Hinderman Brasileira

Autor(a): Oliver K.


Volume 1

Capítulo 14.1: Doppelganger

 “Doppelgangers”.

 Já ouviu falar desta lenda? Em algumas crenças é uma segunda existência sua (ou de qualquer pessoa), a qual drena energia da primeira. Na maioria das lendas o corpo original fica muito desgastado se alguma vez se deparar com seu doppelganger. Em outras crenças é uma criatura que toma a aparência de uma pessoa, e convive com a humanidade, vivendo como uma segunda existência desta pessoa. Qual dessas duas lendas é a verdadeira? Nenhuma delas.

 É verdade que existem sim criaturas, ou melhor: seres paranormais, os quais tomam a aparência física de pessoas e existem como se fossem um ser humano normal, o que é abominável. Mas o que a nomenclatura classificadora das dez raças de risco de interesse do DCAE denomina doppelganger é na realidade um defeito de formação humana bem conhecido, que é o caso dos gêmeos siameses.

 Me desculpe se você é daqueles que não suporta ver tais casos descritos como defeitos, mas falando sinceramente? A diferença entre defeito e particularidade é mera questão de nomenclatura. O fato é que gêmeos siameses existem e não acontecem com frequência, então são uma espécie de caso raro. Então por que não dizer “defeito de formação”?

 Gêmeos siameses acontecem em vários tipos: o mais comum é viverem os dois após o nascimento, compartilhando algumas partes do corpo e outras não. Menos comum, mas existente, é um irmão nascer do lado de dentro do outro, desta forma ele age como um parasita do último, mantendo-se vivo até que faltem condições para sobrevivência, o que em geral acontece muito rápido.

 Mas o caso de interesse é o que não aparece nos jornais ou em artigo algum, o caso que só os especialistas em seres paranormais conhecem: acontece quando os gêmeos compartilham o mesmo cérebro, mas nascem em corpos diferentes.

 É claro que não “o mesmo” cérebro no sentido literal da palavra, até mesmo porque ambos os corpos estão separados, mas os cérebros são idênticos no sentido de que todas as formações das células são feitas da mesma forma em ambos corpos: todos os alelos, toda a sequência de DNA, tudo. Então encontramo-nos na seguinte filosofia: o que difere um ser humano do outro? Por que são diferentes? É o jeito como a cadeia de DNA é escrita? Pois até mesmo esta é feita da mesma forma em ambos os corpos dos siameses neste caso especial.

 O ponto é que por serem feitos exatamente da mesma forma, seus cérebros misturam os sentidos recebidos por um corpo e pelo outro, como se tudo acontecesse de uma vez só. E isso acontece em ambos os corpos. Basicamente eles existem como duas entidades de uma vez só. São uma dualidade, como a santíssima trindade exceto que só dois e sem a parte do santo. Existem dois em um e um em dois. Tanto são diferentes como também são a mesma pessoa.

 Esta anormalidade médica é então chamada de doppelganger. São dois (ou um) gêmeos siameses que nasceram desta forma, vivendo como uma e duas pessoas diferentes simultaneamente.

 Para ser classificado como uma raça de interesse do DCAE, o doppelganger deveria possuir vantagens físicas em relação ao ser humano normal, certo? Você se pergunta: como estas se dão neste caso? De várias maneiras. Começarei com o sano: existe a possibilidade de um irmão concentrar suas energias para regenerar um corpo em muito menos tempo: ele concentra toda sua vitalidade na regeneração enquanto o outro corpo concentra-se em fazer as demais funções obrigatórias para a sobrevivência do organismo. Então quando um corpo é machucado pode sarar suas feridas muito rapidamente. Basicamente, para sobreviverem, basta que um dos irmãos esteja perfeitamente bem. O outro irmão pode até estar em coma, desde que vivo, mas por serem dois em um, será como se ambos estivessem bem. Isto porque o irmão em perfeito estado pode usar sua vitalidade para regenerar aquele em estado de coma, e vice-versa quando necessário. Assim eles se ajudam conforme precisam.

 É algo estranho de se pensar, mas é muito mais vantajoso do que se suporia que fosse. À primeira vista parece que apenas iria se regenerar duas vezes mais rápido, mas não: a velocidade é exorbitantemente maior, isso porque um dos irmãos pode concentrar “todo” — e não apenas parte de — seu esforço na regeneração, pois como eu disse, basta que apenas um corpo cumpra as funções necessárias para a sobrevivência de ambos, como a circulação, respiração, e tudo o mais... O outro irmão pode se concentrar em uma coisa só.

 Da mesma forma, a força de ambos corpos pode ser aplicada em um só ataque, o que resultaria na indarra. Mas acontece que esta força somada não é só a força de dois seres humanos normais somadas. Seguindo o mesmo princípio, um corpo pode ficar momentaneamente disfuncional e usar “todo” seu esforço físico no momento do impacto, de modo a auxiliar a potência de cada golpe daquele irmão que está querendo realizar o ataque. Esse detalhe faz com que os golpes de um irmão — desde que esteja lutando sozinho enquanto seu siamês não está em outra luta — sejam muito mais fortes que o normal.

 O eretismo e o ductu também estão presentes no funcionamento peculiar do doppelganger: para suportar dor recebida por um dos corpos basta transferi-la totalmente para o corpo irmão. Se apenas um está envolvido em uma briga pode desta forma evitar sentir fisicamente as dores dos ataques recebidos, transferindo-as para seu irmão. Quanto ao ductu acredita-se que deve ter vindo por processo evolutivo. O que é estranho, já que este não se dá no organismo humano em geral. Em minha opinião os humanos têm sim um grau de ductu, mas muito irrisório para ser notado, assim quando este se acumula duplamente em apenas um dos irmãos, fica grande o suficiente para ser detectado e também detectar a presença de outros seres de igual periculosidade.

 Basicamente esse princípio de um irmão direcionar toda sua funcionalidade em uma coisa só se aplica para todas os demais sistemas corporais, o que torna o doppelganger sim uma raça de interesse.

 Doppelgangers apesar de tudo são humanos comuns, embora não sejam tratados como tais. Eles são mantidos escondidos pelo governo e na maioria das vezes utilizados pelas grandes corporações para serviços que requerem força física além do comum ou para serviços sujos que requerem a mesma pessoa em dois lugares simultâneos, como em espionagem, por exemplo.

 Para se livrar de um doppelganger basta matar os dois irmãos. Ironicamente se um e apenas um deles morrer, este não volta jamais à vida, e o irmão restante fica vivendo como um doppelganger de existência única. Entretanto ao contrário do que seria o natural, sua força e suas demais habilidades não se esvaem, mas permanecem consigo até sua morte, isto é, exceto o sano, pois este precisa dos dois irmãos para ser realizado.

 Você sabe que em geral quando começo discursando sobre uma das raças esta aparece em algum lugar na história. Isto porque escolho sempre para discutir aquela que apareceu por último no decorrer da mesma. Desta vez não é diferente.

 O princípio de tudo aconteceu na quinta feira de manhã, cerca de quarenta e oito horas após Jim Sanford ter sido brutalmente assassinado em Meadow Park. Cole Chapman tinha (finalmente) dado as caras no DCAE, e eu não pude perder a oportunidade para ter uma conversa com aquele sem-vergonha.

 Estávamos no corredor que existia depois da porta de vidro da entrada, aquele mesmo corredor o qual tinha a janela por onde os três alienígenas suspeitos subiram no sábado para obter o convite por meios ilegais.

 — Onde você estava? — Perguntei em tom seco e autoritário. Chapman estava com a mesma jaqueta fedendo a ervas de sempre. Ele me respondeu com sua indiferença intrínseca, como se fosse uma pergunta retórica.

 — Hã? Eu? Investigando, senhor tenente... Investigando.

 — Investigando o que, posso saber?

 — Eu... Estava procurando alguma coisa do caso do Cooper... Ei. O senhor é o tenente, não deveria saber onde seus detetives estão?

 — Sei onde eles deveriam estar. Mas parece que não sei onde estão.

 Me aproximei desconfortavelmente de Chapman. Embora eu não fosse nenhum Sprohic eu era maior e mais forte que ele.

 — Ouvi dizer que você não visitou Crane... Soube o que aconteceu?

 Ele me desviou e tentou entrar na sala passando por trás de mim enquanto respondia:

 — Eu ouvi... Que pena, não? Enviaram um chocolate envenenado para a gaiata.

 — E mesmo sabendo, você não veio a ver? A sua colega de trabalho?

 — Eu tinha bastante coisa para fazer... E vamos esclarecer: não tinha nada que eu pudesse fazer por ela, e para falar a verdade ela nem gosta muito de mim, toda vez parece que está naquela época do mês, sabe? Hah hah — Ele soltou uma risada irritante que falhou no meio da pronúncia. Virou-se e começou a ir em direção à porta da entrada.

 Segurei-o pelo braço. Com a indarra.

 — Ou talvez você não se preocupou em visitá-la porque você mesmo que enviou o veneno para começo de conversa?

 Chapman finalmente mudou sua atitude folieira e me encarou com a mais genuína expressão de estranhamento.

 — Ou aquele tal de Richard Galloway...

 — O Galloway? Foi o Galloway que enviou o chocolate?

 — Você não sabe quem enviou os presentes naquele dia? — Soltei-o vagarosamente.

 — Eu não sei é de nada, senhor tenente... Tudo que fico sabendo é o que comentam aqui.

 — Galloway é amigo seu, entretanto.

 — Ei... Uma correção, senhor tenente: um colega meu. Eu o conheci sim em minhas jornadas nas noites de Sproustown. Mas mesmo que Emma tenha acabado se metendo com ele e eu o veja de vez em quando não diria com todas as palavras que mantemos uma relação de amizade. Mas mesmo assim conheço Galloway o suficiente. Ele não teria enviado nada desse tipo para a namorada dele. Ele está apaixonado...

 — É, mas tudo indica que foi. — Comentei atravessadamente.

  Chapman ia falar alguma coisa, mas desistiu.

  Agarrei-o pela jaqueta.

 — A verdade é... Você quem fez isso. Se tem alguém aqui que é o mais culpado por um veneno ter passado pela inspeção e chegado até ela... Esse alguém é você. Sua sorte é que Crane já está bem novamente. Mas não pense que não estou de olho em você.

 Ele se soltou usando força no braço esquerdo, e então me contradisse:

 — Você está louco!? Eu já disse: nem conheço o tipo direito.

  Após isso ele virou-se de forma súbita e entrou de uma vez por todas na sala da recepção. Antes de passar pela mesma virou a cabeça e deu uma última olhada na minha direção. Sua expressão despreocupado e arrogante havia mudado. Ainda carregava o mesmo semblante de estranhamento.

 Ainda não era claro por que Galloway teria tentado envenenar Crane. Tomando em base aquela reação talvez ele nem soubesse mesmo que tinha sido Galloway quem enviou. Quem sabe o namorado de Crane estava agindo sozinho? Se sim ele estaria envolvido com algum dos principais poderosos traficantes de Sproustown, mas qual deles? O mesmo que colocou suas mãos no convite? Será que a envenenaram justamente porque ela lutou contra seus homens? Eu não sabia.

 Mas eu ainda iria saber.

 Desci ao andar de baixo para pegar café da máquina. Precisava esfriar a cabeça. O café estava meio aguado e eu acabei colocando muito açúcar, assim mais o empurrei goela abaixo do que apreciei. Depois fui até a janela do corredor e fumei um cigarro. Para mostrar para Ewalyn, eu tinha comprado Tar Lights desta vez, estes eram muito melhores que os Deck Techs.

 Só após terminar o cigarro foi que eu subi até a sala da recepção atrás de Chapman. Lá dentro estava um alvoroço. Crane ainda estava de licença para se recuperar melhor do envenenamento, então Joey por hora estava fazendo o papel de secretário — O que ele mostrou fazer muito bem, por sinal. Ewalyn também se encontrava lá na entrada, e também Chapman. Ouvi a voz de Joey quando me aproximei:

 — Quer dizer então que acha que eles estarão no hospital do Filliard Summit?

 — Acho não, senhor secretário. — Respondeu Chapman — Certeza que estarão lá. Todas as bocas de Sproustown levaram ao mesmo lugar.

 Joey segurava algumas fotos na mão e Ewalyn as checava por cima do ombro.

 — O que é isso? — Perguntei ao entrar no recinto.

 Joey me passou as fotos. Ewalyn explicou:

 — Chapman encontrou os responsáveis pelo ataque na residência do falso Cooper... Aquele pseudo-roubo que aconteceu na terça...

 Ambas fotos eram tiradas na rua, as calçadas eram largas, a pista era estreita e a feiura das casas caindo aos pedaços infestava a paisagem. A arquitetura era horrorosa, o que sugeria que as fotos ou eram no centro, ou eram no Filliard Summit, ou fora de Sproustown. Mas julgando pelo que ouvi da conversa há pouco era Filliard Summit.

 — E por que você crê que eles vão estar no hospital?

 — Essas fotos, senhor tenente... Eu tirei durante minha jornada entre segunda e quarta feira. Eu passei um tempo ouvindo as bocas de todas as ruas de Filliard...

 — Seja direto.

 —... Então, a versão curta é que como o Summit é um bairro pequeno e perigoso, os transeuntes noturnos acabam conhecendo mesmo que só de vista todos os tipos estranhos, e esses aí — Ele apontou as fotos com a cabeça — São dois deles. Eu primeiro fui até o ferro velho e tive que subornar o velho para ele abrir a boca sobre quem tinha dado cabo em qualquer van do tipo Blend 1.8, então ele me descreveu as caras e as roupas deles e eu só perguntei por lá se tinham visto os tipos na segunda feira... Aí os camaradas me indicaram. Mas é difícil até eles se motivarem... Se lembrarem. Não é algo que um detetive como vocês que exige as respostas na hora e late em tom autoritário consiga. Você tem que se disfarçar, sentar, beber umas... Por isso leva tempo.

 — E não há dúvida alguma que esses dois tipos da foto são os mesmo que desmontaram a Blend que foi usada no roubo?

 Chapman confirmou com um aceno.

 — Mais longe que isso, senhor tenente. Depois que eu descrevi os dois casualmente no bar, o pessoal da roda começou a falar outros boatos, sobre coisas interessantes que os tipos fazem... Quebram muros com apenas um soco, sobrevivem a buracos de balas, você sabe... Esse tipo de boatos que ninguém acredita a princípio...

 Parando para examinar a foto eu reconhecia aquela rua. Realmente era perto do hospital.

 — Me corrijam se eu estiver errada — Interveio Ewalyn — Mas o Summit Community Center está fechado, não?

 — Vixe! Já faz “muito” tempo, madame detetive. — Respondeu Chapman — É basicamente um monte de mato crescendo em umas pedras que estão caindo aos pedaços. Essa prefeitura... Vou te contar. Não fazem nada a respeito dos prédios abandonados... Não fazem nada a respeito das vendas ilícitas de Deluxes... Parece até que é tudo de propósito...

 Examinei Chapman de canto de olho. Parecia que ele tinha feito o trabalho direito desta vez, mas se ele realmente estivesse envolvido com qualquer coisa a ver com quem tentou envenenar Crane poderia ser que ele estivesse preparando alguma cilada. Eu sei que parece que faço tempestade em copo d’água, mas muita gente morreu e muitos casos especiais estão sendo investigados ao mesmo tempo esse mês, se a coisa fosse conforme eu suspeitava e Chapman realmente tivesse algum envolvimento ilegal desta parte, e se em particular um desses casos fosse revelar alguma coisa sobre ele a qual ficou escondida até então... Qual seria a reação natural? Até agora eu nunca tinha duvidado objetivamente de Chapman numa questão de trabalho, mas se eu quisesse ser consistente com minhas suspeitas, essa era uma hipótese a considerar. Chapman poderia estar armando uma cilada numa medida de desespero.

 — E como você sabe exatamente o local que eles estão?

 — Hah hah! Parece que eles estão envolvidos com o tráfico de Deluxes, sabe senhor tenente? Do jeito que a capitã imaginou... Então eu fucei e fucei até que achei alguém que compra deles dois, e fingi ser sabe... Viciado em Deluxes...

 E ele parece mesmo um viciado, sempre com a mesma roupa, fedendo e andando largado e maltrapilho daquele jeito.

 —... E então eu marquei um horário com os dois: Vou “comprar a muamba” hoje à noite. Aí vim avisar vocês.

 — O que vamos fazer? — Perguntou Joey.

 — Bem... — Ewalyn arriscou — Não há muito o que fazer senão irmos, não?

 — É o que vamos fazer... Mas vamos fazer certo dessa vez. Vamos os três.

 — O que? E a central?

 — O Chapman pode ficar aqui.

 — Ei... Eu? Fazendo papel de secretário? Não é para isso que temos o Secretário Joey aqui ao lado? Vestido a caráter?

 Uma coisa que eu não queria era o Chapman do nosso lado, na hipótese de eu estar certo e ele realmente estar tramando alguma coisa. Pelo mesmo motivo eu queria todo mundo junto, assim seria mais difícil cairmos em qualquer emboscada. E na hipótese de que ele estivesse falando apenas a verdade, então seria ainda mais fácil capturarmos os dois ladrões.

 Já que Chapman tinha se dado todo o trabalho de marcar o encontro, ao invés de expor a razão real por trás da minha decisão eu arranjei naquele momento uma desculpa conveniente:

 — Se você está gastando todo o tempo do seu trabalho para obter a confiança de pessoas envolvidas com o tráfico de Deluxes, seria bom que você não fosse visto naquela área como um policial. O certo é deixar nós três cuidarmos do caso e depois você dá uma desculpa conveniente qualquer se alguém achar que você deixou escapar a informação de alguma maneira.

 — Acho que faz sentido — Concordou Ewalyn.

 — É. Você fez o bastante. Muito bom trabalho — Disse Joey olhando para as fotos — Agora temos a faca e o queijo na mão, só cortar e comer um pedaço.

 Ainda bem que Joey agradeceu. Chapman não resiste a um obrigado. Ele não teria como insistir em ir junto após um genuíno agradecimento.

 — Ok, ok... Tudo bem. Eu faço o papel de secretário, já que vocês insistem. Mas Joey, meu camarada... Você vai ter que me ensinar a ser secretário até chegar a sua hora de sair.

 — Fique tranquilo. — Respondeu Joey — Ninguém vai ligar para a central no período da noite. E como Sarah disse... Basta dizer “não” a qualquer coisa que pedirem.

É... Parece que estávamos fazendo isso bastante ultimamente.



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