Hinderman Brasileira

Autor(a): Oliver K.


Volume 1

Capítulo 1.3: Zumbi

 Quando cheguei, apenas Crane estava lá. Naturalmente parecia cansada. Presumi que ela também deveria ter ficado acordada o tempo todo por causa dos telefonemas.

 — Bom dia, Crane. Sinto muito pelo plantão, mas é que não podemos perder o sujeito. Onde está Joey?

 — Ele ainda não veio, vai esperar? Quer que eu vá junto?

 — Tem alguém mais aí?

 — Um pessoal do suporte já está aí. George, Carl, Jackson... Mas não tem nenhum investigador...

 — Pode ir para casa — disse enquanto acendia meu primeiro cigarro do dia — Você já fez o bastante. Eu vou pedir para o Carl e o George me levarem lá. E o Jackson vai seguir o outro carro. Me diga uma coisa... Os avisos dos roubos... Os relatos... Foram feitos quando?

 — Agora de manhã...

 — Que horas? Precisamente? Foram ambos feitos quase que ao mesmo tempo?

 Crane teve uma hesitação de desconforto. Eu estava excessivamente agitado e naturalmente passava minha agitação àqueles com quem me comunicava. Mas é que eu não queria perder o zumbi de modo algum. Ela pensou um pouco e enfim respondeu:

 — S... Sim. Agora que o mencionou... Aconteceram quase que ao mesmo tempo.

 Apenas franzi o cenho enquanto tragava meu cigarro.

 Aquele desgraçado... Era mais esperto do que eu julgava. Tudo desde a fuga a pé e o assassinato deve ter sido premeditado. Para o local do roubo foi escolhido Club Jewel e não uma joalheria perto de sua casa para que pudesse ter tempo de despistar os policiais convencionais. Se eles estivessem perto de sua residência ele corria o risco de ser visto quando estivesse saindo do recinto. Escolheu correr a pé porque seria mais fácil despistá-los sem um veículo de grande porte. Ele sabia que o DCAE o encontraria pelo odor, mas devido ao tempo que levaria entre o relato e nossa ação ele teria tempo o suficiente para matar o homem e então sair da cidade. Escolheu matar aquele homem aqui em Sproustown para que ele pudesse ficar sem causar nenhum rebuliço em seu próximo destino; para que pudesse ter mais três dias sem fome e assim sem chamar atenção.

 A única coisa que me intrigava até então era que ele não escapou da cidade imediatamente e eu não sabia por quê. Mas naquele momento vi que isso devia ter relação com a pressa com a qual ele revistou sua casa antes de pular pela janela. O dinheiro conseguido na joalheria deve ter sido somado com uma quantia que ele já possuía. Deve ter sido um dinheiro que foi juntado para pagar uma dívida aqui. É sabido que em Sproustown existem algumas gangues que trabalham com o tráfico de drogas. Devia ter alguma relação com elas... E isso explicaria por que ele não fugiu ontem ao invés de hoje. Ou ele tinha um compromisso com alguém ontem... Ou ele precisava pagar alguém para quem devia no dia de ontem e por isso teve que conseguir o dinheiro de forma ilegal e precipitada, tendo que também elaborar uma fuga para o dia seguinte... Outra possibilidade seria ele estar trabalhando junto com outra pessoa envolvida com o tráfico e por algum motivo iria esperar esta pessoa para sair de Sproustown junto com ela hoje de manhã. Todas essas razões explicavam a espera até a manhã para a fuga da cidade.

 Levando tudo em consideração é difícil acreditar que o desgraçado tenha decidido roubar um carro qualquer para ser o veículo de sua fuga. Como estava ciente que o DCAE já sabia da situação, ele devia ter elaborado um plano de escape, e por isso provavelmente organizou dois roubos simultâneos para nos despistar. Com este pensamento em mente que perguntei à Crane se os roubos tinham sido feitos mais ou menos ao mesmo tempo, como que para confundir a polícia sobre sob qual carro deveriam manter a atenção. E parecia ser o caso.

 Difícil pensar que um zumbi como Jeffrey Sprohic teria premeditado todos os detalhes de sua fuga sozinho, e somando o fato de que foi capaz de elaborar dois roubos simultâneos para distração me levou a concluir que ele devia estar trabalhando com ou para mais alguém. E isso me levou a crer ainda mais em sua relação com os distribuidores de drogas ilícitas da cidade.

 Mas aumentar o número de roubos não despistaria a polícia, pois basta dividir o pessoal, cada equipe atrás de um carro roubado. Então já que está sendo tão esperto ele deveria estar mais um passo a frente, o que me levou a conclusão mais provável: Sprohic não planejava sair da cidade de carro, mas de barco. E não apenas um, mas ambos os roubos de carro deviam ser apenas mera distração.

 A partir dali trabalhei com esta hipótese em mente.

 Desci até a garagem e organizei o pessoal. Havia seis soldados madrugueiros disponíveis: Jackson, Carl, Rubens, George, Hick e Mike. Organizei a patrulha em três times: Hick e Mike averiguariam o primeiro roubo relatado, Rubens e Jackson perseguiriam o segundo carro e eu junto com Carl e George iríamos até o porto. Eu não passava muito tempo com o pessoal do suporte, até mesmo porque eles ficam no prédio da frente e raramente temos a oportunidade de trabalharmos juntos em uma excursão. Como não sei muito sobre eles posso descrevê-los por sua característica física: Carl era o moreno baixinho de cabelo curto e George era o mais velho, com cara de caminhoneiro.

 — Até o porto tenente? O senhor acha que...? — Indagou George.

 — É. Até o porto. Relaxe. Eu sei o que estou fazendo.

 E esperava que estivesse mesmo. Mas levando em conta o modo como foram feitos os planejamentos de Sprohic até então, tudo indicava que eu deveria estar certo. A hipótese de relação com os traficantes indicava ainda mais a fuga a barco, visto que traficantes são aqueles que têm dinheiro para manter um barco em Sproustown. Em parte tive esta ideia também porque traficantes têm interesse em seres paranormais como zumbis, mas irei deixar para mais tarde os detalhes da interação entre estes e seres sobrenaturais.

 Droga. Se eu tivesse o associado ao tráfico ontem antes de ir embora talvez eu já devesse ter chegado a essas conclusões.

 Estava tão certo de que ele estaria pegando um barco que nem parei para pensar que poderia estar expondo as outras duas duplas ao perigo. Afinal depois que enviei Crane de volta para casa apenas eu era um oficial qualificado para lidar com o zumbi naquele início de manhã.

 Após um longo percurso finalmente chegamos ao porto. Desci do carro pensando em informar-me sobre se algum barco já havia partido temendo profundamente uma resposta afirmativa. Porém, assim que desci do carro ouvi um rebuliço vindo do lado esquerdo do estacionamento. Avistei um aglomerado de gente. Deduzi que eles deveriam ter visto alguma coisa. Entrei em contato com Jackson e Mark. Eles ainda estavam se dirigindo para as rodovias. O plano deles era verificar se os carros roubados atravessavam as rodovias em algum momento e para isso contariam com a ajuda da polícia rodoviária uma vez que chegassem a seu posto.

 — Fiquem aí no carro. Eu vou descer lá e ver o que está acontecendo — Disse eu a George e Carl.

 Caído em meio ao tumulto estava um funcionário do porto. Estava desacordado e sangrando demasiadamente. Havia provavelmente tomado um golpe certeiro na cabeça, que o deixara naquele estado.

 Existem quatro características que eu observo em zumbis. Esta é uma das que mais detesto. Assim que se deparam com alguém que se opõe a eles, usam da violência, pois  acreditam que com sua força exagerada conseguirão o que quer que seja.

 — O que houve? — Perguntei a um senhor que estava do meu lado.

 — Parece que ele estava brigando com um grandalhão. Eles estavam gritando alto aí de repente o grandalhão deu um murro nele e ele caiu.

 As pessoas estavam transtornadas devido a seu estado preocupante. Se perguntavam a toda hora quando que chegaria a ambulância e onde se encontrava o brutamontes que havia feito aquilo.

 Uma segunda característica do zumbi é a mente simples. Se o plano do Sprohic é vir aqui, tomar um barco à força e sair, ele simplesmente virá aqui, tomará um barco e sairá, sem pensar muito sobre o assunto. Afinal de contas ele pensa que qualquer contratempo pode ser resolvido com violência. O fato de que ele realmente recorreu à violência indicava que não havia barco nenhum esperando por ele para começo de conversa, mas indicava que ele planejava roubar um aqui mesmo.

 Que sorte. Se o funcionário havia acabado de ser atacado e se ele não tinha barco disponível quer dizer que ele provavelmente ainda estava por ali em algum lugar. As pessoas devem tê-lo perdido de vista não porque ele correu dali muito rápido, mas provavelmente porque se intimidaram com seus mais de dois metros de altura e não foram atrás.

 E com razão. Aquele ferimento causado com um só golpe não deve ser levado em brincadeira.

 Assim que eu ia começar a procurar o alvo entre os barcos eu ouvi um estardalhaço vindo da viatura. “Não pode ser” pensei. Corri em direção ao carro. Chegando lá ele estava com a frente amassada e Carl perecia ao lado da porta. Ele tinha uma pistola na mão. Havia bastante sangue perto dele, o que me preocupou. Agachei-me e balancei-o pelos ombros. Carl acordou.

 — Carl. Carl. Você está bem?

 Ele estava ferido, porém ainda consciente. Conseguiu me responder em voz baixa:

 — Ele apareceu. É um gigante. Estava correndo em direção àquele barco azul de dois andares. Aí eu peguei a pistola e atirei. — Ele tossiu e sua cabeça caiu devido à tontura.

 — Carl. Se acalme. Onde está o George? Não me diga que ele..?

 — Ele foi atrás... — Huh... Sua voz falhava.

 “Aquele desgraçado... E deve ter feito isso num só golpe também...”

 Como George não estava ali eu tinha que escolher entre chamar reforço ou persegui-lo eu mesmo. Mas eu estava querendo capturar o bandido já fazia algum tempo e ele estava quase fugindo de barco, então protelei o socorro. Fui em direção ao barco recomendado, e percebi uma trilha de sangue deixada pelo caminho. Provavelmente era do próprio Sprohic porque George não o perseguiria sem experiência se estivesse machucado. O que queria dizer que eles deveriam tê-lo acertado com algum dos tiros e ele ainda assim resistia.

 Resistência. É a terceira característica do zumbi. Sua resistência física os permite ficar indiferentes ao que parecem ser os mais graves dos ferimentos, o que evidencia ainda mais sua falta de humanidade.

 Avistei George apontando uma pistola para Sprohic que estava com um ferimento que tinha perfurado sua camiseta, parecendo ter sido feito por uma bala. George usava um calibre 22, e por causa da resistência inerente de sua espécie, Sprohic podia tomar aquelas balas e ainda permanecer de pé. George sem desistir ainda apontava sua arma para o fugitivo, exibindo uma expressão mista entre estarrecida e intimidadora.

 — George...

 — Senhor! As armas não estão fazendo efeito!

 — Largue a arma. Deixe que eu cuido disso.

 George abaixou sua arma e eu apenas me dirigi em direção ao barco me aproximando em passo normal mesmo. Já que o criminoso nem havia iniciado o barco não teria como fugir do local em que estava. Ele estava encurralado.

 Chegando mais perto dava para ver o quanto ele era mais alto que eu. Como trinta centímetros fazem diferença. Eu parecia um filho de dez anos olhando para o pai. Desde tamanho a massa muscular, contraste provocado pela carranca na sua cara careca e posição faustosa, sua figura, devo admitir, era deveras minaz e imponente. Faria qualquer policial convencional mijar nas calças.

 Sprohic deu um risinho de desdém e disse:

 — Vocês policiais continuam aparecendo. Não percebem que suas pistolas não adiantam? — Ele deu uma gargalhada e mostrou as feridas feitas em seu peito: uma bala estava atravessada até menos da metade em um buraco que até fez um sangramento, mas muito menor do que o tamanho que deveria ter sido — Chequem este corpo! Ele é indestrutível!

 Ele esperou reação temerosa da minha parte. Prossegui andando calmamente até ele. Fez uma careta enfezada.

 — Ok. Parece que vou ter que fazer mais dois cadáveres antes de ir...

 Ele pegou uma caixa pesada de pesca que estava no chão do barco, perto da porta, e começou a correr em minha direção. Fiz sinal para George se afastar.

 A quarta característica típica do zumbi é a confiança total em sua força bruta. Como eu havia dito: se algo não fosse conforme seu plano, Sprohic usaria da violência para fazer a situação voltar ao cenário inicial que estivesse planejado. Foi assim quando atacou o funcionário e provavelmente o que ocorreu quando Carl tinha tentado capturá-lo enquanto eu estava no meio da multidão.

 Caráter violento, raciocínio simples, resistência, força bruta e excesso de confiança. Parece o que faz um vilão típico formidável de uma história em quadrinhos, por exemplo. Ironicamente na vida real dentre a lista de seres potencialmente perigosos do DCAE são as características dos seres candidatos aos mais fáceis de lidar.

 Resistência e força bruta à parte, tudo são desvantagens. O caráter violento faz com que ele deixe pistas o suficiente para ser descoberto durante seus ataques, a mente simples faz com que suas atitudes sejam previsíveis e a confiança o faz preferir uma luta direta ao invés da fuga, todas facilitando o trabalho da polícia.

 Sprohic se aproximou determinadamente e quando suficientemente perto, rodou o braço e me acertou com a caixa de pesca direto na minha cabeça, imaginando que a estilhaçaria em pedaços. Deve ter empregando a mesma força de golpe que deu naquele vidro quebrado da Club Jewel. Seu riso perverso cobriu seu rosto durante todo o impulso até a hora do contato.

 Bam!

 Houve um barulho oco e a caixa se desmontou em mil pedaços, os quais caíram para todos os lados. O próprio Sprohic teve seu corpo jogado para trás com a força do golpe.

 Vou dar um e meio de dez para ele: não foi de todo ruim. Minha cabeça deve ter se inclinado para a direita mais que uns dois centímetros com o impacto. Um pequeno sangramento começou a escorrer por uma de minhas narinas. Com uma mera fungada fiz o sangue parar.

 — Então esse é o golpe que quebrou o vidro de cinco centímetros da joalheria? Nada mal... Parece forte, mesmo.

 — Mas que diabo?

 Sprohic agora tinha uma expressão completamente estarrecida. Não o culpo. É típico de um zumbi recém-nascido imaginar que é o único com propriedades físicas exageradas em comparação com os demais humanos. Não pensaria que existe outro com as mesmas propriedades. Já não podia mais usar a caixa que fora despedaçada quando me acertou.

 — O que...? O que é você? — Ele brandiu e investiu num ataque surpresa, almejando desferir uma sequência de golpes de curto alcance.

 Seus movimentos a meu ver pareciam lentos demais. Desviei sua investida virando meu corpo lateralmente e então quando ele estava perto o suficiente acertei com o joelho em sua barriga, no que ele forçadamente inclinou seu gigantesco corpo de mais de dois metros para a frente. Inclinou-se rápido e exagerado, igual a um verme quando se contorce. Cuspiu sangue com a batida. Quando ele estava na altura certa desferi-lhe uma direita no rosto com que ele veio abruptamente ao chão. Tudo aconteceu em um instante apenas.

 Acendi um cigarro e olhei para seu desgosto. Enquanto podia aguentar os ferimentos superficiais das balas parecia que aqueles golpes compactos tinham feito considerável efeito em seu corpo. Ele franziu o cenho e esforçou-se para levantar. Seu orgulho não o permitiria desistir tão fácil.

 Eu usava meus coturnos de ponta de ferro, parte do uniforme do DCAE, na ocasião. Antes que ele tentasse qualquer coisa chutei-o diretamente em sua face duas vezes. Com aquilo Sprohic finalmente parou de se mexer. Ainda tragando meu cigarro disse a George:

 — Pronto. Traga as algemas do carro. Cuidado, ele é forte. Vai precisar de várias.

 — S... Sim, senhor. — Ele guardou sua arma de fogo e acatou minha ordem. Não proferiu mais uma palavra no caminho de volta.

 Após aquele incidente levamos o suspeito até a central, onde ele ficou preso pelos próximos dias, até a capitã decidir para qual unidade penitenciária seria levado. Os ferimentos de Carl foram tratados imediatamente e felizmente nada de grave havia acontecido. Apesar de o bandido quase ter escapado foi considerado um caso de sucesso de nossa divisão.

 Essa é a história da vida cotidiana de um tenente do DCAE. Dentre as coisas com as quais temos que lidar em nosso trabalho, Jeffrey Sprohic era apenas um peixe pequeno.



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