Hinderman Brasileira

Autor(a): Oliver K.


Volume 1

Capítulo 14.2: Doppelganger

 Filliard Summit é o menor bairro de Sproustown, e provavelmente o que tem a fama de mais perigoso, devido ao número de usuários de Deluxes que assaltam e roubam para sustentar seu vício.

 Seu outro ônus é fazer o papel do lugar mais feio da cidade. Mal iluminado, sujo, claustrofóbico, cheio de buracos na pista e na calçada.

 A visão do que era para ter sido o Summit Community Center e que acabou como mero prédio abandonado era pavorosa. Um quarteirão grande com uma estrutura suja e caindo aos pedaços, com o mato invadindo agora a rua, pois o prédio ele já tinha dominado fazia muito tempo.

 Ao menos era de noite, então não tínhamos muita visão daquele desserviço da prefeitura.

 Eram já dez e meia da noite — Sim, a Jane iria brigar comigo novamente mais tarde quando eu chegasse em casa — e estávamos os três dentro do carro decidindo o que fazer. Supostamente os dois suspeitos estariam em algum lugar dentro do prédio, conforme o combinado, ou ao menos conforme o que Chapman disse que foi combinado.

 Nas fotos eu vi um sujeito com cabelo grande e embaraçado com uma aparência suja, típica de um usuário de Deluxes e um outro homem já mais velho, provavelmente da minha idade, com cabelo curto e aparência melhor. Este último era mais encorpado e nas fotos usava sempre uma espécie de roupas de jogging ou de qualquer outro esporte desses. De qualquer forma eu saberia reconhecer qualquer um deles quando os visse naquela noite.

 — Então fica combinado: eu e Joey vamos entrar, e você — disse eu para Ewalyn — espera na viatura caso aconteça alguma coisa. Se algum deles fugir será seu papel ir atrás, ok?

 — Que pena... Eu queria tanto fazer parte da “ação”.

 Joey ergueu as sobrancelhas complacentemente.

 — Alguém tem que ficar no carro nesse tipo de operação. Melhor não arriscar mais uma fuga. E eu e o tenente temos um pouco mais de experiência trabalhando como parceiros. Ainda bem que decidimos vir em três. Então não tem escapatória. Ou os suspeitos lidam com a dupla formidável ou são perseguidos por você aqui fora.

 — Então... Vamos entrar. Uma cilada nos espera.

 — Por que cilada? Não vai dizer que você acha que Chapman armou uma cilada hã, tenente?

 — Eu não disse isso.

 — Então por que teria alguma cilada aqui?

 — Porque eles obviamente viram a viatura da janela?

 — Mas nem é um carro de polícia — Era um Utopia preto, modelo novo. Era uma viatura para investigação secreta, com uma sirene de adaptador, que ficava no porta-luvas. Se não a usássemos nada indicava que era da polícia por fora.

 — Mas eles trabalham para o tráfico. Se três adultos estacionam nesta área remota por mais de três minutos, bem na hora que eles estão esperando um cliente, vão pensar o que?

 Joey deu de ombros, realmente não tinha muito o que alguém de fora pensar a não ser que éramos um carro de Polícia, então Joey se conformou, repetindo minha frase:

 — Então, tenente... Vamos entrar. Uma cilada nos espera.

 Descemos e entramos pela entrada principal. Apesar de estar completamente abandonada, a estrutura ainda não havia caído. Subimos uma escadaria e chegamos a uma grande área que parecia projetada para ser uma recepção.

 O interior do prédio era totalmente escuro. Acendi um cigarro lá dentro, e então disse à Joey:

 — Ligue sua lanterna. Não vamos nos separar até achar um deles.

 Não deu nem tempo de ele me obedecer. Um vulto veio de uma das salas do corredor à nossa direita, movendo-se numa exorbitante velocidade, na nossa direção. Estávamos virados para o outro lado, e não estávamos esperando um ataque surpresa. Joey não conseguiu desviar do ataque a tempo.

 Era o baixinho cabeludo da foto, ele veio correndo e bateu de ombro, com uma posição lateral. Uma atitude carateca, talvez?

Joey, conforme esperado, caiu no chão. Pensei que o cabeludo aproveitaria a oportunidade para pisar em seu rosto, tirando-o da luta de uma vez. Se o tivesse feito, eu teria apenas o nocauteado por trás. Mas ele estava consciente da minha intenção e investiu em mim, visando acabar logo comigo antes que Joey se levantasse.

 Ele assumiu uma posição lateral, para minimizar seus pontos fracos, posição parecida com Krav Maga.

 O mais rápido que pôde, tentou iniciar uma sequência de golpes, pois precisava ganhar tempo antes que Joey levantasse. Ele deu um soco. Bloqueei. Antes do segundo ele estava no chão.

 Quando ele derrubou Joey já tive uma ideia de sua velocidade. Não era exatamente grande coisa. Por mais versado que fosse em seu estilo, sem a velocidade necessária consegui intermear meu ataque facilmente enquanto ele alternou um soco para o outro. Apenas tive que usar a indarra para conseguir mais impulso e “bam”, ele veio ao chão.

 Enquanto isso Joey tinha se levantado.

 O cabeludo, ao chão, tentou fazer um movimento rasteiro, mas eu pisei em seu rosto, o nocauteando.

 — Prenda ele.

 Joey retirou algemas de seu cinto e prendeu o suspeito, colocando primeiro seus braços para trás.

 — O que fazemos? Levamos ele ao carro? E se o outro escapar pelo telhado ou algo assim?

 — Shh!

 Ouvimos barulhos de passos do andar de cima.

 Era fácil ir ao andar de cima: havia uma escada cerca de oito metros à minha esquerda, após o buraco que deveria ser da porta se o hospital tivesse realmente sido construído. Julgando pelo barulho ele não estava muito longe, bastava subir a escada e eu me depararia com ele.

 O ideal seria levarmos o cabeludo no carro os dois juntos e depois voltarmos, mas agora ele estava muito perto. Fiz sinal para irmos.

 Joey estava há cerca de uns doze metros de mim, basicamente do outro lado do cômodo. Era uma sala grande, pois como eu disse: provavelmente na planta original era para ser de recepção ou algo do tipo.

 Me virei e comecei a subir a escada lentamente, ouvi Joey vindo junto atrás de mim, mas lembre-se que ele estava um pouco longe.

 Então o sujeito que aparentemente tínhamos nocauteado deslizou as algemas para fora de seus braços, como que os afinando até que elas saíssem, engrossou os braços ao estado original, e saltou usando de grande impulso, derrubando Joey por trás uma segunda vez. Tudo aconteceu assim, de repente.

 Ao mesmo tempo ouvi um tiro. Veio lá de cima.

 Não havia tempo para pensar. Corri para o andar de cima. Joey gritou poucos centésimos depois de eu tomar a decisão:

 — Vá! Eu cuido desse aqui!

 Era para ser uma sugestão, visando prevenir-me de decidir ajudá-lo. Ele fez isso, pois voltar agora deixaria vulnerável nossa retaguarda, o que seria uma péssima atitude, visto que o sujeito do andar de cima estava armado e estava perto. Contudo sua sugestão acabou sendo apenas um incentivo, pois eu já tinha decidido deixar o cabeludo para ele para começo de conversa. Tudo bem que ele estava no chão, mas eu ainda acreditava no Joey.

 Uma vez no andar de cima enxerguei o homem das calças de jogging e um agasalho esportivo. Ele era um pouco mais encorpado que eu, tinha também quase o mesmo tamanho. Ele atirou na minha direção, mas eu desviei a tempo.

 Desviar um tiro não é tarefa fácil nem mesmo para um homem que permaneceu nove anos no treinamento beta. A velocidade de uma bala excede 1000 quilômetros por hora, então se tentar desviá-la enquanto estiver no ar já será tarde demais. Existem dois métodos eficientes: um é usado por especialistas humanos comuns que não conseguem impulsionar seu corpo com a indarra: mover-se o tempo todo, evitando assim ser atingindo usando como base a falta de perícia do adversário. Mas esse método embora eficiente não é cem por cento confiável. Mais confiável é saber com exatidão a trajetória da bala e preparar-se para jogar o corpo na direção contrária na hora certa. Este método requer muito treino e só é válido para alguém que consegue movimentar seu corpo a uma velocidade extrema com impulso de indarra: um ser paranormal.

 Basicamente o que faço é analisar a trajetória da bala comparando a direção do cano da mesma com a direção de meu corpo e mantê-lo virado de lado, minimizando o ângulo de acerto, então apenas movimentando-o com indarra de acordo a desviar o projétil todo assim que ele é disparado. A parte mais difícil é ter a reação no momento que a cápsula começa a sair da culatra e não muitos milissegundos depois, isso requer um tempo de reação mínimo no olhar de quem executa a manobra. Esse método embora arriscado, uma vez masterizado é cem por cento confiável, desde que haja só um atirador e desde que eu esteja acompanhando a trajetória do cano da arma com o olhar.

 O termo para desviar de uma bala pelo método da indarra é “diagonal”.

 Assim que me viu executar a “diagonal”, ao invés de continuar atirando preferiu abandonar o local e correr no máximo da velocidade que podia até o terraço, o que fazia mais sentido que gastar mais balas desnecessariamente.

 Eu sabia que ele iria para o terraço, pois assim na visão dele eu seria encurralado, então não tive pressa. Meu cigarro havia sido derrubado na luta contra o sujeito do cabelo, então resolvi acender mais um. Exalei fumaça e então me dirigi até lá em cima andando normalmente.

 As escadas ficavam quase todas uma ao lado da outra e só havia cinco andares para subir. Chegando lá vi o sujeito segurando um pedaço de pau. De todas as armas dentre as quais poderia escolher para me esperar lá em cima, resolveu que um pedaço de pau seria o suficiente.

 — O que foi? Não vai saltar prédio abaixo pelos telhados? Assim como seu amigo alienígena em Little Quarry?

 — Não preciso... Agora você está encurralado. — Ele nunca deixou claro se realmente conhecia o alienígena da casa dos Johnson, aquilo era apenas um palpite meu.

 Joguei meu cigarro ainda aceso no chão, logo à frente dele.

 Caminhei em sua direção com minha velocidade normal, sem apressar o passo, assim como fiz quando enfrentei Sprohic. A intensidade de seu ductu sugeria que não se deixaria acabar em um só golpe como no caso do zumbi, entretanto.

 Quando estava a uma distância segura ambos avançamos com velocidade e trocamos golpes. Ele era bom. Consegui bloquear seus ataques, mas mesmo assim eles eram capazes de deixar marcas em meus braços. Sua velocidade era um pouco menor que a minha, mas a técnica e a força eram superiores.

 Quando vi que o negócio ia ficar feio saltei para trás. Nos encaramos por um instante.

 — Melhor se entregar. Seu amigo cabeludo já está na viatura a essa altura.

 O sujeito deu um risinho de desdém. Segurou o pedaço de pau à altura do joelho e se agachou como que em uma espécie de pose de luta. Ele não tinha mostrado ainda porque usaria aquele pedaço de pau.

 Avancei devagarzinho e ele acompanhou-me mantendo a distância para trás. Parecia que tinha algo em mente. Deixei-o recuar até que ficasse mais ou menos no ponto inicial, onde eu havia jogado o cigarro, e depois avancei novamente, arriscando mais uma troca de golpes.

 Mas ele tinha mesmo uma cilada preparada.

 Enquanto eu estava no ar ele jogou — provavelmente com toda a força de sua indarra — o pedaço de pau em uma coluna que estava no meio do terraço. Creio que a coluna que era para ser onde ficaria a fiação se o hospital tivesse sido terminado.

 A coluna caiu em cima de mim, e como eu estava no ar não consegui desviar a tempo e vim ao chão de peito, de costas para ele, me retorcendo desengonçadamente. Não tinha doído porque eu sou um humano alterado, mas claramente ele tinha a vantagem agora, estando de pé enquanto eu me encontrava deitado e de costas.

 Ao invés de terminar-me com o típico pisão — o pisão com a indarra nocauteia qualquer um, se este não estiver defendendo o rosto — ele retirou novamente a pistola do bolso e carregou-a, apontando para mim.

 — Agora... Você está encurralado. Desembuche... O maconheiro era um policial?

 Ha! O “maconheiro”! Ele se referia ao Chapman. Quase ri do termo.

 — Você vai fazer o que? Me matar aqui?

 — Vamos fazer uma troca. Você pelo Pierre.

 Devia estar se referindo ao cabeludo.

 — Então admite que ele vai perder para o Joey?

 — Não preciso ser perito em ductu para adivinhar o que vai acontecer... O Pierre não é especialista em lutas. Não sou um iniciante. Essa coluna aqui? — Apontou para as pedras debaixo de mim — Deixamos ela solta há mais de uma semana atrás, pronta para capturar qualquer fuxiqueiro. Que bom que veio a calhar. Agora, senhor policial, mãos para trás, vamos colocar em você as suas algemas.

 Ouvi uma vibração do bolso dele. Ele pegou seu celular e ouviu uma voz do outro lado da linha. Ele fez um “aham” e desligou. Estava segurando a pistola apontada para baixo enquanto segurava o celular. Eu estava de costas, mas com a cabeça ligeiramente virada para o lado, para obter visão do que ele estava fazendo. Eu não podia me virar completamente porque obviamente se o fizesse ele tomaria uma providência. Tinha que permanecer naquela posição.

 — Ouviu isso? O Pierre deixou o seu amigo desmaiado no chão do térreo e foi direto para o carro. Parece que tiramos a sorte grande... Estranho não? Uma hora você acha que está com azar e na outra parece que tem sorte. Você sabe... Eu sou alguém que costuma ter bastante sorte. Eu me vejo como o herói da história aqui... Começo lutando, começo encurralado pela polícia, meu amigo começa perdendo... Mas em uma onda inesperada de sorte acabo virando o jogo.

 Parecia que o homem aficionado por jogging adorava falar quando estava com vantagem. Ele apontou novamente a pistola na minha direção.

 — Diga adeus, senhor policial.

 — Vai matar um policial? Tem certeza? Soa meio... Perigoso.

 — Me desculpe, mas... Não é que eu queira fazer isso... Mas agora vocês já viram nosso rosto... É melhor matá-los e continuar invisíveis. Mesmo que isso tenha alta repercussão.

 — Mesmo que todo mundo no departamento já tenha visto suas fotos e elas estejam disponíveis nos arquivos?

 A expressão dele mudou, visivelmente estava ficando indeciso. Revirei-me devagarzinho para tentar obter uma posição menos desavantajada.

 Ele me chutou na altura do peito. Soltei um bramido abafado. Aquele desgraçado.

 — Não tente bancar o herói solitário, senhor policial. Como pode ver não é como nos filmes. Bancar o herói é suicídio. Na vida real o herói é aquele que vence. Ou você é forte ou você é fraco. Ou você está à sorte ou você está ao azar. Apenas isso. — Ele chegou mais perto e mirou direto no meu rosto  — Me desculpe, mas... Não estou mudando de ideia. Ainda me parece o melhor a fazer.

Ri alto.

 — O que é engraçado, senhor policial?

 — Tem razão, eu não sou uma porcaria de herói... Eu sou policial. E tem uma coisa que você esqueceu...

 Ele me olhava intrigadamente.

 — Policiais trabalham em conjunto, não são heróis solitários.

 — Se refere ao seu amigo desmaiado no terraço?

 Houve uma ruptura de pedras e o sujeito com roupas de jogging não teve tempo de reação. Eram as pedras abaixo dele que estavam caindo, fazendo-o perder o balanço. Mesmo se ele tivesse disparado a arma, por já ter perdido a postura, o tiro acabaria desviando e atingindo qualquer lugar acima de minha cabeça. Ele não atirou, entretanto.

 O sujeito caiu e seu corpo brandiu contra o cimento do andar abaixo. De pé, ao lado dele encontrava-se Ewalyn, apontando uma arma para ele e carregando mais algemas. Ela tinha quebrado o teto.

 — Boa! — Disse eu — Mas eu preferiria que você tivesse sido um pouco mais rápida.

 — Ele não ia atirar... Estava esperando para ver se ele falava algo mais de valor. Sabe... Eles tendem a dizer mais quando estão em vantagem.

 — Parece que sua onda de sorte terminou. Mãos para trás.

 Ele obedeceu e colocamos algemas em torno de suas mãos. Ele era legitimamente forte. Fisicamente mais forte que Jeffrey Sprohic, mas agora que havia dois policiais paranormais armados a seu lado e ele estava com as mãos literalmente atadas ele não iria fazer nada esquisito.

 Enquanto descemos o prédio em caminho à viatura, ele ora acompanhava-nos, ora precisávamos empurrá-lo. Percebi que ele olhava bastante aos arredores, procurando onde estaria seu comparsa. Quando passamos pelo terraço nem Joey e nem o tal Pierre estavam mais lá. O que instigava a pergunta sobre se seu amigo havia fugido de carro ou se ele ainda estava por ali arriscando mais uma emboscada.

 — Parece que seu carro ainda está ali.

 O carro no qual os dois tinham vindo era um branco meio sujo que estava a cerca de dez metros atrás do nosso Utopia. Era o único carro fora o nosso estacionado nas redondezas, então dava para saber. Eles poderiam ter planejado fugir de carro quando perceberam que entraríamos no prédio, mas creio que seria uma ação muito arriscada para eles pensarem de última hora, visto que o carro no qual viemos, onde Ewalyn supostamente se encontrava o tempo todo, estava lá perto desde o começo.

 — Será que seu amigo te abandonou? — Perguntei a ele.

 — Cadê o Joey? — Perguntou Ewalyn.

 Era imperceptível, mas seu tom de preocupação era na realidade insincero.

 Porque nós sabíamos a resposta para todas aquelas perguntas. Onde estava Pierre... Onde estava Joey... Apenas o homem algemado não sabia.

 Chegamos ao carro e surpresa: Pierre estava no banco da frente, com o rosto levemente ensanguentado e a cabeça baixa. Joey, no banco do motorista encontrava-se ileso e segurava uma arma na mão. O alienígena cabeludo estava algemado.

 — Mas como? Você não tinha fugido? — Perguntou o homem na roupa de jogging.

 Aquela situação engraçada pedia mais um cigarro.

 Permita-me explicar o que aconteceu desde o começo. Aparentemente parece que Joey venceu sua luta à parte e que Ewalyn apenas adivinhou que eu estava em apuros e me salvou no último momento, como numa espécie de grande coincidência conveniente. Mas nada disso realmente aconteceu. Assim como os dois malfeitores tinham um plano para capturar-nos, que era o da coluna previamente danificada, nós entramos naquele hospital abandonado com uma série de planos para assegurar nossa vitória.

 Primeiro esperamos no carro o suficiente para certificarmo-nos de que o carro branco era mesmo deles, e só então partimos todos os três para a operação: eu e Joey na frente e Ewalyn viria atrás logo depois, quando estivéssemos mantendo ambos ocupados lá dentro. O plano nunca foi de Ewalyn permanecer no carro até o fim. Apenas até a luta começar.

 No outro dia, quando eu e Joey investigamos a casa de Cooper, constatamos que aquele “assalto” havia sido obra de dois seres paranormais: um deles era um alienígena, pois o scanner detectou que sim. Quanto ao outro, o fato de os papéis da gaveta terem sido jogados todas de uma vez deixava uma dica do que seria sua especialidade.

 Ele não estava à procura de nada em especial naquela gaveta, possivelmente porque já sabia que o convite não estaria ali. O motivo não é claro, isso iríamos descobrir no interrogatório, mas o fato é que ele apenas espalhou os papéis para causar uma impressão. Se realmente tivesse procurando algo no meio deles, teria os retirado pouco de cada vez e não jogado tudo só em uma pilha e deixado lá.

 Adicionalmente podíamos tirar mais uma conclusão deste detalhe: o ser que pegou aqueles papéis tinha uma força intrínseca, uma força que não dependia de querer usar a indarra ou não. Era um ser que sempre usava a indarra, pois a força descomunal é parte de sua existência. Não poderia ser uma barata parasita ou um humano alterado, que só usam a indarra quando necessário por exemplo.

 Digo isso porque mesmo que um ser humano comum possua a força necessária para fazer o movimento trivial de pegar uma grande pilha de papeis de uma gaveta e a jogar no chão, dificilmente faria isso deliberadamente por causa do incômodo que isso traria para seus tendões. Alguém que estivesse fazendo esse movimento sem pensar teria inconscientemente separado a pilha me pilhas menores. O que indicava que a pessoa que fez aquele movimento possuía a força como propriedade natural, ou seja, a força era grande a ponto de conseguir pegar um objeto pesado corriqueiramente, sem gastar energia ou fazer muito esforço, sem machucar os tendões. Outra pista que nos levava à mesma conclusão era o fato de eles terem levado a tv de 49 polegadas de Cooper mesmo que tenham saído às pressas do assalto.

 Com isso deduzimos que a dupla era um alienígena e um brutamonte de algum tipo.

 Tendo isso em mente, elaboramos um plano para lutar contra uma dupla de bandidos com esse perfil: o alien e o brutamonte.

 Quando entramos no hospital abandonado nos deparamos com um deles, precisávamos decidir qual dos dois ele era, por isso troquei uns golpes com ele antes de abatê-lo da primeira vez. Como não era muito forte, constatei que ele era o alien. Então usaríamos o plano A: pensado sobre a situação em que lutaríamos primeiro contra o alienígena e o brutamonte apareceria algum momento depois.

 Fingimos que derrotamos o alienígena, cientes que ele se liberaria das algemas usando alguma propriedade nojenta de sua espécie. Se por acaso ele não conseguisse se libertar por ser uma classe particular de alienígena que não tem propriedades elásticas, tanto melhor. Mas estávamos lutando com tal possibilidade em mente, e de fato foi o que aconteceu.

 Joey fingiu estar em desvantagem caindo no segundo ataque e eu parti para a minha parte do plano: distrair o brutamonte e armar o momento especial para Ewalyn surpreendê-lo por trás.

 Ewalyn tinha me contado que ela tem a finesse de distinguir cheiros há dúzias de metros de distância. Por isso o método como estávamos nos comunicando era a fumaça de meu cigarro. Acendi o comunicador e fui fumando, guiando-a ao local onde eu me encontrava.

 Uma vez no terraço, joguei o cigarro aceso no chão, na parte exata onde gostaria que ela quebrasse pelo lado debaixo para surpreender o aficionado por jogging. Note que durante toda nossa luta tomei cuidado para que ele ficasse sempre sobre aquele pedaço original de cimento.

 O plano A fazia suposição de que eu não conseguiria vencê-lo por algum motivo, então usaríamos de alguma distração para Ewalyn fazer sua entrada, que foi o que aconteceu. Fazia mais sentido pensar desta forma, não porque eu fosse ruim de luta, mas porque poderia ser que ele tivesse alguma carta na manga que não antecipamos quando analisamos a casa de Cooper. Afinal eles estavam com a vantagem de lutarem em casa e eu não conhecia nada sobre ele a não ser a suposição da força bruta. Eu não luto tão desengonçadamente. Se eu estivesse mais preocupado em vencê-lo do que deixá-lo em um lugar específico eu provavelmente teria contornado a situação, mas não vem ao caso.

 O fato é que tudo ocorreu como o planejado, e Ewalyn e eu o capturamos com sucesso.

 O que nos leva à última parte do plano. Lembra como eu falei dos doppelgangers? Quer um exemplo de um? O detetive Joey Meyers é um deles.

 No papel, seu “irmão” é também um agente do DCAE, entretanto nunca levamos os dois juntos para uma operação. É arriscado na questão de eles serem avistados pelos cidadãos comuns, contradizendo o bom senso.

 Entretanto ele estava lá naquela noite. Em nosso planejamento consideramos a possibilidade de um dos dois resolver fugir de carro durante — e não antes ou depois — a perseguição. Se Joey acabasse não conseguindo vencer o alienígena depois que eu me separei dele, ou se o alienígena tivesse tentado fugir, seu doppel estaria esperando no carro.

 Esta medida tinha também uma série de outros motivos: primeiro que ambos estariam cientes tanto do que acontecia dentro quanto fora do prédio, pois sua visão era compartilhada. Então, os dois Joeys estariam sempre um passo à frente se um dos dois malfeitores resolvesse escapar.

 Mas a principal razão era o blefe que utilizamos para capturar o cabeludo mais facilmente: o dreno de energia instantâneo. Como eu disse antes, um irmão pode tomar e devolver energia para o outro. Quando isso acontece em batalha, se feito no momento certo, faz parecer que o Joey em batalha tomou dano durante a luta e não por outro motivo. Foi o que aconteceu ali: depois Joey me contou que na hora que o alienígena deu um golpe com a indarra na barriga dele, seu irmão drenou sua energia, e ele veio ao chão. O cabeludo então ligou ao seu comparsa, dizendo algo sobre como havia vencido o policial e iria fugir. Nisso seu irmão esperou-o atrás de seu carro, o branco.

 Logo após que ele saiu do prédio, a energia foi devolvida a Joey e ele se levantou, esperando encurralar o bandido por trás, o que deu certo. Após encurralá-lo, ele e seu irmão levaram o cabeludo preso para a viatura — após desferirem uns golpes em seu rosto, é claro. Porcaria de bandido.

 O irmão doppelganger de Joey encontrava-se no banco de trás. Era exatamente igual a Joey. Mais igual que um irmão gêmeo. Alguém que visse os dois pensaria apenas que são gêmeos idênticos, mas teria a impressão (correta) de que algo estava errado.

 Olhar para doppelgangers drenava sim um pouco de energia do cérebro, conforme na lenda. Eram homólogos demais para ser verdade.

 Ewalyn sentou o homem do jogging no banco de trás, entre si e o irmão do Joey.

 O cabeludo estava no banco da frente e Joey me deixou ir no banco do motorista.

 — Você não vai entrar? Creio que se apertar cabe atrás.

 — Não precisa, tenente. Não vamos mais usar a energia hoje, então acho que vou “fundir”.

 Essa é outra peculiaridade dos doppelgangers. Dois deles podem se “fundir” um com o outro, como se fossem a mesma pessoa. De modo similar podem se separar. Isso pode ser feito a qualquer momento, estando um em uma parte da cidade e outro na outra. Esta é talvez a habilidade mais útil. Se um deles estiver em perigo, pode se “transportar” para o local do outro sem deixar vestígios, através da fusão. Entretanto após uma fusão ou separação, durante aproximadamente dezoito horas eles quase não têm mais energia para usar em qualquer outra função paranormal como indarra, ductu, etc.

 O malfeitor em sua roupa esportiva foi o primeiro a perceber:

 — Então foi tudo planejado? Como sabiam nossas habilidades? O maconheiro que falou?

 — Vocês praticamente as escreveram no chão, no dia do assalto a Cooper. Que sirva de lição para a próxima vez. Bem... Não que haverá uma próxima vez.

 — O que vai acontecer com a gente?

 — Se vocês cooperarem no interrogatório... Poderão pegar uma prisão de casos especiais por aqui. Senão... Serão mandados para a Arena.

 — Melhor contar tudo o que você sabe. — Completou Ewalyn.



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