Hinderman Brasileira

Autor(a): Oliver K.


Volume 1

Capítulo 12.2: O Dia que eu enganei o DEA com um respingo

 Assim... Mãos à obra. Primeiro fui até o ex-apartamento daquele zumbi que foi preso por matar o Gerald McMiller.

 Pela informação que me passaram o Gerald era um transeunte que morreu na frente do apartamento do zumbi justo quando ele estava correndo da polícia após ter roubado as joias, o que só em si já é muito suspeito. Está claro que não foi ele que matou o homem, nenhum zumbi ia ser tão burro assim.

 Após isso, a polícia decretou morte por atropelamento no laudo fraudulento, acobertando a veracidade do caso, mas na prática prendeu o zumbi pelo assassinato.

 O apartamento ficava dentro de um prédio de dois andares escondido num beco de Marshmoore. Quando cheguei lá fora vi o quanto era difícil de entrar. A porta de ferro ficava encostada, e a única entrada possível era pela porta, pois pela informação que me passaram ele não tinha janela para o lado da rua, mas para o estacionamento, que ficava do lado de dentro.

 Mesmo que eu aparentasse ser uma menina menor de idade, não gostava de chamar atenção, então coisas como ficar parada olhando um prédio pelo lado de fora não faz parte do meu repertório de atividades que costumo praticar nas tardes livres.

 Pensei na possibilidade de fingir estar interessada em alugar o apartamento. Se o dono me deixasse entrar e ver o apartamento por mim mesma e se eu conseguisse um tempo sozinha eu poderia fazer o serviço enquanto ele não olhava. Pensei melhor e concluí que essa possibilidade tinha dois furos: primeiro que o dono não necessariamente ia me dar o tempo necessário sem supervisão para completar o serviço, segundo que seria muito estranho uma menor de idade procurando por um apartamento sozinha.

 Desisti da ideia.

 Esperei a rua ficar vazia um pouco e saltei no telhado do prédio. Com um salto subi no poste e com outro já estava no telhado. Arriando meu corpo na superfície do telhado para não ser vista, me arrastei até avistar o estacionamento do complexo. Pelo que constava nas minhas informações ele não tinha sido locado ainda, então se eu encontrasse a janela certa podia quebrá-la e entrar fácil, e não haveria ninguém lá para me avistar.

 Você deve ter imaginado, mas todas essas informações que eu tive vieram da Greta. Ela faz a mágica hacker dela e fica sabendo de tudo, é incrível. Foi assim também que eu fiquei sabendo do assassinato dos Johnson e do convite naquele dia que o Dragão chamou o Craig. Eu tinha falado com a Greta antes de ir até a casa dele. Aquela mulher pode ser pavorosa, mas ela tem sua utilidade.

 Coloquei minha cabeça só um pouco para fora olhando para baixo, a fim de dar uma espiada nas janelas. Avistei uma delas com um papel de “aluga-se” colocado no vidro. Devia ser aquela. Ponderei sobre como entrar. Eu tinha que me segurar na ponta do telhado, me deixar soltar, cair um pouco, e quando estivesse de frente para a janela eu colocava minhas mãos de novo no parapeito, me apoiando. Depois eu ia querer retirar a janela inteira, usando minhas unhas como espátula, cavoucando a massa dos cantos até ela sair. Eu não podia fazer barulho, tinha que retirar o vidro inteiro e trazê-lo comigo para dentro do modo mais silencioso possível.

 O problema era que a parte de retirar a massa tinha que ser feita rápido, antes que alguém do prédio da frente resolvesse olhar pela janela e avistasse uma menininha pendurada.

 Se alguém avistasse uma menininha pendurada, isso seria mais caótico que o circo.

 “Me penduro, solto, me penduro de volta, uso indarra nas unhas, retiro a janela e salto carregando-o comigo para dentro” Fiquei repetindo esta frase para mim mesma por alguns momentos.

 Assim eu fiz. Me soltei até estar na altura da janela desejada, me pendurei de novo e passei a cutucar a borracha da janela pelos cantos de forma a tentar soltar o vidro.

 Era mais fácil pensar do que fazer.

 Não ia dar tempo de retirar tudo da primeira vez, então tive que apelar para minha finesse. Não... Eu não ia quebrar o vidro. Ia fazer muito estardalhaço e chamar atenção, e eu precisava entrar lá com tempo e sem ninguém ficar sabendo. O que fiz foi usar o meu hawkeye.

 Eu nunca falei? Eu tenho memória fotográfica.

 Não... Não sou uma nerd, isso foi uma habilidade arduamente adquirida com bastante treino mental, um processo que durou longos anos até estar completo. É difícil para nós, baratas parasitas, aprendermos habilidades tão rápido quanto os demais seres paranormais, então temos que escolher cedo no que vamos nos aperfeiçoar. Conseguimos nossas finesses pelo fato de que vivemos muitos anos se comparadas aos demais, mas infelizmente as habilidades adquiridas não vêm tão fáceis para nós.

 A primeira habilidade que pensei que seria importante era a memória fotográfica, até porque eu achava que ia ser detetive quando pequena, então de certo viria a calhar. Que sorte que veio a calhar mesmo em meu trabalho atual, embora eu tenha me tornado... Você sabe... O oposto de detetive.

 Após estar acostumada a decorar as disposições dos objetos nas cenas que presencio comecei a treinar minha segunda finesse: a visão periférica. A habilidade de enxergar tudo ao meu redor de uma só vez, com um só olhar, sem precisar me demorar. É tipo leitura dinâmica de um livro, exceto que treinei com o cenário ao invés de palavras. Uma vez combinadas essas duas habilidades, chego ao hawkeye, o que considero fruto de todo meu aprendizado mental.

 Imagine se olhando apenas uma vez você conseguisse memorizar todo o cenário... Desta forma com uma espreitadela em um espelho ou em uma gota de água você consegue ter visão de tudo o que ocorre ao seu redor sem precisar se virar, e não só isso: você ainda tem controle total dos acontecimentos porque por se lembrar da disposição de todas as coisas, a cada vislumbre você sabe tudo o que saiu, tudo o que entrou e tudo o que continuou no lugar, revelando qualquer menor movimento que ocorra à sua volta desde que olhou da última vez. Nenhum movimento escapa despercebido por você.

 Eu chamo esta possibilidade de hawkeye.

 Como o vidro da janela estava muito limpo era meio refletor, eu tinha controle de tudo o que acontecia no prédio atrás de mim sem precisar me virar. Assim que avistasse alguém se dirigindo à janela, correndo o risco de notar uma garota pendurada no parapeito do prédio vizinho, eu saltaria para baixo a fim de evitar ser vista naquelas condições suspeitas.

 Felizmente precisei fazer isso só uma vez. Retirei um pouco do vidro com a unha, quase metade. Daí percebi pelo vidro que alguém vinha vindo na quarta janela do terceiro andar do prédio atrás de mim, e me soltei. Caí no pavimento do estacionamento.

 Parei o impacto da queda usando a indarra nos pés exatamente na hora da aterrissagem, óbvio. Quando faço isso não sofro dano algum.

 Assim que o cenário estava limpo novamente, subi até a janela com uma sequência de pulos e terminei de preparar minha entrada. O melhor de tudo é que eu tenho certeza que ninguém me viu, por causa do hawkeye.

 Não demorou muito para adentrar, carregando o vidro comigo. Coloquei-o silenciosamente no chão para que ele não caísse. Uma vez no chão não há mais como cair, certo? Agora eu estava no apartamento daquele zumbi que foi usado como bode expiatório. Como eu imaginava, todos os móveis tinham sido tirados. Agora estava só um apartamento com peças vazias, pronto para ser alugado. Era um lugar vazio como a cabeça do Craig.

 Mas eu tinha que deixar alguma evidência de que um serial killer humano tinha passado por ali. Qualquer coisa que satisfizesse um investigador meia boca do DEA.

 Parei para me perguntar: o que exatamente eu queria? Bem... Óbvio que queria que pensassem que aquele que foi capturado pelo crime, Jeffrey Sprohic, independentemente de saberem que ele era um zumbi ou não, tinha sido preso injustamente. Seria perfeito se eu pudesse lançar as suspeitas sobre outra pessoa. Desta forma ficaria claro que os dois crimes estão interligados e a prisão do zumbi tinha sido um erro grotesco da polícia.

 Outra condição é que eu queria que pensassem que o culpado do crime foi um ser humano comum. Um ser humano comum deixa pistas quando passa por algum lugar, isto porque além de tongo ele é meio limitado. Ele não simplesmente pula do chão até a janela do jeito que eu faço.

 Primeiro pensei em forjar uma pista na porta. Fui até a porta da entrada. Se eu a abrisse agora existia a chance de alguém estar passando por ali justo na hora, e se alguém me visse ali naquele dia, qualquer pista falsa que eu deixasse perderia o propósito... “O senhor sabe se alguém mais entrou nesse apartamento? Ah, uma menininha estava aí no outro dia...” Não... Definitivamente não abriria a porta.

 Que tipo de pista alguém deixaria, que teria passado despercebida pela polícia? Pelo que a Greta me falou, eles estavam perseguindo o zumbi até aqui em Marshmoore, e depois que encontraram o corpo demoraram um pouco até entrarem no apartamento... E quando o fizeram ele já não estava mais ali. O que sugere que ele fugiu pela janela do estacionamento e pegou um carro. Ele poderia ter deixado uma pista na janela...

 Voltei até a janela por onde eu entrei. O vidro estava faltando e a massa havia sido remexida, o que é óbvio... Eu que tirei o vidro cutucando a massa e mexendo na borracha.

 “Espere... Se eu sair daqui agora e a polícia do DCAE vier, eles perceberão que tem algo de errado com a massa e com a borracha... Será que notarão que alguém entrou recentemente?” Não tinha pensado nisso...

 Escondi meu corpo para não ser vista pelas pessoas do prédio da frente e parei para queimar a cuca. Tudo o que eu havia trazido era um pouco de sangue humano que estava em um vidrinho que eu sempre carregava comigo. Craig me disse que era sangue de alguém sem passagem pela polícia, assim não tinha como ser identificado por análise.

 A única história que eu podia inventar para ocultar minha entrada ali justificando a alteração na janela era fingir que o humano culpado usou desta para culpar o Sprohic no dia do assassinato. É... Não tinha outro jeito.

 “O serial killer retirou o vidro cuidadosamente e o colocou de volta antes de fugir pelo estacionamento. Sprohic então estava fugindo da polícia, entrou em seu apartamento, pegou o que tinha que pegar e saiu pela mesma janela. Quando saiu deixou suas impressões e a janela aberta — E de fato as impressões mais recentes que conseguiram do parapeito depois daquele dia coincidiam com as do zumbi — Mas o verdadeiro assassino... Este ocultou sua evidência”.

“Infelizmente o serial killer se fere ao cutucar a massa e deixa sangue em algum lugar. Não na casa, pois seria uma pista que não teria escapado da primeira perícia...  Mas ele deixa uma pista em algum lugar fora dela”... Se eu ao menos tivesse um objeto...

 Usei o hawkeye para fazer um panorama de tudo o que havia no estacionamento: perfeito! Vi um ferrinho encostado no chão, ou algo parecido. Aquilo ajudaria um ser humano normal a retirar a massa da janela e cutucar a borracha fazendo o vidro soltar. E ele teria então jogado o ferrinho lá fora na hora de sair. Se o detalhe do vidro ter sido solto tivesse escapado da polícia eles não teriam se preocupado em examinar aquele ferrinho.

 Esperei até não ter ninguém observando o apartamento do prédio do outro lado, então me pendurando no parapeito pelo lado de fora coloquei cuidadosamente o vidro, usando a indarra para fixá-lo novamente, e saltei até onde estava aquele ferrinho.

 Com uma simulação encontrei o ponto certo onde ele teria deixado escapar uma gota de sangue caso tivesse realmente machucado o dedo na hora de retirar o vidro, e então espirrei só um pouquinho do sangue do vidrinho no local. Depois coloquei o ferrinho no lugar de novo.

 Pronto. Apenas um detalhe. Existia a chance de ninguém nem ver a minha pista? Sim... Mas difícil. Os vingadores do DEA insistiam em vir para a cena e pegar algo que tenha passado despercebido pelo DCAE. Checariam a janela e notariam a remoção da massa. Assim pensariam que quem tirou o vidro teria usado um objeto e voilà. Encontrariam o sangue naquela coisinha.

 Isso colocaria o DEA contra o DCAE, pois eles alegariam que o último não fez o trabalho direito, e adicionalmente os colocaria na pista errada. Quanto menos eles associassem os assassinatos com o próprio zumbi melhor. Não queremos mais polícia além do DCAE envolvida com seres paranormais. E colocar o DEA atrás de um serial killer daria mais um tempo para o próprio Wilkinson de esconder suas relações com Sanford antes que eles trouxessem a investigação para essa linha.

 Por outro lado, se eles não descobrissem nada sobre o ferrinho significava que eles não estavam tão ansiosos por vingar o Sanford quanto eu pensava, o que seria melhor ainda.

 Assim considero que aquele foi um trabalho bom.

 Aí você se pergunta: Por que eu ajudava o Wilkinson sendo que eu trabalhava para o Dragão? Tem dois motivos... Primeiro que eu tenho que fazer o que Wilkinson manda se quiser continuar infiltrada; segundo que colocar o DEA fora da pista dos seres paranormais e do tráfico de Deluxes significa que eles também não estarão atrás de nós, o comando do Dragão, assim... Ambos saímos ganhando.

 Depois daquilo eu tomei um ônibus e parti para Meadow Park, onde tinha acontecido o outro assassinato. Eu precisava deixar mais uma pista por lá.

 O Meadow Park fica no centro e não é muito grande. Deve ocupar uns dois quarteirões. Ele tem uma área de passeio, umas árvores e um laguinho onde as crianças jogam sujeira para os peixes ou algo do tipo. Fica literalmente no meio da rua. Para piorar, pelo que vi tinha bastante movimento naquela hora do dia, o que deixaria tudo mais difícil se eu realmente tivesse que falsificar uma pista.

 Assim... A primeira coisa que notei quando cheguei lá foi que não dava para fazer o serviço.

 As faixas amarelas e pretas de cena de crime já tinham sido retiradas. Toda a cena já estava limpa. Tudo já tinha sido revistado.

 E uma coisa era a polícia deixar despercebido um detalhe que está em um pedaço de ferro jogado no estacionamento de um apartamento onde nem se passou muito tempo, outra coisa é eles deixarem passar despercebido algo em uma cena pública daquelas. Se fosse para terem perdido alguma pista o que seria? Algo jogado no lixo que não viram? Impossível... Seria a primeira coisa a revistar na hipótese de um crime. Algo que o assassino tentou jogar no lixo, mas errou e acabou voando com o vento? Se sim era algo que estaria perdido para sempre... Não havia chance de eu fazer uma pista nesse sentido e esperar que o DEA a encontrasse e pensasse que era uma pista genuína...

 Não... O que quer que fosse que a polícia encontrou na primeira perícia era o que tinha na cena... Tudo já estava revistado. Tudo já estava apreendido. Agora tudo o que restava ali eram os fantasmas e os boatos.

 Boatos?

 Comprei um saquinho de pipoca de um carrinho que estava na praça. Enquanto comia algumas delas pensei naquela palavra: “boatos”.

 Será que eu conseguia convencer o Craig a espalhar uns boatos para mim? Se o sangue deixado na primeira cena dá uma dica à polícia de que outro homem foi o malfeitor, um boato teria muito mais credibilidade que uma segunda pista física na segunda cena. Se parar para pensar, deixar mais sangue na segunda cena seria muito artificial.

 Senti o meu frasquinho de sangue no meu bolso. Pensei que não deveria usá-lo desta vez.

 Ao invés de deixar uma pista concreta na segunda cena, inventaria um boato de alguém com aparência suspeita que foi vista no local do crime. Um suspeito que anda pelo parque às noites. Sim... Isso colocaria mais dúvidas no DEA por enquanto e certamente guiaria sua investigação para a hipótese de um serial killer humano e não envolvido com o tráfico, uma hipótese longe do Wilkinson e mais importante: do Dragão.

 Joguei o saquinho de pipoca fora após comer só algumas delas. Humanos são esquisitos. Por que precisam comer tanto para sustentar o corpo? Com menos de um terço de um saco pequeno já estou estufada.

 Quase peguei meu celular, mas pensei que deveria pedir este favor para o Craig em pessoa. Assim fui até a casa dele.

 O Craig tem bastante contato com os fofoqueiros da cidade, pois ele faz parte de um clube de pôquer que joga aos sábados, lá ele ouve bastante boatos sobre as variadas partes de Sproustown, assim imagino que não faria mal se aproveitasse o ambiente para espalhar algum também.

 Chegando à casa dele, ele estava no quarto da Marcelle, e ambos estavam agachados no chão, rodeados por um monte de tinta. Os baldes de tintas estavam empilhados no canto e com tinta escorrida, o que indicava que tinham sido tombados e depois Craig os ajuntou ali.

 Aquela Marcelle...

 — Hã... Oi Craig...? E Marcelle...?

 — Oi. Seja bem vinda. Hahaha — Marcelle retrucou com um riso mais de embaraço que de gracejo.

 — Eu cheguei agora há pouco e a Marcelle estava caída e tentando colocar as coisas no lugar... E agora ela insiste que quer limpar sozinha. Me ajude a convencê-la do contrário, Bubble.

 — Ora Marcelle... O Craig vai limpar isso bem rápido. Venha, vou te colocar de volta na cadeira.

 — Mas... Eu consigo ajudar. É só pegar os panos e...

 Ignorando-a, coloquei a teimosa na cadeira. Depois de um tempo o chão estava mais ou menos limpo.

 — O que aconteceu, afinal? — Perguntei enquanto trocava a camisa manchada de tinta da Marcelle.

 — Eu acho que arrastei minha cadeira para trás de mais e bati na estante... Aí derrubei tudo sem querer.

 Olhei de relance para Craig. Ele tinha um pouco de culpa. Se ia deixar Marcelle pintar, tinha que deixar as latas fechadas para não acontecer desastres como aquele. Afinal de contas não deveria nem deixar ela pintar sem supervisão.

 — É... Acho que vamos ter que arrumar um lugar novo para suas tintas. Isso está ficando perigoso. Você não quer acatar minha ideia de tampá-las após o uso.

 — Mas isso faz a diluição secar! E ia demorar tudo muito mais. — Marcelle protestou.

 (Ainda acho que tinha que ter supervisão).

 Craig olhou na minha direção e amarrou a cara. Será que sabia o que eu estava pensando?

 Tudo aquilo tinha cansado a pequena artista e ela resolveu deixar seu trabalho para depois. Preferiu tomar um banho e o que é mais importante: tirar uma soneca. Craig foi dar banho nela e eu esperei no sofá, avançando um pouco mais no Cinder Clash.

 Uma vez que estávamos a sós na sala como de praxe, consegui trazer o tópico à tona. Contei ao Craig minha impossibilidade de reproduzir uma pista falsa numa cena de crime aberta e que precisava que ele espalhasse um boato para mim.

 — Eu? Espalhar um boato? E para o Wilkinson? Eu não tenho nada a ver com o Wilkinson.

 — Não é para o Wilkinson. É para nós. Ou você quer que o DEA comece a suspeitar que existem seres sobrenaturais envolvidos no tráfico de drogas e chame o FBI e tudo o mais... Prefere se esconder de quinhentas unidades de polícia ao invés de uma?

 Craig se sentou novamente. Ele ficava levantando, andando para lá e para cá e sentando. E depois repetia. Parecia a dança da cadeira.

 — Isso tudo é suposição sua, minha cara... Ainda não vejo por que eu deveria fazer seu trabalho por você. Se ao menos eu tivesse um incentivo... — Craig olhou ironicamente para cima. Era mesmo um mercenário.

 — Você vai me pedir dinheiro, hã?

 — Eu vou fazer metade da sua tarefa. Você colocou a pista falsa no apartamento do Sprohic e eu coloco a pista falsa na cena do Sanford. Nada mais justo que eu receber metade. Quanto você vai ganhar por isso afinal?

 — Não muito... Só $2,000.

 — Para uma tarefa mercenária? Não é muito pouco?

 — Não é exatamente uma tarefa perigosa... É só preventiva...

 Craig me examinava calma e fixamente enquanto eu respondia. Ele deixou escapar um sorriso. Percebeu que eu estava “arredondando” o dinheiro para baixo. Odeio aquela finesse dele de ler a mente.

 — Tá... E quanto realmente você vai ganhar?

 Larguei o celular no sofá e encarei-o com um olhar fulminante, sem responder. Ele perguntou:

 — Se não quer me pagar, por que não espalha o boato por si mesma? Digo... De verdade. Não é uma pergunta retórica. Por que não?

 — Porque sou uma criança, Craig. Que tipo de adulto acreditaria nos boatos vindos de uma criança?

 Ele deu de ombros.

 — Faz sentido... Deve ser mais difícil para seu tipo.

 — Ainda mais que você faz parte daquele clube de pôquer, assim tem contato com diversas pessoas influentes que adoram espalhar um boato contado por seus adversários.

 Se parar para pensar, participar daquele clube é uma tremenda trapaça, já que ele pode ler a mente de cada um dos jogadores... Não sei que graça ele vê nisso.

 Parando para examinar não tem por que ele não largar a carreira de serviços ilegais e investir no pôquer. Se eu tivesse uma finesse como aquela não pensaria duas vezes. Talvez eu também tivesse escolhido uma finesse que me ajudasse mais em alguma outra área qualquer para que não precisasse literalmente lutar para sobreviver. Só que agora já era tarde...

 — Craig... Poderia ser... Você gosta de matar pessoas?

 — O que? De onde tirou isso, assim de repente?

 Ué... Era a única razão que enxergava a qual o impediria de largar seu estilo de vida pelo pôquer...

 — Er... Esquece.

 Craig me encarou estranhamente.

 — Você é estranha.

(Você é o mais estranho, Craig).

 — Eu vou te pagar $1000. Vê se faz direito o serviço.

 — Mas você não disse que ia receber mais?

 (Acho que foi você mesmo quem disse isso, Craig. Embora esteja correto).

 — Mas o que você vai fazer não é metade do serviço. — Esclareci enquanto me levantava — Eu ainda tenho que ir à casa daquela jornalista enxerida e fazer uma... “Supervisão” lá ou algo assim. E essa parte eu tenho que fazer sozinha. Ou seja: minha tarefa ainda não acabou.

 Craig ainda fazia sua típica cara de ceticismo, no entanto acabou aceitando. Não era como se a simples obrigação de espalhar um boato durante seus jogos valesse aquela soma de dinheiro mesmo...

 Me preparei para me retirar dali, desligando meu jogo e indo na direção da porta.

 — Ah! Antes que eu me esqueça... Como foi aquele dia? Com o Spencer?

 Craig fez um gesto indiferente com a mão direita.

 — Foi como esperado. Ninguém estranho se aproximou, ninguém suspeitou que sua identidade fosse Spencer Flemming, o deputado. Resumindo: foi um dia bom.

 — Você quer dizer um dia monótono. E o Dragão?

 — O Dragão o chamou até uma sala à parte onde ambos trataram dos negócios enquanto nós ficamos do lado de fora esperando. Assim naturalmente não vi a cara dele.

 — Hah!

 — E digo para você: Não sei nem se Spencer viu. E se ele estivesse de máscara dentro da sala?

 — Não duvidaria... Espere... Você disse “nós”?

 — É... Sub-Zero estava lá também. Já que à priori ele queria que você fosse, mas você acabou “não podendo”... — Enfatizou a última parte de forma irônica.

 Mostrei a língua casualmente.

 — Não se preocupe, fui convincente quando ele me perguntou sobre o motivo de você não ter ido. Não suspeitou de nada.

 — Você não sabe... Não pode ler as expressões faciais dele se ele não mostra o rosto.

 — Quis dizer... O Sub-Zero quem não suspeitou de nada quando falei para ele seu motivo...

 — Não quero saber o que o Sub pensa de mim. Apenas o Dragão importa. O Dragão e o Wilkinson.

 E também o Craig. Não tenho nada contra o Craig. Mas não vou falar isso na frente dele para não encher sua bola. 

 — Parece que a única de nós três que nunca esteve ao lado do Dragão fui eu. — Eu disse.

 — Foi, é? Não se preocupe... Um dia desses seu amado Dragão vai chamar você.

 — Não vejo a hora! Eca.

 Me contorci de repulsa só de pensar na possibilidade. Quem quer se encontrar com um ser esquisito daqueles?

 Craig riu suavemente.

 Depois disso me despedi dele e chequei em meu celular onde tinha anotado o endereço da jornalista enxerida. Seu nome era Megan Bourne? “Isso é um B”? Não... Megan Mourne... Do Daily Inquirer. Pelas informações da Greta ela estava mais ativamente procurando pistas e notícias sobre o caso do Sanford. Isso porque ela era amiga pessoal de Sanford, é amiga também de Beth Wilson, investigadora do DEA. Parece que elas moram no mesmo andar do mesmo prédio.

 Greta não tinha me passado aquilo por mensagem nem nada do tipo, óbvio. Eu apenas tenho uma pasta no celular onde eu mesma anoto informações importantes, mas sempre a uso quando estou desconectada para não ter o perigo de roubarem minhas informações. Quando vejo o tipo de informações que uma hacker como Greta é capaz de obter, compreendo que tenho que ser ainda mais cautelosa com o modo como manejo minha vida virtual. Em especial neste ramo. Quando vou até o Bodongo em pessoa sempre entro de celular desligado. Meu dedo coça para jogar Cinder Clash durante os momentos monótonos, mas me policio. Se ela conseguir obter qualquer dado meu, mesmo um mero username do Cinder Clash, ela pode traçar os dados e verificar que acesso o jogo da casa do Craig, e se for enxerida o suficiente pode acabar descobrindo que Craig tem relação com o Dragão e somar dois com dois. Uso internet o menos possível. Menos internet significa menos Greta, que significa menos perigo.

 No resto do dia eu tinha que ir até aquele condomínio e revirar tudo o que aquelas Elizabeth Wilson e Megan Mourne tinham para ter uma ideia do quanto elas conheciam a situação. Se eu acabasse decidindo que elas sabiam o suficiente para guiar o DEA na pista certa, algumas providências teriam que ser tomadas. Caso contrário, por enquanto ficaria apenas acompanhando. Não queremos tomar nenhuma atitude violenta contra o DEA ou o Daily Inquirer. Principalmente logo após a morte do Sanford.

 Mas não vou gastar seu tempo e energia com a parte maçante que foi minha visita até aquele prédio, onde nada aconteceu.

 O resto fica para outra hora.



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