Volume 1
Capítulo 19: Imersão no Coração e na Aldeia
1570 – Sudalisgohi Sonela. Grande Continente
Sudalisgohi Sonela, mais conhecida por Sudali, é uma aldeia com uma localidade vantajosa e de cultura simples, mas com grande capacidade de batalha, caça e de cultivo de alguns alimentos para o seu sustento.
Sudali faz parte de uma cultura compartilhada por sessenta e nove aldeias similares, privilegiando sempre a sobrevivência e reputação de seus ancestrais, que lutaram bravamente contra demônios para ficarem vivos e manter suas terras preservadas. Infelizmente eles ainda sofrem ataques por conquistadores e reinos mais desenvolvidos e hostis, gerando batalhas e treinamentos bárbaros para que se mantenham à altura de uma guerra.
No início a cultura dessas aldeias e tribos era rígida e tendenciosamente mais bárbaras e cruéis, tendo vários rituais e costumes que envolviam sangue, dor e provações físicas e mentais que exploravam o limite comum dos seres vivos mais racionais e emocionais. Depois da extinção dos demônios em Arbidabliu e o entendimento maior de harmonia entre os seres vivos, a maior parte da população segue um rumo mais pacífico, abolindo certas práticas nocivas e perigosas; mesmo assim, algumas tribos treinam para eventuais batalhas ou futuras guerras com novos ou antigos inimigos, e mantêm também alguns de seus rituais obscuros.
— Eu, Aíka Atuká, peço que o chefe reconsidere sua decisão de manter a tradição “Datura”.
— Não, vou manter Datura como sempre foi.
— O chefe não se preocupa com nossos filhos?
— Não fale mais alto que eu, Aíka!
— Por que o chefe quer manter isso vivo?
— É nossa história! E isso, sim, é preocupação com os filhos da aldeia, isso os deixa mais fortes.
— E aqueles que não conseguem?
— Morrem! Como sempre foi... As aldeias não precisam de fracos, só os fortes farão a aldeia forte.
Aíka ainda quer argumentar, mas o chefe faz sinal com a mão para que seus guerreiros a tirem da tenda do chefe; no lado de fora, ela se encontra com sua amiga, que está preocupada.
— Aíka? Como foi?
— “Como foi?” Seu homem é um animal que só quer presa e sangue.
— Desculpe... Queria poder ajudar.
— E deveria poder, você é a mulher dele, mulher do chefe, e ainda ajuda a cuidar de tudo na aldeia e não pode mudar nada ou falar o que quer ou pensa, isso é outra revolta.
— Calma!
— Difícil ficar calma...
Os guerreiros se aproximam, e a amiga de Aíka a puxa para conversar em um lugar mais próximo das outras mulheres e crianças.
— Vamos falar enquanto fazemos comida.
— Moésawa, desculpe falar alto com você, estou brava!
— Não se desculpe, eu entendo.
Moésawa e Aíka são amigas de infância, fizeram parte da septuagésima aldeia, a maior e mais prospera liderada pelo ancestral de Aíka, o chefe Tibira Tupinambá, que foi brutalmente assassinado por pensar diferente da maioria, um pensamento não ofensivo e que vai contra alguns atos brutais que a cultura leva por gerações. Sem seu líder, a septuagésima aldeia foi saqueada e atacada, perdendo seu território; alguns sobreviventes fugiram, e Moésawa e Aíka se casaram para ajudar a aldeia Sudali. Aíka casou-se com o chefe, e Moésawa casou-se com um ex-prisioneiro de guerra e amigo do chefe; ambas tiveram filhos, e o chefe morreu misteriosamente em batalha, salvando seu amigo e outros guerreiros. Por seu filho ser muito jovem e a cultura não gostar de mulheres liderando, o amigo mais próximo do chefe assumiu o lugar, aquele que foi salvo. Assim Jurupari, marido de Moésawa, se tornou chefe de Sudali.
— Moésawa, amiga, o chefe já foi bom um dia?
Moésawa ri e responde a sua amiga, que ainda está insatisfeita com o dia.
— Yurupari é um bom homem, do jeito dele.
— Jeito difícil...
— Eu vou tentar falar com ele, eu também não quero que meu filho passe por essas coisas que nossos pais e irmãos passaram.
— Sim, diminuíram as brigas com os outros povos, não precisamos mais dessas passagens dolorosas para as crianças serem “fortes”.
— Você fala a verdade, eu gosto... Outros ritos deveriam ser abandonados também...
— Outros? Quais?
— Não penso muito, mas... Aquele de cura... Contra aqueles homens “estranhos”.
Aíka percebe que sua amiga está nervosa e se esforça para entender o que ela quer falar.
— “Homens estranhos”? Você diz aqueles daquele clã da floresta amarela?
— Sim, temos ritos dolorosos com quem nasce daquele jeito.
— Mas é um bem, eles não nascem assim; se nascem, é porque corrompemos a natureza para que ela cometa falhas assim.
— Você nunca pensou ao fundo? Seu ancestral ser um “filho de Ivo”?
— Tibira foi um bom homem, bom líder, mas ele poderia ter manchado mais a natureza com sua existência.
— Pense, Aíka, se você pudesse mudar o que houve com ele, sua família, você mudaria? Aguentaria ver sua família morrendo daquela forma?
Aíka fica reflexiva e percebe que, ao mesmo tempo que tem a mente aberta para várias atualidades e melhorias no tratamento humano, ela se vê com receio e um bloqueio com outras coisas que ela deveria proteger e ajudar.
— Entendi, mas você não explicou o motivo de falar sobre isso agora, você conhece outro filho da floresta amarela?
Moésawa olha para o céu e, mudando de assunto, comenta sobre o tempo.
— Mudança... e... Chuva?
— Sim, uma grande chuva.
Aíka começa a anunciar e a preparar as pessoas para a chuva que está chegando.
— Tempestade! Vamos! Arrumem tudo!
Moésawa também ajuda a levar e avisar a todos. Com quase todos em segurança, ela sente falta de seu filho e o procura preocupada.
— Ikatu... Ikatu? Onde está meu filho?
Aíka corre, ao ver que sua amiga está entrando em desespero, e questiona:
— O que foi?
— Ikatu? Você viu?
— Ele está com meu Yawara... Ainda não voltaram?
— Não! Onde nossos filhos foram?
— Foram no rio.
Moésawa corre para seu marido e o alerta sobre o ocorrido. Jurupari fica bravo e ordena que alguns guerreiros procurem seu filho, a chuva cai forte com vento forte, muitos trovões e relâmpagos que cortam os céus assustando a todos. Jurupari observa a chuva com ódio e ouve Aíka comentar com Moésawa, que está apavorada.
— Não tenha medo, eles vão voltar.
— Aíka, olha essa tempestade, como não ter medo?
— A chuva não tem sentimentos ou vontade ruim como os homens, ela só é a chuva, e ela ajuda a terra, sem ela a terra e os bichos não andam.
Aíka abraça Moésawa, dando esperança e força para esperar o retorno de seus filhos. Jurupari se aproxima e briga com Aíka.
— Eu sempre disse para seu filho ficar longe do meu, Aíka!
— Eles são crianças, deixe-os viver!
— Seu filho deve ter falado para fugirem do Datura.
— Datura? Não! O Datura deles está longe de acontecer.
— Não! Meu filho terá o Datura dele amanhã.
— Amanhã? Mas ele é mais jovem que Yawara.
— Não importa! Eu decido quando, eu sou o pai.
Aíka olha para sua amiga e a vê triste como se não concordasse com essa decisão.
— Moésawa? Você deixou?
Jurupari afasta Moésawa de Aíka e fica entre as duas.
— Ela não tem o que deixar! E você não tem que dar opinião.
Aíka fica brava e força sua passagem para falar com sua amiga. Jurupari mostra que, se for preciso, irá agredi-la. Ao levantar o punho contra Aíka, ela o repreende.
— Ñane Ramõi Jusu Papa!
Na língua de onde se originou a tribo, quer dizer “Nosso Grande Avô Eterno”, uma referência ao Criador de Mundos e do Universo. Essa frase tem um peso forte e diz respeito a tudo e todos. Aíka aproveita que pegou a atenção de Jurupari e o questiona.
— É assim que você honra seu amigo?
— Não fale dele!
— Falo, sim, se ele tivesse vivo, ele que seria o chefe; você, no lugar dele, tem que manter a dignidade da aldeia.
— Dignidade? Como sua conversa de mudar nossa cultura? Ou seu filho de mudar o meu?
Aíka respira fundo e, olhando para a sua amiga, ela se mantém calma e dialoga com respeito e sem hostilidade com Jurupari, mesmo julgando que ele não mereça.
— Chefe, nossa cultura vai continuar, eu só peço que suspenda ações antigas e tortuosas.
— Muito já mudou, você quer mais?
— Sim, porque dá para ficar melhor.
— Melhor para quem?
— Para todos... Ser mordido por formigas, espancar crianças, isolar meninas, envenenar, jogar restos dos mortos no rio em que bebemos e usamos para banho não ajudam, não mais. São ações dolorosas que valiam antigamente, precisamos viver mais do que só sobreviver e nos “autocalejar”.
— Tudo isso me fez o líder e o homem que eu sou hoje.
— Você gostou de comer parte da sua própria genitália? Isso te fez mais homem?
— Se seu homem tivesse feito isso, ele poderia estar vivo hoje.
— Se você fosse um homem, ele estaria vivo hoje!
Jurupari bate em Aíka, deixando uma marca bem visível em seu rosto, Moésawa entra na frente e pede:
— Parem! Yurupari, nosso filho está em perigo, e você brigando!
Jurupari se afasta e comenta antes de sair.
— Eu já paguei minha dívida com ele, Aíka, você e seu filho estão vivos e são importantes para a aldeia, não estrague isso.
— Devo ficar eternamente grata e feliz por isso?
— Sim! Lembre que você é descendente de Tibira, aquela aberração.
Aíka avança para bater em Jurupari, que segura seu braço e revida, batendo nela novamente com mais força.
— Você está brava porque seu filho também será como seu ancestral, e sabe o que faremos com ele quando isso aparecer.
— Monstro! Você que é uma aberração!
— Repita!
Novamente Moésawa para a briga e pede:
— Yurupari, por favor, pela memória dos nossos ancestrais, precisamos do nosso filho de volta.
Jurupari sai da cabana para ajudar na procura e Moésawa, pega ervas e fruta para Aíka, que está muito magoada.
— Seu homem deveria ser mais grato pela minha família; se não fosse meu homem, esse “chefe” não estaria vivo.
— Ele sabe e sente a perda do amigo, eu sou grata por sua família ter salvado a minha mais de uma vez.
— Não parece que ele sente...
Moésawa também está chateada e comenta com receio.
— Ele tem medo de que seu filho corrompa o meu.
— Você pensa assim? Meu filho não é igual a Tibira.
— Não sabemos, e eu acho que os seres nascem assim, não pode ser uma doença, como dizem... Mas ele não entende.
— E mesmo assim é o chefe... Eu não sei se meu filho é... Eu nunca pensei nisso.
— Eu já pensei... Veja Tibira, seu ancestral, ele foi um “Filho de Ivo” e, mesmo nunca se deitando com outro homem, ele foi atacado e massacrado, ele ajudou muitos em troca de sua própria felicidade e, mesmo assim, todos o deixaram ser morto.
— Sim, não importa o que fazem de bom, todos odeiam os “Filhos de Ivo”...
Moésawa começa a chorar enquanto diz o nome de seu filho. Aíka estranha e a questiona.
— Por que está chorando?
— Meu filho... Onde será que ele está?
— Eles são jovens e conhecem bem a floresta, eles vão voltar.
Moésawa pega na mão de Aíka de uma forma bruta e, com um olhar depressivo, ela diz:
— Pando, será que Pando é um bom lugar?
— A floresta amarela? Não sei... Por que você quer saber?
— Lembro-me dos “Filhos de Ivo” que já matamos.
— Não fale assim. Eles foram ajudados, e a maioria foram acidentes ou escolhas próprias, não matamos ninguém.
— Mas não fizemos nada de bom para com eles, deixamos serem mortos.
— Não se culpe, Moésawa.
— Queria ter ouvido falar de Pando antes...
— Mas sempre soubemos dessa tribo da floresta, dos amantes homens com homens, e mulheres com mulheres.
— Ouvimos o que os inimigos querem falar...