Hinderman Brasileira

Autor(a): Oliver K.


Volume 1

Capítulo 6.1: O Dia que eu me passei por Detetive em Little Quarry

 A casa era simples, mas ainda assim aconchegante.  Tinha uma sala grande com várias portas para os demais cômodos, e essa sala grande tinha um sofá macio que era o meu preferido. A única coisa que deixava o ambiente pouco amigável ali era a luz. Sabe quando a luz é “escura”? Quando ela não ilumina muito e deixa o ambiente um pouco, sabe... “escuro” demais? Fica uma atmosfera meio tétrica? Lúgubre? Era mais ou menos assim. Era a casa do Craig.

 Eu estava sentada no sofá macio. Craig estava de pé terminando de se arrumar: ora ajeitava o cabelo olhando no espelho, ora colocava seus pertences nos bolsos. Ele é aquele típico brutamonte que parece um instrutor de academia ou algo assim. Costumava andar de regata para exibir seus másculos bíceps cobertos de tatuagens aleatórias sem necessidade. Uma delas era a tatuagem do Dragão.

 Sempre que ele ia falar com o Dragão eu aparecia na casa dele um pouco antes para conversar.

 Na casa moram só ele e Marcelle, que é uma menina de quem ele cuida. Marcelle é cega e cadeirante, não faz nada sozinha. Assim Craig sempre tem que estar em casa, nunca pode sair por muito tempo. E isso combina com o trabalho dele, que na maior parte das vezes acaba rápido e dá muito dinheiro. Você adivinhou: ele trabalha para o Dragão. O famoso chefe do submundo de Sproustown. É um sicário ou algo assim.

 Eu também trabalho para o Dragão na mesma vocação, mas minha tatuagem é escondida nas costas, eu não ando exibindo ela por aí usando uma baby-look. E é porque eu trabalho sob as ordens do mesmo chefe que venho e sento naquele sofá no dia antes de ele conversar com o dito cujo, para tratar de trabalho.

 — Sabe o que aconteceu? Um ET apareceu.

 — Um alien?

 — E ele deu um convite de um tal de torneio de não sei o que da Arena para a polícia.

 — O que? Um convite da arena? Quer dizer “o” convite da Arena? E o que quer dizer com “deu” o convite para a polícia?

 — Ele deve ter perdido. Sei lá...

 — Você ao menos sabe o que é esse convite?

 Dei de ombros. Esparramada no sofá, continuava jogando Cinder Clash no meu celular. Eu não sabia. Como eu ia saber? Provavelmente era alguma coisa horrível e ilegal como sempre. Esses humanos são todos tão esquisitos.

 — O torneio de Uahmyr é uma competição de seres paranormais, os melhores de todo o sistema solar.

 — Hum...

 — As anteninhas se levantaram, é?

 — E qualquer um pode participar?

 — Infelizmente não, você não poderia participar nem que quisesse, Bubble. É algo feito de organizações mafiosas para organizações mafiosas. Os líderes inscrevem seus cachorrinhos e eles que lutam. Contra a vontade, óbvio.

 — Então não devem ser os seres mais fortes... Se eles se deixam controlar desse jeito...

 Meu interesse se esvaiu.

 — Coincidentemente você vem me dizer isso justo no dia que o Dragão me chamou... Suponho que deve pensar que ele quer discutir algo a respeito disso, é?

 — Imagino que sim. Foi a única coisa relevante que aconteceu... Já que você diz que esse torneio é famoso entre a máfia, ele deve estar querendo que você usurpe o convite para que um de nós três possamos participar. Por nós três quero dizer, eu você ou o Sub. Excluo a Marcelle, óbvio.

 Craig me lançou um olhar mal-humorado. Ele detesta que eu fale mal da Marcelle em qualquer hipótese. Mas que ela atrapalha bastante as atividades do grupo, isto é fato.

 — A Marcelle não está atrapalhando as atividades do Dragão, Bubble. Pelo contrário, tenho cumprido as ordens cem por cento desde antes de o Sub-Zero se juntar à equipe.

 Odeio quando ele faz isso. A finesse mais chata de todas que existem é a leitura de mente do Craig.

 — Não é leitura de mente, Bubble. — Respondeu ele ao adivinhar o que eu estava pensando — Mas sim uma leitura de microexpressões faciais. Com base nas expressões quase invisíveis do corpo humano eu consigo obter uma ideia do que se passa na cabeça do alvo observado. Passei anos estudando psicologia da linguagem corporal e fazendo testes em diversas pessoas até conseguir um resultado aceitável que é esse nível de leitura que tenho agora. Com base no seu tom irritadiço de voz, misturado ao fato que sua pele da testa se retraiu alguns milímetros, dá para dizer que você devia estar pensando algo de ruim dela quando falou a frase “excluo a Marcelle, óbvio”. E sua cara se retraiu ainda mais quando eu respondi, o que indica que acertei em cheio o seu pensamento: o de reclamar da minha finesse de entender o pensamento. Acertei de novo?

 “Psicologia de não-sei-o-que...” Que seja... Para mim ainda é uma leitura de mente.

 (E além do mais, ninguém te perguntou, Craig. Você bem que podia me deixar terminar minhas frases.)

 Para mudar de tópico, provoquei-o:

 — Hum. Eu provavelmente seria mais indicada que você para participar do torneio.

 Estava só brincando. É óbvio que alguém que lê as mentes dos outros seria muito mais indicado.

 — É? Tem razão. Você realmente é uma mercenária assustadora. O terror de Sproustown. Duplamente mais assustadora quando fica vidrada nesse joguinho e sentada em cima das pernas esparramada no sofá. Imagino que ia querer levar o celular junto consigo para o torneio...

 Craig bocejou à medida que colocava um casaco que estava pendurado ao lado da porta, sabe... Naqueles lugares de pendurar casacos que ficam ao lado das portas.

 — De qualquer forma, a conversa de hoje com o Dragão vai ser sobre o alien e o convite com uma certeza de mais de noventa por cento. Por que um convite de papel? Seria muito melhor se as organizações criminosas usassem um tipo de senha ou algo que não fosse físico, justamente para evitar de essas coisas caírem na mão da polícia. Como se já não tivéssemos problema o suficiente com a polícia.

 — Com a facilidade que paranormais conseguem informação, algo como senhas seria dentre todos os modos o menos confiável meio de certificar sua identidade em um torneio, Craig.

 — E um papel não seria ainda menos confiável? Ou vai me dizer que por acaso eles não podem falsificar um papel? Todo mundo com tanta finesse e nem isso...

 Craig me olhou de modo rápido enquanto passava o celular do bolso da calça para o do casaco.

 — Sua expressão diz que é sim impossível falsificar o papel... — Ele adivinhou.

 Dei de ombros.

 — Se for o tipo de papel que estou pensando... Só existe aquele material fora da Terra, e a tinta com que as assinaturas oficiais são feitas pode ser identificada pelo serial. Fabricam aquele tipo de tinta só na central de casos criminosos interestelares de Arena.

 — Na central de casos criminosos interestelares? Sério? E eles mesmo assim conseguem a tinta para assinar um papel exatamente para fins criminosos interestelares? Roubam a tinta assim, sob o faro deles? Uau... Vejo que é sim um método extremamente confiável de acesso.

 — É sim um método extremamente confiável de acesso, Craig: não tenho certeza sobre quem rouba a tinta para fazer os papeis, mas seja lá quem for, ninguém mais além dele consegue. Eles têm controle do material... Tem um código que eles mudam todo o ano que usam para identificar se o papel é falso ou não ou algo assim. E mesmo se alguém tentasse adquirir o papel roubando, como eu disse antes, teria que buscar naquele local específico, e lá é monitorado o tempo todo por eles mesmos desde que iniciam as inscrições, assim...

 — Falsificar está fora de questão.

 — Está...

 Craig foi até o quarto para terminar de se arrumar. Permaneci jogando Cinder Clash. Dava para ouvir a voz de Marcelle fazendo as coisas dela no quarto ao lado. Às vezes dava um pouco de constrangimento falar de trabalho sabendo que ela estava em casa, mas provavelmente com o barulho do rádio ela não ouvia nada.

 E depois, se ela ouvisse era problema do Craig e não meu, assim...

 Craig voltou.

 — “Está”... Algo entre sua entonação e expressão me diz que você está deliberadamente escondendo alguma coisa, esperando que eu pergunte primeiro para só então você responder. Está bem, eu pergunto, Bubble... O que há de adicional?

 — Eu ia dizer que mesmo que seja impossível falsificar o convite, é fácil falsificar a identidade de seja lá quem for que está sendo convidado. Se alguém daqui consegue esse papel, basta dar um fim no destinatário e falsificar sua identidade para fazer-se passar pelo destinatário. Afinal falsificar identidades feitas por humanos é a coisa mais fácil que tem. Trivial. Banal igual a uma banana.

 — Faz sentido. O staff do torneio de Uahmyr provavelmente nem conhece todos os convidados de tantos que são. Fazer-se passar por um deles desde que o verdadeiro não comparecesse não seria impossível. É... Isso explica porque o nosso Dragão está atrás do convite.

 — Se lembre que a priori nem sabemos ao certo se o Dragão realmente te chamou por causa desse convite...

 — É claro que deve ter chamado. Por que mais seria?

 — Como vou saber?

 Após ajustar a gola da camisa, Craig parecia de todo arrumado agora.

 — Ei, Bubble... Me diga uma coisa: Como está tão informada sobre o submundo de Arena? Para alguém que apenas acabou de saber do que se trata o convite você está sabendo bastante sobre a staff deles.

 Ergui uma sobrancelha.

 — Craig... Eu só sei do submundo de Arena porque vim de lá. Eu não sabia que era um convite específico para o torneio de Uahmyr, só isso. Mas como os papeis que usam na Arena para tudo que é confidencial é daquele tipo, imaginei que em Uahmyr não deve ser diferente. Apenas isso.

 Inclinei minha cabeça para a tela do celular de novo. O jogo estava chegando na parte interessante.

 — Daqui a pouco sua maior finesse vai ser esse joguinho. — Ele apontou com a cabeça para o Cinder Clash. Apenas mostrei-lhe o dedo enquanto olhava para a tela. Ele murmurou mais alguma coisa, mas eu estava muito concentrada no jogo.

 — Bom, Bubble... Eu vou finalmente lá falar com o chefe e ver o que ele tem para nós. Você vai fazer o que?

 Sem tirar o olho da tela, me preparei para me levantar.

 — Eu? Deixe-me ver... Acho que vou dar uma passada na casa dos Johnson... Já que como você disse provavelmente vamos ter que lidar com esse assunto, mesmo.

 — Johnson? Quem é Johnson?

 — Eu não te disse? O ET que apareceu foi visto na casa de uma tal Margareth Johnson... Eles morreram de ductu.

 Craig misturou uma cara de interesse e espanto, mas ao invés de comentar alguma coisa ele só se despediu e fechou a porta atrás de si. Eu não ia ficar sendo babá da Marcelle por isso me preparei, peguei um táxi e fui para o meu destino.



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