Hinderman Brasileira

Autor(a): Oliver K.


Volume 1

Capítulo 5.2: Humano

 Cerca de quarenta minutos depois, estávamos os quatro (que deveriam ser cinco) investigadores e mais a capitã na pequena sala de reuniões da central. A central tinha sim uma salinha de reuniões, ficava depois da sala de treinamento, no final do corredor com a janela grande, do lado esquerdo. Era um cômodo estreito e abafado com umas cadeiras organizadas em roda e um projetor de slides apontado para uma parede branca de material gravável com pincel atômico.

 Sarah, ou melhor dizendo, a famosíssima Sarah Harmon, condecorada três vezes com título honroso por resolver os mais complicados casos de natureza especial, aquela que já tinha trabalhado como convidada em North K Hill, Wheasfield e St Hermburg, essa famosa investigadora era nossa capitã, quem estava liderando aquela conferência. Por fora parecia uma garotinha de uns quinze ou dezesseis anos. Isso porque ela também não era humana, envelhecia de maneira diferente.

 No mundo paranormal não era comum ficarmos contando uns aos outros nossas finesses, raças e peculiaridades só porque trabalhamos no mesmo local. Em geral só aqueles que trabalhavam de parceiros sabiam sobre os detalhes um do outro. Esta política ajudava porque se algum dia acontecesse de haver agentes infiltrados ou traidores entre nós, podíamos contar com todos os truques que possuíamos na manga. Adicionalmente se algum agente fosse capturado e torturado, não poderia revelar tudo sobre os demais se não os conhecesse completamente.

 É claro, estes segredos iam se acabando com o tempo à medida que trabalhávamos juntos por muito tempo. Eu sei tudo sobre o Joey, por exemplo. Só quer dizer que não havia uma seção no contrato requisitando que precisávamos indicar todos nossos atributos quando adentramos o DCAE.

 Digo isto para explicar o motivo pelo qual não sabíamos exatamente a natureza de Sarah. Sempre supus que ela era uma alienígena. Mas uma coisa era certa: com aquela fisionomia não era humana alterada, como eu.

 O time de cinco investigadores ficou completo após a entrada atrasada de Cole Chapman, que invadiu a sala com seu fedor e sua presença, atravessando-se na minha frente.

 — Desculpe, senhor tenente. — Disse ironicamente quando esbarrou em meu braço.

 — Até que enfim você veio.

 — Opa. Sempre estamos aí. À sua disposição.

 — Escutem... — Interrompeu Sarah enquanto ele procurava um assento para se estabelecer — Estou aqui para falar sobre o caso dos Johnson... E de Arthur Cooper.

 — Quem é Arthur Cooper? — Perguntei

 — Era o nome do velho não identificado? — Arriscou Joey.

 — Já chego lá — Disse ela, impacientemente. — Como vocês já sabem, o suspeito foi avistado pela primeira vez na madrugada entre quarta feira e ontem pelo cidadão Gelson Hernandez, e depois visto pela segunda vez por seus próprios olhos durante o conflito de ontem de manhã. Tudo indica que é um alienígena. Reuni vocês aqui porque eu queria ver com vocês como vamos distribuir as tarefas... Considerando isto aqui temos vários casos pendentes. — Ela se referia ao envelope derrubado pelo alien na mão. Estava aberto.

 — O que tinha nesse envelope, afinal?

 — Vou ler uma passagem: “é com grande honra que o comitê de entretenimento de Arena vem informá-lo que o sr Arthur Cooper foi escolhido para participar do torneio de Uahmyr, cabe a cada participante escolher um material orgânico principal para a inscrição que deverá ser terminada em até 25 de março deste ano.” Depois tem mais umas regras adicionais. — Sarah nos mostrou o papel rapidamente, balançando-o na nossa direção. Era completamente diferente de um papel comum. Todo em detalhes oficiais, com uma cor de tinta estranha e diversos carimbos na parte de baixo, perto das assinaturas.

 — O que é isso? — Perguntou Joey — Um torneio? Do que exatamente?

 — Material orgânico? Uahmiur? Então isso deve ser... — Começou Lowe.

 — ...Um torneio ilegal de seres paranormais. Briga de galo. Exceto que com galos de maior escala. — Completou Sarah. — E se pronuncia Uahmyr.

 — Uau! — Exclamou Joey.

 — Isso existe?

 — Tudo na Arena existe. — Disse eu.

 — Embora seja uma prática ilegal, o torneio de Uahmyr não é da jurisdição de Sproustown — Sarah jogou o papel em uma cadeira vazia — o que me intriga é o fato de eles terem chamado alguém daqui... Vocês sabem, essa competição não é pouca coisa. Existem muito mais seres paranormais perambulando pelo mundo afora do que se imagina, quem dirá na Arena, que é a casa deles. Chamar alguém daqui indica que tem algum “material orgânico” muito valioso à solta. E por valioso quero dizer ameaçador.

 Sarah fez uma pausa, observando separadamente cada um dos presentes na sala, então continuou:

 — Nunca escolheriam nenhum de vocês, por exemplo.

 — Espere... Quer dizer que há alguém tão forte assim em Sproustown? — Perguntei. — Poderia ser... Aquele alien de ontem era Arthur Cooper?

 — Não necessariamente. O nosso suspeito da capa voadora pode ter roubado o convite de alguém chamado Arthur Cooper, na verdade diria que é a hipótese mais provável.

 Ficamos esperando maior elaboração. Sarah atendeu à expectativa:

 — Como eu disse, o torneio de Uahmyr não é pouca coisa, é uma oportunidade que é concedida a apenas poucos líderes do submundo presentes na Terra, Arena e demais planetas que consigam chegar ao destino a tempo. Por ter muitos concorrentes e poucas vagas, um papelzinho destes pode chegar a valer mais de milhões. Mas ainda assim, creio que ninguém venderia o direito da participação. Apenas o fato de competir no torneio serviria para aumentar e muito a reputação de qualquer um que inscrevesse um galo de briga.

 “E o que isso tem a ver com o alien?” Vocês perguntam. Escutem: se esse papel é tão valioso assim não haveria motivo para ficar esvoaçando com ele no bolso por aí na madrugada. Se eu pertencesse ao alto escalão de uma organização mafiosa teria ela muito bem trancada em uma caixa com alguns cadeados e guardas em volta. Ou seja... Esse convite foi roubado.

 — O que significa que Arthur Cooper ou era o velho morando com a srta. Johnson ou tinha deixado o convite na casa dela sob os cuidados do velho. — Concluí.

 Sarah apenas me encarou reflexivamente por um instante.

 — É... Pode ser... Razoável... Sim... É de se pensar que deve ser uma dessas duas alternativas...

 — Isso explicaria por que ele estava com o convite no bolso, porque tinha acabado de toma-lo à força usando algum método que não sabemos como. — Completei.

 — Essa é outra questão. Sabemos que não foi ductu. Deve ter sido alguma finesse dele... — Especulou Lowe.

 — O método utilizado para o assassinato é algo a se considerar. Seria mais fácil analisar se eu pudesse saber exatamente de onde o envelope foi retirado, afinal ele conseguiu entrar e sair da residência não só sem deixar digitais, mas sem deixar vestígio nenhum de que houve arrombamento. Se ele tirou o envelope de lá deve haver alguma coisa. Vou pedir para o agente Chapman — Sarah olhou Chapman sentado entre Lowe e Crane que estava quieto durante toda a reunião — fazer a averiguação, agora com esse objetivo em mente.

 — E quanto a nós? — Perguntei.

 — Você tem a segunda-feira de folga, não é mesmo?

 Eu tinha me esquecido. Hoje já era sexta.

 — Sobram só os outros quatro. Eu tenho que ir até Silverbay e tomar mais algumas medidas a respeito disso — Ela apontou com a cabeça para o envelope em cima da cadeira — À dupla do Joey vou pedir que investigue sobre o paradeiro desse tal de Arthur Cooper. Olhando nos registros e fazendo alguns telefonemas devemos descobrir alguma coisa.

 — Minha dupla é o tenente, capitã... — Objetou Joey

 — Então vá com a detetive Lowe.

 Eles se entreolharam estranhamente. Sarah prosseguiu:

 — Existe ainda mais um ponto que não foi considerado: se o alien roubou o convite ele tinha um motivo. Ele é um chefe da máfia? Um líder de uma organização criminosa de Sproustown? Difícil, pois um líder não teria pegado o convite com as próprias mãos, mas teria mandado um capacho... O que me leva a concluir que o alienígena é apenas um capacho e há mais alguém por trás disso. — Sarah dirigiu-se novamente à Chapman — Você disse que havia o quê? Três grupos de Deluxe restantes?

 — Não é bem três grupos, senhora capitã... Eu disse que tinha três postos de venda de Deluxe aqui na cidade. Uma é na parte de baixo da cidade, que é infestada de gente dopada. Tem outro quase aqui no centro da cidade, perto daquele beco onde comeram aquele Gerald em plena luz do dia e um terceiro relacionado a um vendedor que fica pelas bandas do nordeste, perto daquele shopping grande que tem lá, sabe senhora capitã? Ele está lá só de vez em quando, pelo que ouvi.

 — Hunf. E o DEA não faz nada a respeito disso? — Murmurei.

 — Difícil fazer alguma coisa, senhor tenente... Difícil fazer alguma coisa porque todo esse papo de vendas que escuto dos meus contatos se passa por apenas boato. O DEA revista e revista, mas mesmo que achem os dopados sob o efeito da balinha, a balinha mesmo... Ninguém nunca vê. Apreenderam só duas amostras junto com uns adolescentes esse ano. Querem saber o que é interessante?

 Chapman olhou ao redor.

 — As amostras eram de fabricantes diferentes. Uma foi achada no norte, outra foi achada aqui no centro.

 Sarah refletiu por um instante.

 — Isso indica que apesar dos proeminentes esforços do DEA nos últimos anos, ainda parecem existir alguns postos de venda ilegal de Deluxes em Sproustown. — Ela deu de ombros — Com esforço policial a venda diminui bastante, mas difícil acreditar que vai parar de uma hora para outra. O que é mais preocupante é o fato de ter um alien envolvido. Deixamos as drogas com o DEA. Temos que colocar a investigação do envolvimento do homem da capa voadora com o tráfico na nossa lista, mas não vamos fazer isso na segunda porque alguém tem que ficar aqui caso haja uma emergência. E aquela que sobrou é você, Crane.

 — Sim, senhora! — Assentiu Crane.

 — Então estamos combinados. — Sarah finalizou e o pessoal começou a se levantar. Dirigiu-se a mim, fazendo também um sinal para Chapman com a mão:

 — Vocês dois, têm um minuto?

 Assim que os demais saíram, ficamos só eu, Chapman e Sarah na sala. Ela encostou a porta.

 — É sobre Jeffrey Sprohic... Como esperado os oficiais de Silverbay disseram que vão tomar o caso visto que é a jurisdição deles... Não vou conseguir nenhuma palavra com ele.

 — E isso é ruim? — Perguntou Chapman.

 — Eu estava esperando que conseguíssemos alguma informação sobre quem o contratou para fazer o roubo de Club Jewel. Como tenente Dotson reportou há dois dias atrás — ela virou-se para mim — É difícil que Jeffrey Sprohic tenha pensando em todo o plano de fuga sozinho, então ele pode estar trabalhando sob o comando de alguém envolvido com o tráfico. E se for verdade... Visto que os dois incidentes ocorreram na mesma semana é de se pensar que um tenha relação com o outro, já que a motivação deles é parecida.

 — Opa, acho que entendi, senhora capitã. Se o zumbi abre a boca... Capturamos o alienígena?

 — Mais que isso. Talvez cheguemos ao contratante.

 — Mas como você mesma disse... Agora não podemos entrevistar o Sprohic.

 — Certamente não, tenente Dotson. A pancada que você deu na supra espinhal o deixou imobilizado por tempo demais e perdemos a chance. — Ela me dirigiu um olhar de reprovação.

 — Ora... Ele era gigante e estava fazendo vítimas. Como eu saberia qual a força certa que deveria aplicar para imobilizá-lo pelo resto da viagem sem exagerar?

 Quando se tranca o funcionamento da espinha o corpo todo se paralisa. Visto que zumbis não podem ser desacordados é a única maneira de capturá-lo. Mesmo que o sano de Sprohic não o permita restaurar o osso quebrado sozinho ele pode ser recuperado via cirurgia, e a cirurgia pode ser aplicada no zumbi diretamente, sem precisar de anestesia, já que ele não sente dor. Então não tem por que se segurar quando se luta com um deles.

 — Que seja. Agora o que temos é o que temos. Por isso Chapman, queria pedir que você verificasse seus contatos para descobrir qualquer coisa sobre Jeffrey Sprohic. Não é possível que ninguém envolvido com os Deluxes tenha visto um gigante de mais de dois metros por aí durante a semana se ele estava realmente trabalhando neste sentido.

 — Entendido, senhora capitã. — Chapman fez uma continência e saiu da sala.

 Qual é? Ela ia deixar este trabalho justo com o Chapman?

 Quando Chapman abriu a porta da sala eu saí para o corredor ao mesmo tempo. Sarah deu meia volta para pegar o papel que ela tinha deixado na cadeira. Sussurrei para Chapman:

 — Esse fedor... Eu fumo e mesmo a mim o cheiro incomoda de longe.

 — Eeei, senhor tenente... Me dê um pouco de crédito. Isso não é meu. Sabe que muita gente usa essas coisas nos lugares por onde eu ando. Sabe como é, não? Um agente tentando se infiltrar no meio da turma das noites e tentando receber confiança... Eu preciso aguentar muita coisa ali.

 — É... Sabe-se lá quem está se infiltrando no meio de quem... Descubra quem é Sprohic. Não vou aceitar que você ferre com o caso.

 — É o que pretendo, senhor tenente. Até depois. — Chapman bateu uma continência de modo sarcástico e foi na direção do pátio.

 A sexta-feira acabou mais rápida do que nunca. Temos o fim de semana livre e eu, adicionalmente, a segunda feira livre. Bem agora que a investigação estava ficando interessante.

 Voltei para minha casa andando, o que não é grande coisa. Bastam apenas uns trinta e cinco minutos de caminhada. Enquanto fazia o percurso fiquei pensando sobre a situação que tínhamos até então: tínhamos nas mãos um convite para um torneio ilegal em nome de alguém provavelmente importante no submundo. Por outro lado, não tínhamos conhecimento de quem era esse alguém. Tínhamos um caso de assassinato cuja análise preliminar foi morte natural, embora tenhamos avistado o culpado não tínhamos pista dele. Faltava investigar a casa novamente por busca de pistas, o que Chapman ia fazer, e faltava verificar se alguém sabia sobre a ação de Sprohic antes que ela aconteceu para formar uma ligação entre os dois casos, o que o Chapman também ia fazer.

 Chapman e Chapman.

 Por ser o agente infiltrado ele mantinha contato com pessoas de reputação duvidosa, mas que forneciam a ele informações interessantes sobre os mais variados casos de Sproustown, muitas vezes nos dando dicas de coisas que podem ser obras de seres de interesse do DCAE. No caso, claramente qualquer informação a respeito do tráfico de Deluxes era informação valiosa.

 Mas acontece que por ser muito ligado a esses contatos existia a possibilidade de Chapman ter ficado amigo demais de pessoas que têm as informações e resolver não passá-las porque elas delatariam algum de seus conhecidos que ele gostasse.

 Qualquer agente íntegro não faria isso, mas eu não atribuía essa qualidade a Cole Chapman.

 “Talvez eu devesse confirmar alguma dessas duas coisas por mim mesmo durante o fim de semana. Não exatamente tenho contato com ninguém remotamente ligado com drogas e nem ando pelos bares por aí ouvindo conversas. Creio que minha aparência assustaria pessoas desse tipo ao invés de incentivá-las a me dizer qualquer coisa, então creio que deveria ao menos voltar para a casa dos Johnson e ver se descubro alguma coisa sobre o envelope e o alien.”

 Foi o que pensei durante o percurso.

 Quando cheguei na escada fora de casa eram quase seis da tarde. Minhas botas fazem um pouco de barulho então Jane sabe quando estou chegando. Antes de abrir a porta podia ouvir sua voz irritante:

 — Henry? Henry? É você?

 Ouvi a voz ficando mais e mais próxima da porta

 — Eu liguei para você e você...

 Ela continuou a frase do outro lado da porta mas eu não ouvia mais. Pensei comigo mesmo naquele momento: se eu tiver que ficar ouvindo Jane e suas asneiras durante três dias seguidos provavelmente vai ser o fim da minha vida. Não quero voltar.

 No outro dia tinha dito para mim mesmo que ia começar a beber de verdade para fazer jus à paranoia idiota dela. Hoje passei em frente ao bar e não entrei.

 Ainda eram cinco para as seis.

 Ao invés de chavear a porta e entrar como todos os dias, usei a indarra para saltar por cima da escada e cair do outro lado, com o que corri rapidamente para a grama, ficando invisível para quem abria a porta, visto que ela abria para o lado do fim da escada.

 Jane abriu a porta e me procurou por uns segundos:

 — Henry?

 Sua voz estava numa mistura de monotonia e irritação.

 Ela olhou a seu redor e então fechou a porta atrás de si após entrar na casa novamente, deve ter achado que foi sua impressão.

 Andando sobre a grama para não fazer barulho me dirigi ao bar e escapei aquela noite.



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