Hinderman Brasileira

Autor(a): Oliver K.


Volume 1

Capítulo 16.1: Queima De Arquivo

 — Um mexerico?

 — Sim, meu bebê. Um mexerico. Ou vai me dizer que nunca ouviu a expressão? — Pergunta minha senhora, enquanto depreciadamente estende uma das mãos à minha direção — Cochichos. Boatos. Balela. Falatórios. É isso que significa.

 Minha senhora alcança o copo de vinho e após breve pausa torna a explanar-me:

 — Às vezes são mentiras, é verdade. Muitas vezes são. Mas às vezes também podem ser verdade. E isso não é mentira.

 — Eu apenas quis dizer, minha senhora... Que não sei de que trata o mexerico.

 —Ah era isso? Deveria ter dito antes. Como eu ia dizendo, a história é que existe um lobisomem atacando pessoas nesta cidade. Nossa pacata e segura Sproustown está sendo aterrorizada pelo mesmo monstro que comeu a vó da chapeuzinho. Pode acreditar em um conto como esse?

 Minha senhora esbanja sarcasmo. Claramente ambos estamos muito bem cientes da veracidade da existência dos lobisomens.

 — E este boato foi espalhado por...?

 — A fonte alega que foi o DCAE. Ahhh! — Minha senhora deixa-se aliviar em um suspiro na medida que espreguiça-se, levantando de seu confortável assento — Se foi o DCAE a fonte é confiável, mas a fonte que alega que foi o DCAE não é confiável nesse sentido. Então pode ser que seja verdade ou pode ser que não. Por isso... Um boato.

 — E minha senhora deseja que eu investigue a respeito?

 Ela encontra-se em ar de dúvida.

 — Não... Acho que não é necessário. Ainda não, pelo menos. Entretanto iremos manter isso nas costas de nossa mente. Para caso precisarmos depois. O que quero que você faça é outra coisa. Que tome uma atitude baseada em um fato real. Algo de concreto que realmente aconteceu. E isto eu sei que realmente aconteceu.

 Ponho-me a ouvir o restante de sua narrativa.

 — Sabe que após a... Ahem... “Infeliz” morte de Jim Sanford, do DEA, todos os departamentos responsáveis resolveram investigar Jeffrey Sprohic mais a fundo? Foram umas três equipes até a penitenciária de Silverbay. A de Howard, a de Sarah Harmon... E a terceira? Não sei ao certo.

 — Só faz sentido, minha senhora. A morte de Sanford deixa claro que Sprohic não é o culpado da morte de McMiller. Apesar de ter sido flagrado roubando as joias no mesmo dia, tal evento foi provocado por alguém que queria se ver livre da culpa.

 Minha senhora me lança um olhar zombeteiro.

 — “Provocado por alguém...” Ora, se não somos sigilosos... Você fala como se não soubesse quem foi esse alguém.

 — Ainda não concebo a necessidade de a senhora ter assassinado um contador arbitrário naquele dia. Por acaso ele estava envolvido com as vendas ilícitas de Deluxes?

 — Não. Como você disse: foi um assassinato arbitrário. Eu estava com fome. Um vampiro tem que comer. Nom-nom.

 Minha senhora esclarece com a simplicidade de uma criança.

 Eu já sabia que ela era a causadora do ocorrido, mas evito ficar falando a respeito. Estas coisas não são polidas quando proferidas, mesmo que só entre nós.

 — E se os policiais fuxicarem muito sobre o assunto... Acabarão descobrindo algo que não devem. Esta ideia certamente não me agrada. Venha Shinobi, meu bebê. Vamos até a varanda.

 Minha senhora adora banhar-se ao luar enquanto na varanda do hotel Pinnacle, o nosso atual esconderijo.

 — Entende o que quero dizer?

 — Entendo. Contudo poderia jurar, minha senhora, que Sprohic pensa que quem preparou a cilada para ele foi Verde, o mesmo que o contratou para o roubo de joias. Afinal, ele foi indicado para o assalto com o propósito de livrar seu irmão de uma dívida. Foi um pretexto de perdão. Seu irmão normalmente teria sido caçado por mercenários e morto, por ficar devendo a um traficante. Sendo assim só faz todo o sentido concluir que...

 — Sim, sim... Sim... — Minha senhora dispensa meus comentários com gestos verticais repetidos de suas lindas mãos — Eu já sei de tudo isso. Eu não tenho medo do testemunho do Jeffrey Sprohic. Mas existe alguém mais que sabe a verdade. Ou melhor, que sabe parcialmente a verdade. E se há alguém que é bom em inferir a verdade toda a partir da parcial é o enxerido do DCAE, então não posso deixar essa meia verdade chegar aos ouvidos deles.

 — Alguém que sabe meia verdade?

 — Você comentou sobre um tal irmão do Sprohic?

 — Sim. O irmão mais novo. O devedor. É um cliente do Verde...

 — Eu sei. Você tem que parar de assumir que eu não sei sobre os fatos, Shinobi. Se há alguém que não conhece o irmão do Sprohic aqui é você. Como eu ia dizendo... Este homem que você mencionou, por ser cliente do Verde, sabe muito mais do que parece. Eu sei disso porque sei muito bem tudo o que ele está fazendo... Inclusive sei onde ele estava esse tempo todo.

 — O tempo todo? — Sou legitimamente pego de surpresa — Pensava eu que ele tinha saído da cidade temporariamente para fugir de Verde. Não se ouve falar nele desde o dia do assalto à joalheria.

 — É. Mas ele ainda está em Sproustown — Minha senhora joga-se na cadeira de sol, colocada na varanda, virada para a lua — E ele sabe que não foi o Verde quem matou Gerald McMiller. Ele está acompanhando cada movimento do Verde enquanto se mantém escondido.

 — Minha senhora insinua que Alexander Sprohic tem espionado os movimentos do Verde aqui na cidade enquanto se esconde do mesmo?

 — Entende o que quero dizer? E se agora que a atenção está sobre o irmão dele, ele resolve dar as caras novamente e tenta livrar seu irmão da cadeia apresentando informações à polícia de que o zumbi grande e bobo era inocente desde o princípio? Nestas condições em que a polícia está... Iria acreditar nisso agora. Não acreditaria antes, mas acreditaria agora... E assim a atenção se voltaria para mim. Para “nós”. O DCAE descobriria que existe uma outra aberração comendo as pessoas nas plácidas noites de Sproustown.

 — Não entendo como a senhora fica sabendo de tantas coisas como essas. Com que tipo de finesse conseguiu monitorar os movimentos até mesmo do irmão de Sprohic?

 Minha senhora ri-se.

 — Este Shinobi... É o poder de nossos contatos. Achou mesmo que poderíamos montar um grupo de venda de Deluxes sem ter contatos? Não vem ao caso. O fato é que sei, e de informação confiável, que Alexander Sprohic, o irmão de nosso querido bode expiatório, está mais que ciente que Verde não pensava em acusar seu irmão de assassinato naquele dia.

 — Presumo que o trabalho seja dar um jeito de silenciar Alexander?

 — Pim pom! Direto ao ponto! Esse é o Shinobi que conheço. Como sei a localização dele farei seu serviço mais fácil. É só ir lá e fazer sua parte. Quem sabe podemos guardá-lo na geladeira, pois agora que paro para pensar, preciso de comida também para a próxima semana.

 — Entendo... Unindo assim o útil ao agradável... Será uma honra, minha senhora. Contudo... O DCAE já não irá suspeitar que Verde não foi o responsável pelo assassinato? Agora que Jim Sanford foi encontrado morto com o mesmo tipo de ferida... Supor que a de antes tenha sido forjada por Verde implicaria que esta também foi, não? Ou implicaria que nenhuma das duas foi. Ambas alternativas lançam dúvidas sobre a hipótese de que Verde tenha realmente algo a ver com o caso.

 Ainda penso que minha senhora foi precipitada a deixar o jovem investigador do DEA ferido exatamente da mesma forma exposto no parque daquele jeito.

 — O que está dizendo? Verde ainda é o principal suspeito. Lembra que ele contratou mercenários para procurar o convite na casa de Cooper e também contratou mais mercenários para roubar o convite direto do prédio do DCAE? O departamento naturalmente pensará que tudo está interligado. — Minha senhora encolhe-se na cadeira de modo a ficar mais confortável — Verde está com o convite. E por isso está cuidando de pessoas que possam interferir em sua saga ao torneio de Uahmyr. — A bela vampira faz um gesto condescendente com os ombros — Primeiro um zumbi paranormal... Poderia ser que ele tivesse descoberto que ele trabalhava para outra gangue, não sei... E agora um agente do DEA que estava metido com a gangue de Wilkinson... Tudo se encaixa... Na visão deles Verde está descartando qualquer um que impeça seu caminho... A polícia arrumará um motivo. Quando a polícia quer acreditar em alguma coisa ela a tornam crível.

 — Sanford? Metido com a gangue de Wilkinson?

 — Ora, se não somos ignorantes... Meu bebê... Vai dizer que não sabia nem isso?

 — Não sou exatamente informado deste tipo de coisa a não ser por ti, minha senhora.

 Ela passa a mão carinhosamente sobre meu braço.

 — Eu sei... Poderia pegar uma coberta para mim? E uma cadeira para você. Sinta-se em casa.

 Faço conforme ela pede.

 Após meu retorno outra questão me surge à mente. Não sou mais que mero subordinado, entendo que não cabe a mim a ciência de todos os fatos. Mas quando tenho momentos como aquele em que posso satisfazer minha mera curiosidade, aproveito. Também porque quero dividir o tempo com minha senhora.

 — Disseste que Verde contratou duas vezes mercenários para procurar convites em locais diferentes...

 Ela me interrompe com outro riso.

 — Aquilo foi uma jogada e tanto, não? Não te disse que o trabalho tinha que ser feito por dois mercenários que não você?

 Como eu suspeitei...

 — Então foi por isso... Eu passei o contato deles para você aquele dia e não ouvi mais a respeito.

 — Uma pena. O Bad Boy parecia ser tão competente... Pierre sim que não era de nada. Mas Bad Boy poderia ter escapado da polícia se quisesse. Uma pena. Gostaria de contratá-lo mais vezes.

 Bad Boy e Pierre eram meros codinomes de seres paranormais. Tais quais Shinobi, por exemplo. Se aqueles seres eram alienígenas seus verdadeiros nomes eram mais que certamente impronunciáveis.

 — O papel deles era fazer a polícia acreditar que Verde estava na ativa o tempo todo? Por isso me aconselhou omitir que eu me chamava Shinobi quando paguei a eles adiantado?

 — Pim pom! Tudo está fazendo sentido em sua pequena cabeça, não? Você está tão longe, meu bebê... Chegue mais perto.

 Aproximo-me dela com minha cadeira.

 — É importante que este trabalho seja feito de maneira discreta e competente. É um trabalho de primeira mão. Por isso estou confiando-o a você. Você entende, não?

 Nem preciso confirmar.

 — Aceitaria sempre qualquer encargo teu, minha senhora. Basta me dizer o que tenho que fazer.

 — Ótimo. Então... Poderia ser agora? Receio que já estejamos um pouco atrasados. — Minha senhora olha para as estrelas enquanto fala. Uma de suas finesses é calcular exatamente a hora observando ou o sol ou as estrelas. Se ao observar os céus imagina que seja um horário, deve ser a pontual realidade.

 — Algo está prestes a acontecer de errado?

 — Sim, Shinobi. Infelizmente não fui a única a acabar sabendo da localização de Alexander Sprohic... “Alexander Sprohic...” Que nome desnecessariamente comprido. Vou chamá-lo apenas de Alex.

 — Não gosto de minha senhora inventando apelidos para as outras pessoas.

 Ela me dá um sorriso sádico.

 — Com inveja, Jarbas? Ele será apenas uma refeição, afinal de contas. — Ela se levanta brevemente e me entrega um aparelho gravador que estava em seu bolso. Estendo minha mão e o seguro, sem saber o que fazer.

 — O que está esperando? Aperte o botão. Está na parte boa.

 Ligo o aparelho e duas vozes se ouvem, dialogando entre si. Uma masculina e uma feminina:

 — Quer dizer que eles disseram que o irmão do Sprohic se esconde nesse endereço e tem tido encontros periódicos com estas pessoas? E então? Onde vai ser o próximo encontro?

 — East Elmsley str, 362. Depois das dez da noite.

 — E ele estará lá com certeza, Ewalyn?

 — Muito mais que provável. Ele não pode sair de lá. Está sendo procurado pelo Verde e por seus comparsas. Isto é, de acordo com o que Pierre disse...

 — Com sorte poderíamos encontrar algum desses chamados Verdes e capturá-los para ouvir o que tem a dizer.

 — Hum... Precisaríamos de mais pessoal, não? — Indaga uma terceira voz na gravação.

 — Mesmo que tivéssemos o bastante seria impossível... Até onde eu sei. Quando mandamos Chapman marcar o encontro dissemos para ele fingir que era do Dragão e não do Verde. O Verde não sabe onde ele está, lembram? Ele é cliente de outro distribuidor agora.

 — Mas o Dragão vai estar lá então?

 — Bem... Não... Quer dizer, acho que não... Foi o Chapman quem marcou. E ele não deve ter aproveitado nenhuma escala que já existia, mas inventado uma e dado uma desculpa. O coitado acreditou.

 — Esperamos que tenha acreditado... Sendo assim... É só ir e capturar?

 — Só ir e capturar. Sem dificuldade. Bem, agora... — A voz começa a ficar engolida por um chiado contínuo e a gravação desaparece.

 — Dez da noite, East Elmsley Street, 362. Se é assim, eu devo sair daqui agora.

 Minha senhora consente com a cabeça. Desligo o aparelho e o coloco sobre a pequena mesa de plástico na varanda.

 Estou tomado de preocupação e tenho verdades a lhe dizer. Apesar de ser minha senhora, toma atitudes descomedidamente irresponsáveis. Ela tem a coragem de me avisar tudo em tom tão frívolo e velocidade tão lenta daquela maneira? E se perdêssemos o horário?

 Sou obrigado a partir sem dizer nada. Minha senhora deve ter calculado o tempo exato para que eu tivesse que sair do hotel sem que desse tempo de ela ouvir meus protestos a seu contrassenso. Dirijo-me simplesmente ao local combinado o mais rápido possível.

 Afinal de contas são nove e quarenta.



Comentários