Hinderman Brasileira

Autor(a): Oliver K.


Volume 1

Capítulo 1.2: Zumbi

 A pessoa pequena que estava parada em minha frente usava ainda uma camisola não porque fosse dormir cedo, mas porque provavelmente não a tirava desde de manhã. Era ainda jovem, embora rugas e olheiras houvessem se apossado de seu rosto. Era ruiva e tinha longos cabelos encaracolados contrastando com a brancura de sua pele. Era anemicamente magra. A típica mulher que se vê que um dia já fora bastante atraente, mas que agora era um mero fantasma do que costumava ser.

 — Henry? Onde você estava? Sabe que horas são? Te esperei o ano inteiro e você não chegava nunca.

 Tirei meu casaco e joguei-o no sofá ao lado da porta.

 — Eu tive trabalho extra...

 — Você faz hora extra todo dia. Todo o santo dia! Eu ia preparar alguma coisa, mas você provavelmente já comeu fora.

 — Já... — Menti.

 — Está vendo? Você sempre come fora. Sempre chega tarde. Você nunca mais está aqui! Aposto que está saindo com mais uma amiga sua. Que nem da outra vez.

 A nova moda de Jane era arranjar uma amiga imaginária para mim e inventar que eu a visitava, sempre que eu estava em serviço ou em outro lugar.

 — Jane... Teve um caso de emergência... — Disse com uma virada de olhos enquanto ia em direção à geladeira, para ver se tinha alguma coisa que pudesse beber.

 — E custava ligar!? Eu por outro lado liguei que nem uma louca e você não atendeu. Por que você deixa o celular desligado? Se fosse apenas trabalho você atendia!

 Deixei escapar um suspiro enquanto fui até a geladeira e alcancei a última garrafa de cerveja que estava quase vazia.

 — Não sei por que você nunca fala comigo! Você me deixa no escuro. Você me deixa no escuro para que você possa...

 Jane parou seu argumento quando me viu bebendo direto da garrafa. Ela detestava que eu bebesse em casa, sem nenhum motivo específico.

 — O que você está fazendo? Isso é hora de comemorar alguma coisa?

 Dei de ombros, e prossegui. Ela ficou sem reação por um instante.

 — Você... Tudo bem. Me ignore. Beba sozinho! — Disse ela com uma desafinada amarga na voz. Ela apagou a luz da copa e voltou para o quarto.

 Eu nem gosto de cerveja.

 Mas é uma ótima maneira de fazê-la terminar sua recepção amorosa e ir para o quarto.

 Após sua saída olhei fixamente para o sofá. O sofá era o lugar onde eu estava dormindo ultimamente. Todos meus pertences ficavam jogados em volta do sofá para ficar mais prático de pegá-los porque ela não gosta que eu entre no quarto de manhã. Somado à bagunça da cozinha e ao fato de que a luz frontal estava queimada passando uma impressão de precariedade, me veio à tona uma cena familiar que eu havia presenciado àquela tarde. Me lembrei da piada que Joey havia feito mais cedo.

“Parece o meu quarto.”

 Ele havia dito isso quando entrou na casa que havia sido revirada antes de o suspeito fugir. Mas ele provavelmente não imaginaria que aquela frase se encaixaria perfeitamente na descrição do meu quarto, ou melhor, ao sofá da sala onde eu passava minhas noites.

 Não pude deixar de esboçar um sorriso.

 Esta garota adorável é minha esposa: Jane Dotson. Lógico, ela nem sempre foi assim. Ninguém a aguentaria se ela fosse sempre assim. Mudanças de comportamento são feitas com o tempo, e são criadas a partir de interações com as outras pessoas. O que me diz que eu devo ter errado em algum lugar. É verdade que eu não falava muito com Jane há muito tempo. Eu nunca cheguei a dizer para ela sobre o DCAE ou até mesmo sobre os zumbis. Ela acha que eu sou um policial convencional. Para dizer a verdade não consigo conversar com ela coisa alguma, pois como você vê, não há espaço para conversa.

 O correto seria arrumar a cozinha pelo menos e também organizar minhas coisas para que eu pudesse ao menos ter uma noite decente. Mas eu estava cansado... Quem se importa com a bagunça?

 Tirei minha roupa ali mesmo e sem ao menos tomar um banho me deitei.

 Às vezes me deparo pensando em meu estado. Se há dez anos atrás você me dissesse que eu estaria detestando a hora de voltar para casa e mais empolgado com a hora de voltar ao trabalho eu diria que você enlouqueceu. Mas se minhas noites significavam aquilo agora eu não tinha por que ansiá-las mais. Talvez eu realmente devesse começar a frequentar os bares e chegar mais tarde como Jane diz...

 “Jeffrey Sprohic” ex-detento da vizinha Silverbay. Sua casa estava bagunçada do mesmo jeito, mas ele provavelmente não morava lá. Ele devia tê-la apenas alugado para se esconder de alguma coisa... Talvez para esconder alguma coisa. Ele deve estar dormindo em algum hotel com suíte agora... Nem mesmo o pior dos criminosos deve dormir em local parecido com esse ninho abominável de objetos aleatórios esparramados...

 Naquele escuro minha mente começou a transitar de mim para Jeffrey Sprohic. Desesperado para fugir da polícia. Imaginei um ser de dois metros fedendo a carniça bagunçando as coisas e procurando não sei o quê e depois fugindo pela janela. Pudera, a polícia convencional estava atrás dele e depois também o DCAE...

“Mas antes de procurar e fugir pela janela com a pressa que estou, vou parar para fazer uma boquinha. Rapidinho vou comer um sujeito na frente da minha própria porta e só depois vou continuar a fuga. Não demoro nem dez minutos...”

 Um pensamento irônico, mas algo que eu só havia me ocorrido agora. Aquela ação não fazia sentido algum. Mesmo para um zumbi.

 O suspeito saiu correndo desde a Club Jewel até aquele beco remoto onde tinha alugado, com as joias na mão e a polícia correndo atrás. A polícia afirma tê-lo perdido de vista, mas ele continuou correndo até Marshmoore. Um ser mais esperto faria de tudo para se esconder em algum lugar, no entanto ele decidiu ir diretamente para o local onde morava. O que indica que ele optou por correr ao invés de se esconder.

 Se queria correr, teve antes que passar em seu recinto original e pegar alguma coisa que fosse de valor para ele para só então sair dali. A desvantagem de deixar seu odor em Marshmoore é que agora o DCAE conhece sua identidade por causa do contrato com o locatário, no entanto ganha da desvantagem que teria se tivesse se escondido ao invés de fugido: a polícia provavelmente já o teria encontrado por causa dos cachorros.

 Existe um ponto que pode ser atribuído à burrice ou à inexperiência aqui: o fato de ele ter fugido a pé ao invés de assaltado um veículo. Se ele é um zumbi que nasceu recentemente e não está ciente que pode ser detectado através do cheiro, isso pareceria uma escolha natural, pois ele pensaria que chamaria menos atenção do que com um carro roubado. Ele pensou que despistaria todos policiais convencionais (e aliás conseguiu) e viria para seu esconderijo sem esperar ser encontrado. Se esperasse ser encontrado através do cheiro teria usado um carro ao invés de ido a pé. Então ele não esperava, e era realmente um zumbi recém-nascido. Adicionalmente o fato de que o apartamento estava revirado e a janela aberta indicam que ele estava com pressa por algum motivo.

 E se ele estava com pressa ele não teria parado para se alimentar.

 Zumbis podem ficar até três dias sem se alimentar e sem passar fome, não são como os humanos que não aguentam segurar nem oito horas. Se estivesse realmente com pressa teria deixado a vítima para depois. Ele estava morrendo de fome? Não comia há semanas? Impossível... Se fosse o caso teria atacado o próprio dono da joalheria que estava sozinho no estoque. Se o x da questão fosse sua fome ele teria tomado o cuidado de não atacar ninguém em frente à sua moradia.

 O fato de ter preferido fugir a pé para tentar despistar a polícia pode ser atribuído à burrice intrínseca do zumbi, mas a vítima não pode ser atribuída a nenhum nível de burrice. O fato de ele ter feito uma vítima na frente do apartamento alugado tem que significar alguma coisa. Se ele estava com pressa porque fez uma refeição ali na frente com o pouco tempo que tinha?

 Parei para pensar quando um zumbi faria deliberadamente uma vítima em frente ao lugar onde se mora? Quando planeja-se sair de tal lugar e nunca voltar? Até por isso ele pegou os pertences que lhe importavam, pois já estava planejando deixar aquele local de qualquer maneira.

 É claro... Sprohic nunca pensou em ficar em Sproustown! Ele alugou o local apenas até conseguir as joias e pensava em sair logo em seguida. Já que ele planejava sair da cidade após roubar as joias não tem por que não se alimentar aqui. Pelo contrário, fazendo assim ele ficaria livre para ficar mais três dias sem fazer um ataque, dando a ele o tempo de se estabelecer em seja lá qual cidade for para a qual planeja se mudar sem chamar atenção para si.

 Pensando com esse enfoque, talvez Sprohic não seja tão desprovido de inteligência quanto o zumbi mediano. Ele devia estar ciente que posteriormente seria identificado pelo cheiro e também que sua identidade seria revelada cedo ou tarde. Por isso não se preocupou em esconder seus dados do locatário quando efetuou a locação. Até mesmo porque um ser humano de mais de dois metros não deixa muito espaço para alternativas, existe uma lista muito pequena de possibilidades, dados falsos teriam sido detectados antes ou depois. Mas ele antecipou que até conseguirmos reunir toda a informação para iniciar a busca ele já estaria muito longe de Sproustown. Isso explica também porque preferiu fugir a pé do que de carro: para despistar a polícia convencional. Sabia que não fugiria do DCAE, no entanto nós só começaríamos a persegui-lo após algumas horas, e até então ele tinha tempo o suficiente para pegar suas coisas, fazer sua refeição e preparar sua saída.

 Se minha teoria estivesse correta ele deveria roubar algum veículo e partir ainda hoje.

 Levantei de supetão e liguei o mais rápido que pude para a divisão de roubos. Perguntei se havia sido registrado algum roubo de veículo entre as duas últimas horas. Após uma espera eles me disseram:

 — Não houve nenhum roubo de carro registrado hoje, tenente Dotson.

 “Nenhum?” Quer dizer que ninguém deu queixa? Será que houve outra vítima e ele roubou o carro após assassinar mais alguém para que não se prestasse queixa? Mas alguém teria avisado a divisão de homicídios... Poderia ter roubado um carro com o dono dentro? Alguém teria informado um sequestro...

 Fiz algumas ligações pensando em tais possibilidades e após o assassinato no beco parecia que nada mais de anormal tinha acontecido em Sproustown naquele dia. Tive que recompor meu pensamento.

 A esta altura eu já estava sem sono e sem cansaço. Estava sentado na cadeira à mesa de jantar perdido em meus pensamentos. Decidi ligar mais uma vez ao DCAE antes que fosse tarde demais.

 — Divisão de casos especiais, boa noite?

 — Alô? Crane? Ah, que bom. Você ainda está aí. Escute... Preciso que você me faça um favor... Eu preciso conseguir todas as informações sobre carros roubados a partir de agora até amanhã de manhã, então, por favor, avise a divisão de roubos, ok? Diga que tem relação com o caso da joalheria e avise-os para manter o jornal longe disso.

 — Alguma coisa aconteceu?

 — Sprohic vai tentar sair da cidade a qualquer momento...

 Não consegui dormir direito aquela noite. Quando eram cinco e meia da manhã, acordei com um telefonema de Crane. Ela me passou a informação de que dois carros haviam sido roubados.

 Me vesti e corri para a central.



Comentários