doug, por favor, se mantenha firme.”
O quarto nível está tranquilo, mesmo sendo a área mais atormentada, por causa da exploração do trabalho dos cidadãos, grande quantidade de animais, aglomeração de prisioneiros e racionamento excessivo de água e comida.
“Eu Júlio Surrex, filho de Pronuntio, estou aqui com objetivo de salvar o Grande Continente desse futrespurco, não posso deixar meus sentimentos alterarem meu julgamento ou me deixar impulsivo. Eu estou no lugar mais perigoso e preciso manter a calma e o foco... Quando todos souberem dos planos, segredos e artimanhas que esse lugar guarda, haverá uma união para acabar com esse malefício e doença que afeta a muitos... Desde nossa chegada, eu percebi que meus companheiros estão com seu raciocínio e mente conturbados, pode ter algo nocivo por aqui além desse método de vida... Doug, torço para que esteja bem, pois a única coisa que poderá revelar ou tirar meu controle é se algo ruim acontecer com você... Entramos juntos e sairemos juntos!”
— Soldado? Qual o seu nome?
— Eu sou Joe Roe...
— Se una ao grupo, rápido!
Júlio entra em formação com outros homens da guarda do Império, que aguardam ordens do dia.
“Percebi que muitos dos guerreiros de elite ficam na muralha e nos primeiros níveis da cidade; aqui, dentro do último nível, a segurança não é tão concentrada, isso pode ser uma vantagem para eu buscar mais documentos e dados secretos.”
Enquanto eles esperam, Júlio ouve uma das conversas, essa em especial chama a sua atenção.
— Oratio?
— Sim, “Oratio Tenebris”, o Império está selecionando homens para servirem no templo, mas o requisito para ir lá é estranho.
— Ouvi dizer que é um lugar perigoso e profanado.
— Não, é um templo abandonado, não tem nada de mais lá... O Império aproveita essa fama para que não seja incomodado.
— Entendi! É para lá que estão levando os inimigos poderosos?
— Sim, ouvi falar de um lutador nato, matou vários guerreiros de elite e foi enviado para lá, com certeza ele irá sofrer muito.
Júlio pensa em entrar na conversa para saber mais sobre o templo, mas o oficial superior aparece e interrompe.
— Atenção!
“Euclásio Nonuplets... Eu ouvi falar dele e de seus irmãos... Preciso ficar atento, eles devem ser experientes em achar espiões.”
Euclásio Nonuplets é um homem adulto, de estatura média alta, porte físico forte e esbelto, olhos claros e de cabelos loiros, lisos, compridos e, com várias tranças a maior delas na nuca, e que fica caída em seu ombro esquerdo. Ele parece ser humilde, seu rosto e forma de agir representam alguém calmo e sereno.
Ele usa roupas de alto nível hierárquico com muito pano nobre e armadura bem trabalhada, chamando a atenção para suas ombreiras, que são feitas de cristal corrompido e cada uma com um formato diferente: uma no formato de uma cabeça de um gato selvagem e a outra no da cabeça de um lobo, ambas com a boca aberta, mostrando suas presas; outro elemento chamativo em sua vestimenta é um item em seu peito, preso em seu peitoral de cristal: um grande anel em disco dourado com alguns escritos.
Euclásio olha atentamente para todos, analisando-os, ele parece desapontado e comenta algo com seu subordinado mais próximo. Júlio fica em alerta e olha rapidamente ao redor.
“Ele deve estar criticando os novos recrutados, apesar de que eu não vejo nada de ruim, me parece ser um grupo comum de homens que querem servir... Mas percebo que alguns aqui têm talento e aptidão para magia.”
Euclásio se posiciona na frente de todos e diz.
— O Império de Cristal está sofrendo alguns ataques e avanços persistentes de alguns inimigos, hoje alguns de vocês serão enviados para esses lugares para auxiliar diretamente esses problemas... Outros ficarão aqui no quarto nível de Sodorra para guardar, cuidar e até ajudar na “mão de obra” ajudando os aldeões nas construções, no cuidado dos animais ou até em tarefas mais simples.
“Agora eu entendi... Ele está fazendo isso para que boa parte ou até para que todos aqui escolham ir para a guerra em vez de ficar na área mais pobre e com trabalho árduo de Sodorra.”
— Vejo que tem muitos aqui com aptidão para serem líderes futuros, então saibam escolher bem agora, para não se arrependerem depois.
Um dos homens questiona:
— Se escolhermos ir, isso será para agora?
— Sim, imediatamente! Saibam que aqueles que trazem méritos e vitórias para o Império de Cristal serão bem recompensados.
“Sim, mas aqueles que não trouxerem, acabaram mortos e até expostos assim como Chay Pimkhau de Mascul”
Euclásio vê a dúvida nos novos homens e incentiva:
— É nessa época que heróis de guerra surgem, matando e trazendo a cabeças dos inimigos ao rei, já tem grandes ameaças no Grande Continente: uma criatura mística, mulheres com ilusão de grandeza assumindo postos altos de guerra, que lideram outros contra o Império, e até antigos inimigos com grandes poderes ameaçam tudo que nós construímos... Mas se estiverem com medo ou talvez vocês achem que não podem enfrentar velhos, mulheres e criaturas ignorantes, eu os perdoo e sugiro que trabalhem aqui no quarto nível; afinal de contas, os grandes heróis que forem, precisarão daqueles que farão suas comidas e construirão e servirão de guarda para suas mansões.
Euclásio atiça a ambição e a ganância da maioria dos homens, além de afetar o orgulho deles, fazendo com que pensem que, se ficarem, poderão permanecer sempre no posto de guardas menores e subalternos.
“Ele é bom em discurso, mas consigo ver por trás dessas palavras... Ele mesmo menosprezando mulheres, velhos e até animais, julgando-os como incapazes, mas se eles fossem realmente tão insignificantes como ele disse, o futrespurco não estaria recrutando e movimentando seu exército para enfrentar essas ameaças.”
O guerreiro ao lado de Euclásio direciona todos que escolheram ir para a guerra enquanto poucos aguardam ordens junto a Júlio.
“Preciso ficar em Sodorra, mesmo sabendo que ele abusará da boa vontade desses homens, eu tenho que ser firme e resistir à tarefa que for dada.”
Euclásio se aproxima dos que ficaram e sorri.
— Ótimo! Sigam-me...
“Parece que o humor desse homem mudou... É triste ver esses aldeões trabalhando assim, apesar de que ouvi falar que nesses tempos o futrespurco está pegando mais pesado com o trabalho, para agilizar ainda mais as suas construções, deve ter relação com os inimigos que andam surgindo.”
Júlio é encaminhado e apresentado à maioria dos lugares do quarto nível, Euclásio designa um a um dos homens para funções entre ajudar e comandar os trabalhos manuais, em auxiliar na criação dos animais de guerra ou domésticos, ou para o treinamento de aldeões, para que possam estar mais aptos ao trabalho mais pesado.
Nesse período Júlio tentou coletar informações importantes, mas nada de tão útil.
“Só ouvi boatos que já ouvi antes... Preciso me arriscar se eu quiser adiantar essa missão e me encontrar com os outros.”
— Senhor?
— Agora não, soldado...
Júlio entra na frente de Euclásio e o reverencia.
— Me desculpe, senhor, mas ouvi dizer que a prisão precisa de mais guerreiros, eu quero me voluntariar...
— Voluntariar?
Euclásio analisa Júlio e questiona.
— Qual o seu nome mesmo?
— Joe Roe, senhor...
Júlio sente que Euclásio é mais inteligente que outros e que suspeita de suas ações.
— Roe?... Certo... Mas coma antes, o trabalho lá será “complicado”...
Júlio se anima, e Euclásio entrega uma permissão para que tenha acesso à prisão.
— Obrigado, senhor.
Euclásio agarra forte no braço de Júlio, chamando sua atenção e diz, ao mesmo tempo que olha no fundo de seus olhos.
— Faça boas escolhas daqui pra frente, “Joe Roe”, pois a “função” errada pode trazer consequências erradas...
Euclásio solta Júlio e continua seu caminho.
“Aquilo na roupa dele é um broche de um triângulo? Uma pirâmide talvez... Ele me deixou com mais dúvidas do que certeza do que fazer agora... Talvez esse fosse o seu objetivo, me confundir, mas preciso tentar algo, já que agora estou sem supervisão constante.”
Júlio se aproxima da prisão e pensa consigo mesmo, dizendo baixo:
— Mestres de poderes podem sentir certas magias sendo usadas, vejo que o monitoramento aqui em Sodorra é ainda mais forte do que em algumas cidades do Império...
“Eu vi, mas não pude sentir todas as magias simples sendo usadas ao meu redor... algumas são para treino, afazeres comuns, vigilâncias, entre outros pequenos truques...”.
— Magias poderosas ou usadas por seres com grande capacidade mágica são difíceis de detectar e as “inofensivas” são quase imperceptíveis ou ignoradas; poderei fadigar, mas usarei tudo que sei para concluir esse dia de pesquisa!
Ao entrar na prisão, Júlio vê alguns guardas comendo e ignora, priorizando seu objetivo, ele sobe as escadas e um homem lhe oferece água, mas ele recusa.
— Não quero agora, tomei antes de chegar.
“Agora percebi que eles se importam com a alimentação, desde que chegamos à cidade tivemos várias refeições e bebida em abundância, mas não me parece que o povo mais pobre tem essa mesma atenção na comida.”
Júlio usa magia de distração e de astúcia, para não ser tão notado por alguns e para ganhar confiança de outros, entre esses estão tanto prisioneiros quanto homens do Império e aldeões que trabalhão no lugar.
“Preciso aprimorar mais os meus sentidos para ficar mais atento.”
Júlio usa mais de sua energia e aprimora seus sentidos, para não perder nenhum detalhe na sua investigação e para ficar em alerta para qualquer eventualidade.
— Esse nível não é para pessoas do seu nível, soldado!
— Me desculpe, mas acho que me perdi...
— O que está fazendo?
Júlio se aproxima rapidamente e pega na mão do homem que está barrando seu avanço e, com ajuda de magia, ele dialoga.
— Nada demais, o que achou que eu faria? Essa ala é qual mesmo?
— Ala dos prisioneiros e dos escravos.
— Escravos?
Dois outros homens entram no corredor, veem Júlio e o questionam ao mesmo tempo que ameaçam atacá-lo, Júlio sorri e, com um tom despojado, comenta.
— Eu vim substituí-lo, é claro.
— Não é hora de substituições!
Júlio olha firme para o soldado que está conectado magicamente, ainda segurando sua mão e volta a olhar com o semblante mais tranquilo para os outros.
— Não veem? Ele está doente, diga para eles!
— É verdade... Eu não estou bem...
Ao se aproximarem, os soldados suspeitam de Júlio e o atacam.
— Solte-o!
Com magia, Júlio joga o primeiro guarda que está segurando contra a parede, deixando-o tonto, ele apara o golpe de um dos outros e aproveita o contato físico para usar magia novamente, Júlio troca os sentidos de esquerda para direita, deixando seu alvo confuso e fora de combate.
— Um bruxo!
Júlio grita depois dele para que outros ouçam:
— Sim! É um bruxo! Precisamos de ajuda aqui!
Júlio usa magia para aparar o golpe do outro e desmaia o que estava com os sentidos trocados.
— Menos um.
Júlio coloca fogo nas mãos do que está atordoado e o joga em cima do que ainda está lutando com ele. Júlio novamente exclama alto:
— Cuidado!
Em seguida outros guerreiros surgem para ajudar, Júlio usa magia através do atordoado para deixar o outro gravemente ferido, mostrando para os guerreiros que chegam que ele está ajudando e que o outro, que está com as mãos em chamas, é um traidor. Os guerreiros não pensam duas vezes e matam o suposto traidor. Júlio demonstra cansaço, receio e agradece.
— Ótimo que vocês chegaram! Como isso foi acontecer?
Um dos homens comenta baixo:
— Deve ser mais um espião que não comeu o suficiente...
— Mas ele não era um dos novos... Estranho...
— E você? Não é um dos novos?
— Sim, senhor, mas vim enviado de Euclásio.
Júlio pega despercebidamente no braço de quem falou com ele, usando sua magia para tentar persuadi-lo e lhe mostra a permissão.
— Entendi... Vamos, homens, levem esses dois para serem medicados e o outro deem para os bichos comerem!
“Que horror, dando homens para alimentar as feras... Acho que eu deveria ficar chateado pela morte do outro... Enfim... Mas o que me deixou em dúvida foi o comentário dele, o que ele quis dizer com não comeu o bastante?”