Volume 1
Capítulo 9: Preparativos para a Festa
Um dia após o incidente da véspera de Natal, Frederico acordou cedo e preparou algumas coisas.
Enquanto seus pais dormiam — os únicos moradores de sua casa, além dele mesmo —, tomou uma ducha e vestiu roupas de trilha e sapatos de caminhada.
Abriu uma mala e nela colocou equipamentos descartáveis de som e áudio, como microfones de baixa qualidade, câmeras com pouca memória e um aparelho de distorção de voz, uma pasta de documentos e vestimentas pretas pouco convencionais.
Fechou-a e a carregou consigo até o portão de casa. Ali, pegou as chaves e a colocou na fechadura. Deu duas voltas e, agora, Frederico se encontrava fora de seu lar, rumo à parada de ônibus.
Lá, ele esperou, e esperou, e esperou… até que seu tão aguardado ônibus chegou. Entrou e seguiu caminho, descendo em um ponto um tanto longe do lugar onde realmente iria: a Floresta Nacional da Cidade.
Essa região era uma unidade de conservação federal de Mata Atlântica, localizada entre a Serra do Mar e a Serra da Mantiqueira, no estado de São Paulo.
Havia sido totalmente reflorestado com espécies florestais nativas, assim preservando a vida selvagem local, composta por mamíferos e cento e cinquenta tipos diferentes de aves.
Lobos-guarás habitavam esse lugar. Muitos conheciam ele por ser um animal ameaçado de extinção, mas para mim era apenas o bicho na nota de duzentos reais.
Após muito andar, chegou em seu destino. Passou por seus portões e adentrou a floresta.
Percorreu o mais fundo que pôde, onde nenhuma pessoa ousaria pisar, e descansou ao encontrar uma região com uma boa iluminação.
Por lá mesmo, colocou a sua mala na grama e a abriu. Arrumou os equipamentos, colocou as vestimentas e, com a pasta em mãos, realizou uma gravação.
Tendo terminado, trocou de roupa — pondo as vestes negras de volta na mala em que carregava — e desfez-se da pasta, jogando-a em um riacho que havia por perto.
Não levando consigo qualquer aparato tecnológico, a não ser o aparelho de distorção de voz e um cartão de memória que removeu de uma das câmeras, Frederico voltou para casa, realizando o mesmo trajeto, e ali considerou finalizado o seu dia.
Na manhã seguinte, o padre foi até uma lan house da cidade, no horário mais cheio, e pagou, em dinheiro vivo, para usar um computador.
Tendo escolhido a sua máquina, sentou-se confortavelmente em uma cadeira por perto e inseriu o cartão de memória no PC.
Utilizando-se do mouse e teclado, revirou os arquivos que estavam dentro e encontrou o que tanto procurava: o vídeo que havia gravado ontem.
Realizou algumas poucas edições nele e, por fim, publicou-o em uma plataforma de vídeos.
No decorrer de três dias, de uma forma que nem eu sabia ao certo, ele acabou alcançando,com um conteúdo contraditório, a marca de duzentas e cinquenta mil visualizações.
No vídeo, um homem — Frederico — com o rosto coberto por panos pretos, chapéu de vaqueiro de mesma cor e vestes de padre, mas sem o tradicional colarinho branco, aparecia.
Mártir, como se autoproclamava, assumia autoria pelos desaparecimentos de alguns criminosos e revelava possuir poderes — o meu — que usaria para punir pecadores, a escória da sociedade.
Para provar que o que dizia era verdade, de uma pasta retirou uma matéria de jornal e escreveu em um pedaço de papel o nome do bandido que estava nela.
A folha e o objeto utilizado para escrever foram queimados e reduzidos a cinzas. O criminoso havia sido arrastado para o inferno — e apenas posteriormente as autoridades confirmaram o seu sumiço.
No fim, Mártir pediu para que seus hipotéticos telespectadores aguardassem por ele, pois faria um grande anúncio na noite da véspera de Ano Novo.
Curioso pelo que poderia ser isso e pelo porquê Frederico ter feito o que fez, surgi ao seu lado, faltando um dia para a data mencionada anteriormente.
Nosso protagonista estava no escuro de seu quarto, com porta e janela fechadas, sentado em uma cadeira e tão focado na tela de seu computador que nem percebeu a minha chegada.
— Cof, cof — forcei uma tosse.
— Hã? Ah, é você… — disse, com um certo tom de desinteresse, ao me ver. E voltou seu rosto para frente novamente.
— Então… o que estás fazendo? Soube que gravou um vídeo viral saindo do anonimato e revelando o poder que possui…
— Hum? Ah, sim, bom, fiz apenas o necessário para que o público soubesse da minha existência. Se as coisas continuassem do jeito que estavam, os casos de “desaparecimento” que eu causei seriam abafados e nunca resolvidos.
— Certo… e o que seria esse “Mártir”?
— Uma ideia, veja só.
Frederico apontou para a tela de seu computador, e eu acompanhei o que havia nela.
Uma transmissão de televisão — um telejornal local, pelo visto — passava no canto superior direito, enquanto uma página de navegador ocupava o resto.
Nela, havia um fórum de discussão. Anônimos debatiam sobre a veracidade das filmagens do Mártir, ao mesmo tempo que alguns defendiam sua figura e outros a atacavam.
Frederico alternou as abas e me mostrou que aquilo não acontecia só naquele lugar, mas em várias redes sociais.
— Ainda é muito pouco. Se trata de um nicho, apenas — explicou-me. — Mas uma pequena minoria acreditou no vídeo, e isso é o bastante.
Apesar de seus dizeres, eu estava impressionado, ao mesmo tempo que intrigado com algo: — “O bastante” para quê, exatamente?
— Bom, hm, como posso explicar… — Ele coçou a cabeça e permaneceu pensativo por um tempo. — Sabe, Narrador, as pessoas agem na internet diferente de como na vida real.
“Aquilo que elas realmente pensam e realmente gostariam de fazer, mas não possuem coragem para realizá-las, se encontra aqui, no anonimato, em um local onde não precisam dar a cara a tapa e ter medo de serem julgadas ou sofrerem qualquer violência física.
“Há gente que nem sequer se diz viva no mundo lá fora, mas que se sente assim na internet. É por essas pessoas, esses serezinhos vistos como loucos pela maioria da sociedade, que eu fiz o que fiz.
“Eles não têm papas na língua, incomodam e chamam a atenção de todos para assuntos que a maioria pensa, mas não diz em voz alta, como a falta de religião na vida das pessoas, a fé abalada pelas adversidades da vida ou a impunidade do mal.
“Por motivos óbvios, não posso revelar meu rosto, então por isso criei o Mártir, um personagem que não só simbolizaria a solução para esses temas, como também faria com que falassem dele. ”
Uau. — E… isso tudo faz parte de um plano seu?
— Exatamente, passei o Natal todo preparando ele. Quando for concluído, até o mais cético dos brasileiros acreditará no Mártir e em seus poderes!
— Entendo… e o que seria esse grande anúncio que farás na noite da véspera de Ano Novo?
— Ah, bom… — Quando Frederico estava prestes a me responder, algo aconteceu na transmissão que passava em seu computador. — Silêncio!
Com os olhos vidrados na tela, viu uma transição de cenário, da bancada do telejornal para uma comitiva de imprensa. Vários jornalistas se encontravam em frente a um palanque de madeira.
E adivinhem só quem veio para falar nos microfones que estavam nele. Isso mesmo, a policial Rose.
Conforme ela falava, mais e mais um sorriso de ponta a ponta se formava no rosto de Frederico.
De nada adiantava transcrever o discurso de Rose aqui, pois tudo que nosso protagonista queria saber era se ele tinha a atenção da polícia de sua região. E ele tinha.
— Ótimo! Agora vamos para a segunda parte do meu plano…
Frederico se levantou de sua cadeira e pegou uma mala de cima de sua cama. As vestes do Mártir estavam nela, assim como alguns envelopes pardos, que preparara na manhã anterior, e equipamentos tecnológicos, que o ajudariam posteriormente com o que quer que estivesse tramando.
Quando ele estava prestes a sair pela porta, alertei-o: — Ei, você não respondeu a minha pergunta!
— Ah, aquela? Bom, aguarde e você verá. — E foi embora.
Droga! Essa não era a resposta que ele teria me dado anteriormente. Se não fosse aquela maldita interrupção…
Poderia acessar as suas memórias e descobrir qual seria esse plano. Mas, depois desse prenúncio, que graça teria? Tudo que me restava agora era obedecê-lo. Enfim…
Nosso protagonista saiu de casa e foi de ônibus até um ponto próximo de um restaurante caseiro, famoso na cidade. De lá, certificando-se de que não estava sendo observado, andou até um beco e trocou de roupa — de identidade, talvez.
Guardando em sua mala as roupas que usava, Mártir seguiu sorrateiramente até um estacionamento ao ar livre. Tirou de sua bagagem um aparelho eletrônico de abrir portas de carro e o usou em um determinado veículo à sua frente.
Ao ser bem-sucedido, sem disparar o alarme ou ser pego por alguém, guardou o objeto na mala e se sentou atrás do banco do piloto. Não seria percebido, pois o vidro daquele automóvel era do tipo que não dava para enxergar o lado de dentro.
Honestamente, estou espantado. Que tipo de coisa andaram ensinando nesses seminários? Ou então que tipo de vídeos ele andava assistindo na internet?
Até onde sabia, Frederico vinha monitorando os passos da força-tarefa que investigava o Mártir — graças aos dados que obtivera na véspera de Natal —, além de estudar bastante a respeito de uma certa pessoa.
Ele tinha total conhecimento sobre ela. O horário em que almoçava, o local onde guardava sua pistola antes de frequentar o restaurante em que sempre ia e… o estacionamento em que deixava estacionado o seu carro.
De repente, ouviu-se passos; alguém se aproximava do automóvel. Logo, um beep-beep indicando que o veículo havia sido destravado, e a porta à frente se abrindo.
Uma linda mulher entrou, sentou-se no banco do motorista e se fechou lá dentro. Deu a partida no carro, mexeu no retrovisor e… SURPRESA! Alguém vestido inteiramente de preto se encontrava atrás dela.
— Olá, Rose — cumprimentou Mártir com sua característica voz distorcida por um aparelho.
A policial não gritou nem respondeu. Abriu o porta-luvas, procurando por algo, mas Mártir a interrompeu.
— Por acaso, seria isso aqui? — A figura sombria segurava uma pistola.
Hm? Quando foi que a arma foi pega? Bom, digamos que, enquanto eu dava explicações e alterava o foco da minha narração, eu propositalmente deixei de prestar atenção no que o nosso protagonista fazia… kikiki.
Mártir destravou a pistola em sua mão e a apontou para Rose. Ao contrário de como muitos reagiriam, a policial se manteve calma. — Quem é você? E o que pensa está fazendo aqui?
— Ora, você sabe muito bem quem eu sou. Você mesma disse na TV que iria me capturar, lembra? E quanto ao que estou fazendo… bom, estou apenas garantindo que você faça um favorzinho que irei te pedir…
Logo, Mártir entregou para ela um monte de envelopes pardos e uma caneta.
— Sei muito bem que você possui contatos de emissoras e veículos de comunicação bem importantes daqui do país. Então quero que você coloque o seu nome e endereço nesses envelopes e os envie via sedex para esses seus contatos.
— Ah, mas sem chance. Pode apertar o gatilho e me matar aqui mesmo!
— Oh, o que foi? Por que diz isso?
— O Mártir se tornou bem popular esses dias, então o que me garante que você não seja apenas um lunático fingindo ser ele? Além do mais, como você vai garantir que eu coloque os endereços certos nos envelopes? Eu entendo que você tem uma arma e que você pode apontar ela para mim enquanto me acompanha em uma agência dos correios. Mas não acha que as roupas que está usando não são um pouco chamativas?
— Ah, sim, imaginei que você pensaria em algo assim. Não se preocupe, tenho uma prova irrefutável que irá responder todas as suas perguntas.
Mártir olhou para o lado, observou uma pequena televisão no painel do carro, próximo a um acendedor de cigarro perto da alavanca de câmbio.
— É um belo televisor esse que você tem. Pega todos os canais abertos? — Ela permaneceu calada, e a figura sombria apertou o cano da arma contra a nunca dela. — Me responda.
— Si-sim!
— Ótimo, então ligue-a para mim. Vá mudando de canal até eu pedir para parar. — Ela assentiu e logo foi passando de emissora em emissora, até que… — Pare!
Na tela, um telejornal estava sendo transmitido. Um jornalista acompanhava ao vivo o caso de sequestro de uma mulher. Inúmeros policiais cercavam o homem que a fazia de refém, com uma faca apontada para seu pescoço.
Mártir permaneceu quieto, concentrado na notícia.
— Eu não entendo. O que você…
— Shhhh!
Quando o jornalista revelou o nome do sequestrador, ele entrou em ação. Sacou uma pluma e o anotou em um pedaço de papel. Após, pediu para Rose: — Poderia me passar o acendedor de cigarro?
A policial acatou suas ordens, e papel e pluma foram queimados. Para não juntar fumaça dentro do carro, Mártir abaixou a janela, jogou os dois itens por ela e rapidamente a levantou.
Pouco tempo se passou e algo inusitado aconteceu. Diante dos olhos de Rose e de todos que acompanhavam o caso, o sequestrador simplesmente foi arrastado para o inferno.
A policial ficou pálida com a cena. Sua pupila dilatou, e ela começou a suar frio. Sem que pedissem, desligou a televisão. Talvez, algum trauma recente tenha sido revivido em sua mente… kikiki.
— Bom, creio que isso prove que eu sou o verdadeiro Mártir e que tudo que eu disse anteriormente era verdade. Também, gostaria de deixar claro que eu sei tudo sobre você, policial.
“Seu nome é Rose dos Santos Aragão. Tem 43 anos. Sua casa fica perto do Centro da cidade, onde todas as melhores casas estão, e não é casada. Trabalha no 14° distrito policial e chega em casa todos os dias às dez da noite, no máximo. Fuma e ocasionalmente bebe. Está na cama às 23 horas e se certifica de ter oito horas de sono, não importa o que aconteça. Depois de tomar um copo de leite morno e fazer cerca de vinte minutos de alongamentos antes de ir para a cama, geralmente não tem problemas para dormir até de manhã. Assim como um bebê, acorda sem nenhum cansaço ou estresse pela manhã. Foi-me dito que não houve problemas no seu último check-up médico.
“O que estou tentando te explicar é que vou saber muito bem se você colocar nomes e endereços falsos nos envelopes e que, se você não fizer exatamente o que eu mandar, não só vai acontecer com você o mesmo que aconteceu com aquela escória, como seus parentes, a tia-avó Clarice, todos que você ama, sofrerão esse destino. Estamos entendidos?”
Não era possível pôr em palavras o horror que ela parecia estar sentindo. Rose apenas assentiu com a cabeça, calada.
— Ótimo! Então vamos para o correio mais próximo.
Com muita dificuldade, a policial dirigiu até lá e estacionou em frente às duas enormes portas abertas do prédio da agência.
Ela tremia, mas conseguiu preencher todos os dados pedidos nos envelopes. Antes de sair do automóvel, porém, Mártir a lembrou:
— Quando estiver lá, não se vire para mim nem faça qualquer movimento suspeito. A janela pode ser escura e estar levantada, mas tenha certeza que eu estarei vigiando cada passo seu.
E, de fato, ele estaria. O prédio desse lugar foi construído de uma forma que quem estava do lado de fora conseguia ver tudo lá dentro e vice-versa.
Assim, Rose saiu do automóvel, dirigiu-se até um balcão e tirou uma senha. Por ser uma cidade de interior, não havia fila, então, no mesmo instante, foi logo ser atendida.
Ela parecia nervosa, vez ou outra demonstrava isso. Mártir temia que isso pudesse comprometer o seu plano… mas não foi o que aconteceu.
A policial conseguiu enviar os envelopes e retornou para seu carro. — E agora? — perguntou assim que colocou o seu cinto de segurança.
— Você fez a sua parte, então nada mais justo do que eu fazer a minha e não te matar — respondeu, mas logo em seguida pensou: “Por enquanto…”
— ‘Tá, então devolve a minha pistola e desce do carro. Acabamos por aqui.
— Nada disso. Você não espera que eu saia daqui assim, com as roupas que estou, não é mesmo? Liga o carro e dirija. Me deixe em um trecho mais deserto, próximo da Floresta Nacional da Cidade.
Rose permaneceu calada. Parecia que estava prestes a explodir, segurava ao máximo a sua frustração. Mas Mártir a cutucou com a ponta da arma em sua mão.
— Anda, anda!
Ela engoliu a sua irritação de alguma forma e fez o que lhe foi pedido. No meio caminho, rompendo o silêncio que havia se formado entre os dois, do nada perguntou:
— O que havia naqueles envelopes? Lembro-me de sentir algo duro, com o formato de um pendrive…
— Hahaha… não te interessa. O que estava lá dentro não era para você, afinal. Mas, se quer tanto saber, posso te contar. Só teria que te matar logo em seguida. Interessada?
— … Chegamos.
Rose estacionou próxima a um relevo plano, com grama verde até onde os olhos não podiam ver e, principalmente, sem alguém por perto.
Mártir desceu do automóvel e levou consigo a pistola. — A arma fica comigo. Sabe-se lá o que você faria com ela, caso eu a entregasse de volta — justificou-se, e Rose nada podia fazer além de grunhir em frustração e concordar. — Até mais, policial.
— Que os nossos caminhos nunca mais se cruzem.
A mulher pisou fundo no acelerador e arrancou com o carro dali. Mais e mais seu veículo se afastava, até não poder ser mais visto pelo Mártir.
— Hmpf, mas quanta ingenuidade — soltou no ar. — Nós vamos sim nos encontrar de novo… E essa será a última vez.
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