Hinderman Brasileira

Autor(a): Oliver K.


Volume 1

Capítulo 21: O Tenente Caricato

 Abre-se a porta, pesada e arrastada.

 A figura que vejo é um misto de rotineira e ímpar. Um exemplo perfeito de delegado caricato: uniformizado, ligeiramente acima do peso, portando carranca, bigode e estilo.

 Encurralado, agora me encontro destinado a enfrentar aquela figura singular. Leio seu nome no crachá que o mesmo carrega pendurado ao bolso do peitoral: “Tenente Dotson.”

 Aquela original personalidade pita seu charuto de modo burlesco e só então me pergunta, visando intimidação:

 — Você é... O desgraçado da sexta-feira?

 Acredito que deva eu estar carecendo de contexto quanto a presente situação. Permita-me voltar no tempo e esclarecer os meios que levaram a tal aflitiva situação:

 Idealiza a seguinte cena: estamos eu e minha senhora no hall do Pinnacle Hotel, atual base de operações de nosso ascendente grupo distribuidor de Deluxes. Minha senhora está arrumada. Prestes a sair, usa peça moda verão de chiffon, recortada de modo a encobrir suas formosas asas de contestante olhado popular.

 — Shinobi... Não esqueça de chegar lá um pouco antes. Pode ser que a polícia se intrometa na nossa pequena operação... Pode ser até que mais convidados ilustres penetrem nossa pequena operação. E você não está apto a receber tantos convidados ilustres, bebê. Você não é o anfitrião da festa.

 — Receio não concordar com o termo festivo para a descrição do furto, minha senhora.

 Explico que naquele a partir de duas horas dali estou incumbido de interceptar um transporte de carga ilegal em South Gorem, não com a intenção óbvia de obter amostras de Deluxes gratuitamente, mas sim de obter o convite para o torneio de Uahmyr, o qual segundo informantes estará sendo transportado junto à primorosa carga.

 Cumulo certa curiosidade:

 — Minha senhora? Onde vai? Estarei só até o momento da saída?

 Minha senhora atira a cabeça para trás manhosamente ao explanar-se:

 — Meu bebê... Eu não te disse? Nosso pernil que estava guardado no freezer... Foi roubado. Temos um ladrão de pernil! Um ladrão de galinha.

 E ela professa aquelas palavras com tal serenidade. Este é assunto sério.

 — Mas..!? Como pode? Alguém está ciente de nossa preferência ao uso do Hotel Pinnacle como abrigo remoto?

 Ela se vira completamente para mim, levando um dedo ao queixo requintadamente.

 — Quem sabe? O que importa é que o presunto sumiu. Alexander Sprohic foi sequestrado. Eu gostaria de encontrá-lo novamente. E já que você tem compromissos... Afinal de contas nós não exatamente temos muitos mercenários trabalhando para o grupo de Deluxes da Cayme, não é mesmo?

 — Minha senhora! Acredito que não se qualifique como mera mercenária...

 — É ÓBVIO que não me considero mercenária, Shinobi. Como pode sugerir uma coisa dessas?

 — Perdão, minha senhora...

 Cayme vira-se novamente e caminha na direção do umbral da saída.

 — Mas é de se considerar que estamos precisando de mais poder de fogo... Hum... Começar um grupo de vendas de Deluxes parece mais difícil do que eu pensava. Devo pensar em como vou fazer para lidar com essa... “irregularidade”... Quando todo esse episódio se acabar.

 — Com o perdão do interesse, minha senhora... Como pretende encontrar o...

 — ...O presunto? Simples: ele está sendo monitorado por dentro por um eletrônico. Não acha que eu arriscaria deixá-lo vivo no freezer e sair para fazer contatos com vendedores ilegais sem ter ninguém apto a fazer a segurança, acha meu bebê?

 Ela caminha porta afora e prepara-se para sua parte.

 E herdo sua convicta resolução para a minha tarefa incumbida: interceptar o convite de Arthur Cooper para o torneio de Uahmyr, alvo atual de cada dos empregadores mercenários ilícitos de Sproustown.

 Tenho como informação a hora e o local. Trata-se de um comboio de Deluxes a ser despojado em área abandonada de uma findada transportadora. O local é o bloco esquerdo, edifício abrigador dos gabinetes da área administrativa.

 Sem ter mais o que fazer, dirijo-me ao local com horas de antecedência. O faço andejando, já que é o meio de transporte que carrega menos chances de ser interceptado. Uso tal meio sempre que possível.

 A região é South Gorem District, o prédio fica em interseção em t entre a principal e uma rua de subida íngreme que some de vista embaixo das árvores que a servem de contorno.

 Não tardo a chegar ao local. Estou na vizinhança faltando pouco mais que meia hora para a combinada transação.

 Conforme antecipado, trata-se de acanhado aglomerado de prédios retangulares com apenas uma abertura. Prefiro usar de minha agilidade e saltar ao telhado do estabelecimento alvo, à moda agachada, e observar o movimento interior com o uso de pequeno drone de bolso.

 O drone embrenha por entre a abertura da janela e transmite-me a situação: a sala da janela é vazia e há dois homens conversando à porta, ao lado do corredor. Como a porta está fechada, estes não vislumbram o aparato.

 Numa providência mais ousada, controlo o aparato na direção da porta provocando baque e queda, chamando deliberadamente atenção.

 Um dos homens, suspeitoso, adentra o recinto e avista o aparelho, ainda funcionando, jogado, ao zumbir de suas hélices. O homem percebe a tentativa alheia de mapear o local e inicia transmissão a superior via rádio transmissor.

 No meio tempo, usando de minha agilidade, consigo entrar pela janela. O faço iniciando da cabeça, visto que originalmente me encontro na parte superior, e então prossigo agarrando à base do teto, adentrando a sala em uma só manobra.

 — Chefe? Tem alg... — Interrompo a narrativa do indivíduo à medida que esguio adentro pela janela atacando-o com arremesso de pequeno dardo envenenado em sua testa. A força é descomedida e a mira certeira.

 O efeito é letal e imediato.

 — Quem está aí? — Pergunta o homem que estava no corredor, ao entrar também na sala.

 Em tempo e maestria similar ao feito anterior, silencio o segundo homem com tiro de dardo certeiro.

 Agora me encontro sozinho dentro do recinto.

 Em um dos bolsos de meu sobretudo encontra-se ainda outro aparato auxiliar: um mapeador de propagadores de ondas. Com este sou capaz de registrar localidade de fontes de ondas radiotransmissoras.

 Verifico a origem das frequências emitidas durante a resposta dada ao primeiro homem a cair após este ter feito contato via rádio. Se o local de origem daquela onda é de seu superior, há grande chance de coincidir com o local do convite. Por que razão o superior não estaria com a posse do convite ou com este à sua vista?

 Verifico que a origem é de sala do mesmo prédio, entretanto um andar acima. Penso que precisaria sair da sala, caminhar pelo corredor térreo por vinte metros até a escada mais próxima, e então escalar a mesma a fim de comparecer ao local fonte da onda transmissora.

 Com base nisso, saio da sala. Faltam vinte minutos para a agenda pactuada pelos perpetradores da transação ilícita.

 Cogitado, mas não exatamente antecipado, escuto a chegada da polícia no local. São agentes que chegam em três pelo corredor da frente, o primeiro deles forçando a porta com seu escudo de metal.

 — Mãos para cima! — Grita o primeiro deles, apontando-me sua pistola.

 Certamente não planejo obedecer. Reflito momentaneamente sobre a ação alternativa. Decido que devo me dirigir ao andar superior o mais rápido possível. Entretanto é preciso nocautear os policiais previamente, para evitar perseguição subsequente.

 Corro exagerando de indarra e de diagonais, visando desviar as balas. Aqui tal medida é necessária. A polícia saberá confidenciar o paranormal em seus relatos. Um deles agarra o transmissor:

 — Aqui é Hamilton, equipe 3. Solicitamos suporte, temos...

 Abato o portador da transmissão, antes que termine o recado. Em meio a tiros e frívola resistência, derrubo também um dos outros dois. O outro se dirige apressadamente para a ala exterior.

 Escuto vozes do outro lado, vindas do aparelho jogado ao chão:

 — “Hamilton... Howard na escuta, situação da equipe 3? Coloque o Dan na linha, por favor.”

 — “Merda! O que aconteceu?”

 — “Como assim a equipe de Dan não responde? Dan... Dan?”

 São duas vozes distintas alternando-se em tom exaltado e confuso. Ignoro as vozes e os policiais tombados e, subindo as escadas, canonizo celeridade no cumprimento da missão.

 Uma vez lá em cima, abro a maçaneta da porta em evento prolongado, preparando-me para reação furtiva.

 Não há reação.

 A porta abre-se por completo e três homens, dois dos quais armados, encontram-se empalidecidos e taciturnos no interior. Um deles, o desarmado, parece ser o superior dos demais. Esta hipótese é confirmada quando ele revela sua voz, rigorosamente fiel à reprodução captada em meu aparelho de bolso.

 — Atirem!

 Antes que os subordinados levantem as mãos, apontando suas armas para mim, uso de minha velocidade para lançar meu corpo contra um deles, que se encontra perante a janela, nocauteando-o, e durante a manobra atiro mais um dardo envenenado no segundo homem.

 O mandante desarmado fica perplexo, sem entender a procedência anormal de meus dotes físicos.

 Caminho até ele.

 O seguro levemente pela gola da camisa, sem proferir palavra.

 Como de esperado, este passa a revelar informações de modo espavorido:

 — E...Espere! Eu sou só um subordinado... Você quer aquele papel, quer? Está na gaveta... Por favor não...

 Assim que este menciona a gaveta, largo-o e o ignoro. A gaveta está logo à nossa direita, gaveta de miúda escrivaninha de escritório. Abro-a e encontro o convite.

 Coloco o mesmo no bolso livre de meu cerúleo sobretudo. Sem olhar para trás, com breve movimento de braço, nocauteio o mandante que se encontra ao meu lado de uma só vez.

 “A missão está parcialmente cumprida. Basta dirigir-me para fora dali antes que...”

 Escuto passos lentos vindos do corredor. Olhando para a porta observo que a mesma encontra-se fechada. Atribuo culpa ao vento causado pelo uso de minha velocidade no ataque anterior.

 Abre-se a porta, pesada e arrastada.

 A figura que vejo é um misto de rotineira e ímpar. Um exemplo perfeito de delegado caricato: uniformizado, ligeiramente acima do peso, portando carranca, bigode e estilo.

 Encurralado, agora me encontro destinado a enfrentar aquela figura singular. Leio seu nome no crachá que o mesmo carrega pendurado ao bolso do peitoral: “Tenente Dotson.”

 Aquela original personalidade pita seu charuto de modo burlesco e só então me pergunta, visando intimidação:

 — Você é... O desgraçado da sexta-feira?

 E agora apresento a história do ponto principal:

 — Acredito não me considerar desgraçado. Talvez... Desafortunado? — Retruco.

 O indivíduo me olha de cima a baixo. Devo admitir que a intensidade de seu ductu é acentuada. Sinto pequeno calafrio:

 — Acredito também que nunca nos deparamos um com o outro...

 O tenente deixa cair seu charuto.

 — Você é todo maneiras, hã?

 Usando de impulso sobrenatural este se transporta à minha frente em questão de frações de segundo, interrompendo a quebra de gelo.

 É protocolo da divisão especial de Sproustown visar obstruir os movimentos dos braços usando de estilo similar a Kajukenbo. Deparei com a mesma prática na sexta passada, quando enfrentei dois agentes ao sequestrar Alexander Sprohic. Conhecendo tal prática uso de meus braços para bloquear seus movimentos, curvando-os ligeiramente para trás, evitando ser agarrado.

 Passo a bloquear seus ataques, intermeando os meus. Não nos acertamos, apenas defendemos um os golpes do outro.

 Entretanto sua força física, comparada à minha, é proeminente.

 Quanto mais uso de minha habilidade para defender seus ataques, mais cansado percebo que meu corpo fica. Vislumbro seu olhar. Seu rosto caricato esconde um semblante sádico atrás de seu bigode. Ele intenta cansar-me para sobrepor-se com força bruta.

 Começo a pensar em modo de me livrar da onda de ataques. Contudo percebo estar ao lado do armário de ferro e do canto da sala, quase que tropeçando no desfalecido capanga recém-abatido, posição esta pouco invejável. Precisaria contornar sua pessoa para me livrar de seu engaje. Isto não é possível em se tratando de luta corpo-a-corpo contra um ser paranormal. Se ao menos houvesse distração...

 Penso em usar uma de minhas mãos para alcançar um de meus dardos, mas preciso de ambas para bloquear seus ataques, ou caso contrário...

 Minha única alternativa é usar Shoushiryu, minha katana. Por ela estar escondida de modo conveniente sob o couro de meu sobretudo consigo manipulá-la apenas com os antebraços, à medida que uso as mãos para revidar sua onda de golpes. Com sorte posso derrubá-lo usando taiar, e então finalizá-lo quando estiver no chão.

 Entretanto quando inicio o processo premeditado com meu antebraço, seu corpo misteriosamente é arremessado para a minha esquerda, de modo a me encurralar perante o armário, no que ele desfere um direto de direita a curta distância que não antecipei.

 Neste inesperado evento sou atirado para o outro lado da sala e venho ao chão. Receoso do porvindouro.

 Contudo o caricato tenente resolve acender mais um cigarro enquanto estou estatelado, ao invés de acabar comigo em sua chance.

 — Um bastão de silisolita? Eu estava pensando sobre isso nos últimos dias... Você conseguiu derrubar Joey com o que ele diz ser um pedaço de pau na sexta-feira. Ele não é nenhum amador para não enxergar armas que os oponentes carregam, e eu também não enxerguei nada até que vi os diminutos movimentos embaixo de seu casaco. Silisolita é um material alienígena que vem daquele planeta que começa com V que eu esqueci o nome... É um mineral essencialmente invisível por olhos humanos. Conveniente carregar um desses aí pela Terra.

 O parcialmente longevo policial faz pausa e pita seu cigarro, me encarando com expressão avaliativa.

 — Isso faz de você o que? Um alien? Um homem-lagarto? Eles são de lá, não...?

 — Mera correção. É uma katana de silisolita. — Apoio meus cotovelos no chão de modo imperceptível para fornecer apoio a movimento de levantamento instantâneo.

 — Que seja... Você deve ter usado taiar, a milenar técnica de transferir indarra para um objeto inanimado, para que causasse com ela algum tipo de dano na perna do Joey à curta distância. Era o que pretendia fazer comigo? — Meu oponente expele a fumaça de seu cigarro à minha direção — Pode jogar essa merda fora. Sou do tipo que nunca cai num truque duas vezes. Quem sabe vendo esse pedaço de pau para um amigo do Chapman por uns vinte dólares, dobro do valor da sua mãe.

 Ele vem se aproximando com sua presença lenta e decididamente.

 — Minha mãe vale tão pouco? É porque sou negro?

 — Não... É porque você é um criminoso imoral que não vale o peso em merda.

 Difamação!

 Como ousa? Ele chama Shoushiryu, minha estimada katana de silisolita de pedaço de pau? Não bastasse isso, faz menção desonrosa de minha falecida figura materna?

 

 Ele se prepara para dar um pisão em mim, prática comum de fim forçado de combate entre seres paranormais, principalmente em situações onde um deles se encontra em desvantajosa posição rente à superfície do chão. Entretanto usando um de meus treinados movimentos elevo-me novamente, numa cambalhota aérea singular orientada para trás, pousando a pouca coisa perto da porta, que agora se encontra fechada. Uma mistura de flash kick com back flip. Chamo de back kick.

 Ainda ultrajado, profiro:

 — Tenente Dotson... Mostrar-lhe-ei do que este “negro de merda” é capaz. Considere este seu último conflito.

 Controverso ao florescer de meus nervos, mantenho-me calmo. A intensidade de seu ductu indica sua concentração. Apenas disparar-me a seu encontro e forçar nova troca de golpes seria presunçoso e por que não dizer prática obtusa.

 Não me chamo Shinobi apenas pela escolha de minhas armas. Tenho em meu repertório de treinamento desde perícias acrobatas até habilidade de lutar de olhos vendados. Já que me encontro em desvantagem em ambiente claro, procuro ofuscar a visão de meu oponente.

 Aperto a granada de fumaça que se encontra em meu bolso. Se apertá-la com a indarra faço-a liberar o conteúdo sem precisar remover o lacre. Em poucos instantes a fumaça esvoaça tomando conta de todo aquele pequeno recinto. Não há janelas e a única saída é a porta fechada mais uma vez pelo vento, a qual se encontra atrás de mim.

 O singular policial de aparência burlesca manifesta-se aborrecido:

 — Droga! — Ele tosse uma vez, e cobre seu rosto com o bíceps.

 Sua reação é lenta. O plano parece ter funcionado. Agora intermeando cobrir seu rosto limitando os movimentos de seus membros e tentando conseguir visão em meio à neblina acredito ser fácil abatê-lo.

 Para resgatar o orgulho de minha companheira Shoushiryu, faço questão de portá-la, visando ferir o oficial com um golpe da mesma.

 Nem meus olhos são vulneráveis à neblina, nem minha laringe à fumaça. Encontro-me em ambiente natural.

 Aproximando-me de leve por trás do insólito policial roliço, desfiro um ataque com toda minha força, empunhando a katana na minha direita.

 Inesperadamente ele gira seu corpo em sentido contrário, desviando o golpe durante a rotação, terminando com seu corpo a minha frente, e então me contra-ataca com um direto de direita.

 Seu ataque apenas rela em meu corpo, mas é forte o suficiente para fazer-me cambalear e quase cair para trás! Não bastasse isso, pequeno ferimento se abre no local do contato do raspão. Passo a sangrar pelo peito, por debaixo de meu sobretudo. Se o tenente me acerta um desses de modo definitivo a luta acaba.

 Distancio-me a sumir na neblina usando de uma sequência de pequenos saltos, sem precisar tirar meus olhos da presa. Mais uma manobra treinada.

 Em tom jocoso, o agente bigodudo levanta os dois braços fazendo provocação:

 — Não te disse para largar essa merda? Quando você movimenta ela, a fumaça muda de direção revelando seu local... Queria dificultar ou facilitar com a bomba de fumaça?

 Detesto jogar o jogo do inimigo, mas acredito que mediante tal declaração, preciso realmente resguardar Shoushiryu para outra hora.

 Largo-a no chão.

 Percebo que de modo análogo um dardo arremessado teria sua posição revelada não só pela modificação na trajetória da fumaça, mas também pelo som do corte do vento. Coisas imperceptíveis a ser humano comum, mas que não passariam despercebidas por oficial paranormal de tal calibre. 

 Passo a me mover em maneira circular, sempre encarando os olhos do tenente. Ele tenta me seguir de alguma forma. Vejo em seus olhos que não me acompanha com os mesmos, mas sim com uma espécie de sexto sentido... Algo em mim que indica minha localização. Seria meu ductu? Impossível. O mesmo encontra-se espalhado por toda a sala. Ele teria que fazer medição perfeita da fonte do ductu para captar exatamente a posição com precisão de centímetros. O máximo que se pode fazer quanto a localização por ductu é encontrar o prédio ou a sala em que um ser que o emita está.

 — Vamos... Não vou sair daqui do meio. Quer que eu vá te procurar às cegas?

“Pode fazer troça, acabo com isso em um segundo.” Penso comigo.

 Quanto mais me movo, do modo menos chamativo que consigo, mais observo que ele deixa de acompanhar meus movimentos. Quando me dou por satisfeito, pulo em direção a ele. Viso acabar com tudo em um só golpe.

 O momento entre a decisão de meu salto repentino é prolongado na relatividade de minha percepção. Vejo a distância entre eu e aquela figura caricata sendo reduzida, pouco a pouco de cada vez. O bigodudo aparenta não estar ciente da ascensão gradativa de minha presença.

 E durante a viagem... Um pensamento:

“E se for tudo uma farsa?”

“E se ele souber sim minha posição? Estiver fazendo que não?”

 É sabido que o agente vestido em estilo é versado na fumaça produzida por seus vícios: o cigarro e o charuto. Poderia ser que sua finesse fosse justamente enxergar em meio à fumaça? Algo aprendido durante anos e anos, aproveitando o tempo fornecido por seu vício regular como meio de treinamento nas horas vagas?

 Afinal o que faz ser paranormal nas horas vagas? Treina finesses. É isso. Quanto mais se souber, melhor. Melhor se sairá em combates futuros.

 Sem certeza... Apenas com base neste pensamento, quando chego a curta distância do raio de alcance de seus membros... Meu corpo decide por apoiar o pé no chão e forçar a parada.

 “Vuush” Sinto o estremecer do vento causado por seu ataque. Ele tenta sem sucesso desferir-me um direto de direita, em sua mais rápida velocidade. Se eu tivesse parado poucos centímetros depois do que parei, este soco teria me acertado em cheio. Eu não seria capaz de desviar com o impulso que estava.

 Teria sido jogado ao chão inconsciente... E teria acordado na penitenciária.

 Meu coração palpita incessantemente, mas não é hora para admirar a destreza do adversário. Uso novamente de uma sequência de saltos para dobrar nossa distância mútua.

 Mordaz, o tenente sabia onde eu estava o tempo todo.

 — O que foi? Vai vir me socar ou não? Esse não ia ser meu último conflito e blábláblá ou algo dessa espécie?

 De modo similar à minha palpitação, o sangramento de meu peito começa a ficar mais e mais incômodo e não vejo nenhuma reviravolta iminente naquela luta em futuro tão próximo. É pesaroso admitir, mas... A realidade manifesta-se clara no momento presente: se continuar a tentar forçar a vitória serei dilacerado.

“Nessas condições, não consigo vencer mr. Dotson.”

 Ora, até mesmo os melhores lutadores precisam de autocrítica, e porque não dizer: todos os melhores lutadores usam a autocrítica para o molde de sua perícia? Devemos sim saber até onde vão nossos limites.

 A partir daquele momento luto com percepção alterada: Luto objetivando somente sair da sala. Eu já possuo o convite em mãos, e o policial anseia tomá-lo. Derrotar o agente caricato não faz parte de minha incumbência.

 O tenente de aparência singular ainda encontra-se provocativamente no centro da sala, esperando minha chegada para aplicar contra-ataque, para que possa enaltecer sua vitória sem precisar sair do lugar.

 Ainda estou aborrecido com sua arrogância e seus disparates proferidos, mas não nego que sua atitude facilita meu plano de saída.

 A primeira tentativa trata-se de contornar sua pessoa, reproduzindo versão do ataque anterior, entretanto usando do impulso para atirar-me contra a porta ao invés de encontro a ele, permitindo assim meu escape.

 Mas o agente, provavelmente perito em análise de situações, parece adivinhar meu pensamento e, saindo do meio da sala, caminha na direção da porta bloqueando minha passagem antes que eu ponha meu plano em prática. Idealizo que ele, meditando sobre as circunstâncias deixadas pelas minhas tentativas frustradas de embucho, deduziu que meu próximo passo seria buscar tentativa de deixá-lo lutando sozinho.

 — Qual é? Não diga que esperava que eu deixasse você dar uma de maricas?

 Ele encara-me. Vira o rosto exatamente na minha direção. Está de costas para a porta, rente à mesma, e eu, após a movimentação, retorno à localização original: perto dos três bandoleiros tombados e da parede oposta, à direita do armário de ferro.

 — Você deve ter adivinhado... Consigo enxergar perfeitamente na fumaça. Eu estava tentando fazer você de bobo. Mas agora já estou ficando de saco cheio. Vamos acabar logo com isso.

 O policial rechonchudo começa caminhando lentamente de modo costumeiro e então repentinamente usa de sua velocidade e quase me alcança em um movimento só, como um leão saltando sobre sua presa.

 Por pouco minha velocidade de reação me permite desviar de sua investida, inclinando meu corpo e então escapando para o lado direito.

 Mas não posso me permitir ficar dançando com o tenente de penteado singular daquela maneira, preciso elaborar plano de contra-ataque improvisado: a única medida que imagino dadas as circunstâncias é, em meio ao próximo salto de investida, intermear um arremesso de dardo de baixo do sobretudo, tomando o cuidado de usar o taiar para que o mesmo perfure minhas vestes, e então chegue ao corpo do oficial por ângulo desapercebido.

 Conforme antecipado, sua figura empoderada e imponente é atirada em mim de modo rápido e direto, minimizando qualquer menção à reação contrária. Para citar suas palavras, o policial do DCAE deseja realmente acabar logo com isso.

 Durante o próximo salto ponho meu plano em prática: jogo o dardo envenenado na sua direção em ângulo desonesto, à medida que salto de modo a manter distância corriqueiramente. Entre o atraso do uso da energia para a indarra usada no arremesso do dardo e o taiar utilizado para manter a força na ponta do mesmo, não consigo usar de muita energia durante meu pulo e então sou acertado nas costas por um de seus murros, o que me faz tombar de modo violento no chão mais uma vez.

 Desta vez bato meu nariz e meu rosto começa a sangrar. O golpe foi atroz. Isso é deixado claro pela rachadura que meu corpo faz no chão após minha queda. O policial está a atacar de modo descomedido.

 Tento ignorar a dor à medida que viro minha cabeça para trás para avistar sua pessoa. Se a força de meu dardo tiver sobressaído à sua robustez e perfurado sua pele com sucesso, receber devastador ataque não terá sido em vão.

 O portador do bigode admirável não se encontra em meu ângulo de visão, contudo avisto coisa que não queria: o dardo que joguei encontra-se caído no chão, com a ponta amassada.

 Percebo que não sou o único a usar o taiar naquela sala.

 Infiro que o agente, em sua preponderante experiência, percebeu a artimanha do dardo pela ínfima mudança no acúmulo de fumaça e usou do taiar na hora exata em seu colete à prova de balas que se encontrava sob sua blusa. Assim o dardo, embora dotado de força sobre-humana, quicou em seu corpo sendo amassado e lançado ao chão.

 Encontro-me em posição desfavorável, tendo revelado todos meus truques disponíveis. Meu rosto e peito sangram de modo miserável, estou caído de costas para o oponente e o mesmo avança lentamente a mim, desta vez decidido a finalizar o combate.

 Mesmo em meio a tamanho descalabro, minha experiência fala mais alto: lembro que não estou ali para lutar, mas sim para meramente abrir o meu escape.

 E agora que estou na frente do armário de onde tirei o papel da gaveta, ao lado da parede lateral que separa o dentro e o fora, percebo que se houver saída alternativa naquela parede poderei passar para o lado de fora, onde terei vantagem.

 Uso a última opção que me resta: levanto novamente com um de meus movimentos treinados e jogo meu corpo, usufruindo de força exagerada, contra a parede, a qual aparenta ser mero arranjo de gesso.

 Abro um buraco na parede e sou jogado ao lado de fora, do segundo andar (visto que subimos as escadas antes de a luta começar) e venho drasticamente de encontro à calçada que contorna o prédio dos escritórios da Dalilah.

 Sem tardar, o oficial me segue, fazendo o uso da indarra na mão para abrir mais espaço ao buraco recém-aberto e passar com posição mais avantajada.

 Adicionalmente as equipes policiais encontram-se exatamente à minha frente: falo de três viaturas.

 — Atirem! — Ordena o agente assim que seu corpo salta do segundo andar para o piso exterior.

 Sou forçado a abusar de minha energia restante, intermeando aplicar o sano em minhas feridas: o peito, o rosto e a pancada da queda; e ainda a indarra aplicada à velocidade empregada para sair do local desembestadamente.

 Corro de modo embasbacado, porém eficiente. Saio do local levando apenas um tiro lateral que defendo usando o braço direito. Mais tarefa posterior para o sano.

 A figura singular que é o formidável adversário começa usando também de sua velocidade visando perseguição, mas desiste em poucos instantes, após avistar que posso usar de técnicas de salto adquiridas durante meu treino shinobi para aumentar minha distância percorrida, enquanto para sua celeridade sobre-humana ele apenas se baseia na técnica básica da indarra ensinada aos integrantes do DCAE.

 — Tsc... — O escuto suspirar de longe, após a desistência.

 Ao olhar brevemente no reflexo da ponta de minha katana, o vejo parado em cima do muro que separa o terreno da transportadora e o terreno vizinho. Mas neste momento já estou distante: tendo já subido no muro, saltado para o telhado vizinho e ainda para a direção da rua, agora percorrendo o caminho do pavimento da rua de trás.

 Mesmo que ferido, consigo terminar a missão com sucesso.

 Ciente de que as viaturas do DCAE e do DEA, que estavam lá paradas, iniciariam um percurso de perseguição, sou obrigado a recorrer aos telhados novamente, impossibilitando o alcance com busca viária. Sou obrigado a abusar da indarra até o retorno ao Hotel Pinnacle.

 Claro, tomo o cuidado de estar certo de meu isolamento ao adentrar a portaria. Pelo bem de minha senhora jamais posso dar-me o luxo de ser visto fazendo ali entrada.

 Falando nela, Cayme não se encontra ali. Ainda está ocupada com seus afazeres referentes ao sumiço de Alexander Sprohic.

 Ignoro a camareira e vou direto à ala secreta, na direção da suíte. Me olho diante do espelho. Minha imagem está acabada. Minhas vestes estão sujas e rasgadas. Nas costas... Nos braços... Meu rosto está inchado e meu cabelo escorre grudado sobre minha testa.

 De tanto usar de minha força sobre-humana começo a sentir mal-estar. Devo passar a concentrar-me a sanar minhas feridas, mas não encontro forças em meu biológico para tal. O máximo que consigo é uma versão fraca do essencial eretismo.

 E mesmo assim dou-me por satisfeito por ter colocado as mãos no convite.

 Pelo menos por um momento...

 Tateio em meu bolso e tomo um susto.

 “O” susto.

 O peso é o mesmo, mas a sensação é diferente... O papel é diferente. O tato não se deixa enganar.

 Retiro o papel do bolso e me desaponto ao ver que é uma cópia impressa do papel da Arena, sem absolutamente nada escrito.

 É uma farsa feita para parecer com o convite de certa distância.

 Balanço aquele papel inútil para cima e para baixo e constato afirmativamente: o peso é exatamente igual ao peso do papel tomado da gaveta após desacordar aquele encarregado e seus subordinados.

 Por acaso não vi que era só pedaço de papel quando abri a gaveta e o coloquei no bolso? Não... Certamente aquele que tomei da gaveta era o papel especial emitido pela central de casos criminosos interestelares de Arena. Jamais deixaria de perceber detalhe deveras importante... E também confirmo que o papel que se encontra a minha frente difere em conteúdo do anterior, dado que não há nada escrito no mesmo.

 Atiro o papel sem utilidade ao chão e bufo.

 Fui enganado!

 Assumi o tempo todo que a meta do caricato tenente do DCAE era me capturar. Tal é minha imagem pré-concebida do papel de justiça atribuído à polícia que ignoro a possibilidade de ele partilhar de minha missão: o apossamento do convite de Arthur Cooper.

 Imagino eu, que a sacada do agente ao me avistar portando o conteúdo no bolso do sobretudo foi a seguinte:

 Em primeira vista fez contato comigo sob o pretexto de troca de golpes, troca esta comum em encontros violentos de seres paranormais para fins de análise de velocidade, habilidade e força adversária. Entretanto, em seu caso o contato visava achar o exato bolso onde guardava comigo o convite que tomei da gaveta da sala.

 Ele devia estar portando consigo cópia falsa do convite que trouxe do DCAE.

 Em momento posterior, o delegado roliço efetuou a troca do original e da cópia que carregava consigo sem minha percepção. O adversário criou oportunidades de contato para que conseguisse fazer a troca sob o pretexto de um ataque. Há três momentos que deve ter criado artificialmente para fazer a troca: quando me contra-atacou de modo repentino jogando seu corpo sobre o meu após eu fazer menção do uso de Shoushiryu; quando a sala estava esfumaçada e ele me golpeou visando me derrubar, quando por sorte antecipei sua possibilidade de enxergar sob a neblina; e quando usei do movimento de meu pulo para arremessar dardo por debaixo de meu sobretudo. Acredito eu que a troca foi feita no terceiro momento, visto que não me encontrava em estado mental de perfeita concentração, e estava ocupado tanto em desviar de seu ataque quanto de usar a oportunidade para o arremesso.

 Quanto às propriedades físicas do papel falso acredito que pelo fato de o departamento da polícia ter tido posse do original por certo tempo, deva ser possível terem reproduzido cópias idênticas em formato e peso, para que pudessem ser trocadas em situações de luta.

 Não percebi a diferença durante o resto da batalha, pois ao tatear meu bolso, senti o mesmo peso e formato de papel dentro do mesmo, e então verifico a falsidade somente naquele momento posterior, quando a operação policial já acabou.

 O bigodudo paranormal do DCAE antecipou minha fuga durante a batalha e tomou medidas para roubar de mim o meu objetivo, conquistando o seu.

 Fui enganado!

 Seu objetivo nunca foi minha captura.

 Olhando minha figura fracassada no espelho, abatida, com sangue escorrido... Meditando sobre o fato de não ter acertado um golpe sequer no oponente dadas as condições, tudo o que consigo pensar é:

“Como posso fazer para retribuir tamanha falha em prol de minha senhora?”

 A ideia cogitada é retornar ao local da transação e tomar novamente à força o convite das mãos da polícia.

 Afinal, após findada a luta, a transação ainda está por começar.

 A operação policial em Dalilah ainda não acabou.



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