Hinderman Brasileira

Autor(a): Oliver K.


Volume 1

Capítulo 1.1: Zumbi

 “Zumbis”.

 A maioria das pessoas a ouvir esta palavra imagina seres humanoides semi-esverdeados, andando de forma bizarra e vagarosa, com a língua de fora, à procura de carne ou cérebro humano para satisfazer a sua fome.

 Antes de começar eu quero apagar um pouco esta imagem da sua cabeça. Os “zumbis”, ou também chamados “ghouls” em sua forma antiga de nomenclatura, não diferem muito de um humano normal. É claro, o nome que lhes foi dado é baseado na imagem caricata atribuída ao significado original da palavra. E isto se deve ao fato de haver uma semelhança vital entre o real e o imaginário: o fato de que eles realmente se alimentam de carne humana. Entretanto não da forma desenfreada com que a maioria das pessoas acreditam. Eles comem muito menos que um ser humano por dia. Na realidade não é incomum um zumbi chegar a ingerir pedaços de comida de verdade (verduras, cafezinho, etc.) de modo a tentar esconder sua identidade e fazer apenas uma boquinha de carniça de noite, quando todos dormem. Contudo, quando um zumbi come comida no lugar de carne humana ele não está se alimentando; é como se fosse um ser humano comendo madeira ou pedaços de papel. Se ele continuar assim irá ficar cada vez com mais fome e terá que se alimentar de verdade eventualmente para saciar-se.

 Se a alimentação é a semelhança vital entre a lenda e a realidade, a diferença vital seria a forma de propagação. Na lenda urbana quem for mordido por um zumbi será transformado em outro zumbi e assim sucessivamente até a chegar a um estágio incontrolável da epidemia. Normalmente atribui-se o primeiro nascimento a um vírus ou algo do tipo, em algumas crenças há uma cura para o vírus, em outras não.

 Contudo, na realidade a razão pela qual um zumbi nasce é atualmente desconhecida. Tudo o que se sabe é que acontece em algum ponto entre a morte do corpo humano e sua decomposição. Às vezes leva algumas horas, às vezes leva alguns dias, mas antes que a carne esteja totalmente decomposta, um ser humano pode simplesmente ressurgir como zumbi. Cientistas têm tentado traçar perfis e fazer relações familiares, tabelas de raças, elevar características de propensão, porém tudo sem sucesso. Tudo leva a crer que acontece simplesmente de forma aleatória. Uma solução definitiva seria manter todo corpo morto em estado de vigilância até o final da sua decomposição, para ver se ele se tornaria zumbi ou não. No entanto, devido à baixíssima taxa de acontecimento, somado ao fato de que o governo não quer reconhecer publicamente a existência do ser sobrenatural, prefere-se evitar o gasto desnecessário e manter tal existência em segredo.

 Após o nascimento, ou melhor; o renascimento, apesar de ter o mesmo corpo do humano morto, o zumbi agora é um ser totalmente diferente. Existem raros casos de vaga lembrança da vida humana, mas acontece pouquíssimas vezes e em escala muito pequena. Porém devo admitir que o ser renascido se desenvolve mentalmente muito mais rápido que o ser humano. Ele consegue facilmente identificar que os humanos que o cercam são diferentes e detectam o desprezo pela diferença quase que de imediato, o que os leva a rapidamente tentar esconder-se entre os humanos para evitar a perseguição. Seria isto o que eles dizem que é o instinto? Talvez uma característica que foi passada com o tempo, como uma forma de evolução, uma tentativa de se adaptar ao ambiente? Misturar-se à sociedade sem ser detectado? Nada se sabe. Sobre a natureza e a biologia do zumbi, nada se sabe. E para dizer bem a verdade, não é o foco desta história.

 Embora estes seres se assemelhem muito com o ser humano, há algumas formas clássicas de detectá-los entre nós. A primeira seria pelo hábito alimentar, obviamente. Não se pode negar que algo há de muito estranho entre comer um ser humano, de modo que avistando algo que aparenta ser uma pessoa comendo outra, o melhor a se fazer é clamar pelas autoridades, independente de se o predador é de fato um zumbi ou não.

 A segunda forma seria pelo olfato. Por surgirem da decomposição humana eles têm um cheiro intrínseco de corpo decomposto, alguns mais, outros menos, aparentemente variando de acordo com o tempo necessário para sua ressurreição. Um zumbi pode tentar disfarçar seu cheiro usando colônias e perfumes, mas se você estiver morando com um, dificilmente não perceberá a diferença quando este tiver acabado de sair do banho, por exemplo.

 A Terceira forma seria aproveitar o fato de que eles não se lembram da sua vida humana. Se alguém que o viu durante a vida tentar instigar memórias de quando aquele corpo era o de um ser humano não obterá resposta satisfatória. Ainda mais fácil será a identificação se a pessoa sabe que o dono daquele corpo já deveria estar morto para começo de conversa, já que humanos não simplesmente voltam à vida e saem andando por aí após sua morte.

 A vantagem de um zumbi sobre um ser humano é que eles são naturalmente mais fortes. Aliás, são mais fisicamente fortes do que todos os outros animais conhecidos.

 Para matar um zumbi tudo o que você precisa fazer é matá-lo uma segunda vez. Apenas uma ferida letal, como se estivesse matando um ser humano. É muito difícil a doença, vírus, ou seja lá qual for a razão de sua nascença se manifestar de novo no mesmo corpo. Para dizer a verdade, creio que até hoje houve apenas dois casos registrados de que um deles voltou à vida uma segunda vez, e nenhum caso de que voltou a terceira. Então basicamente uma vez morto, o zumbi está morto para valer. No final das contas a condição de zumbi é como se fosse uma reencarnação, uma segunda vida, e nada muito mais do que isto. A única diferença é a fome, o físico e o fedor de podre.

 Apenas algumas pessoas sabem disso então, por favor, não saia contando: mas o fato é que existe uma divisão de polícia especializada em casos de assassinatos relacionados a estes seres fantásticos. O propósito da existência desta divisão deve ser prezado em segredo, visto que se viesse à tona revelaria a própria existência destas criaturas, assustando a população. Eu comento sobre os zumbis porque os casos destes são uma das coisas com as quais devemos lidar nesta divisão. O nosso trabalho não apenas é o de capturar zumbis (visto que eles são criminosos aos olhos da sociedade, por causa de seu hábito alimentar), mas também prezar por deixar sua existência desconhecida, afinal não queremos preocupar os civis com monstros querendo devorá-los perambulando por aí. Por isso quando há casos em que há alguma ação por parte da nossa divisão, estes geralmente seguem com um longo dia mentindo/negociando com jornais locais para tentar explicar os acontecimentos ocorridos no dia anterior de forma publicável. Este é o trabalho da divisão de casos especiais, ou DCAE.

 Falando em jornais locais, em Sproustown existe uma espécie de acordo entre o jornal diário e o DCAE onde eles atrasam o lançamento das notícias que podem ter alguma relação com estes casos especiais para que possamos investigar livremente e verificar se realmente há alguma conexão ou não com algo de natureza paranormal antes de tornar os acontecimentos públicos. É o que estava acontecendo naquela tarde durante o momento em que eu estava no meu escritório do DCAE escutando a secretária relatar o acontecido.

“O dono da loja reportou às 12:11. A câmera captou o que parecia ser um roubo impossível, enquanto o dono da loja estava cuidando do estoque. Características do suspeito: trinta e muitos anos, caucasiano, cerca de dois e dez de altura, tatuagem reconhecível em seu ombro esquerdo. O suspeito chegou e quebrou o vidro ao lado da porta, apanhou grande parte do conteúdo com suas mãos nuas, sem se dar o trabalho de acobertar as digitais e escapou com o conteúdo no meio tempo entre o dono ouvir o estilhaço e o tempo de ele se locomover entre a sala do estoque e a loja. As razões de suspeita de ser um caso especial destinado ao DCAE são: o fato de que o vidro era temperado, aguentando até quatro marteladas, e mesmo assim foi quebrado a mãos nuas e também o fato de que o tempo entre o golpe no vidro e a escapada, totalizaram vinte e dois segundos. O dono da loja, Steven Wolf, reportou ter apenas visto as costas do suspeito correndo rua afora após sua chegada na parte frontal da loja. Os guardas locais foram avisados, porém não conseguiram pegar o suspeito a tempo.” — É o relato.

 A pessoa que estava de pé do outro lado de minha mesa, lendo o relato de forma impassível, vestindo um casaquinho preto impecável enquanto cutucava seus óculos de lente grossa se chamava Emma Crane. Era a minha secretária, ou melhor, a secretária do DCAE, e quem havia recebido o relato do assalto naquela tarde de terça-feira.

 — Vinte e dois segundos… — Balbuciei. — E sem a ajuda de nenhum instrumento, hm? Agora sim este parece um caso.

 Eu estava sentado na minha cadeira giratória grande de rodinhas, levantando a parte da frente da mesma do chão enquanto fumava um cigarro, como que de costume.

 — Ele devia estar com pressa.

 — A delegacia de roubos recebeu o relatório quando? Há umas três horas atrás?

 — Parece que sim.

 — E o sujeito não foi identificado até então?

 — Não.

 — Eles tiraram as digitais?

 — Tiraram. E disseram que iam enviar ao DCAE quando estivessem terminadas.

 — Está bem, obrigado. — Obrigado era o código para Crane se retirar da sala e me deixar em paz. Não me leve a mal, eu gosto do meu pessoal, mas minha cabeça trabalha melhor quando eles não estão parados na minha frente, ou o que é pior: perambulando.

 Creio que esqueci de me apresentar. Eu sou o tenente Henry Dotson, ou só Dotson (ou às vezes só tenente) do departamento de casos especiais, e dos que vêm regularmente (isto é, presencialmente) ao trabalho eu sou o segundo cargo mais alto. Como eu já disse, lidar com zumbis é uma das especialidades do DCAE e parte de meu trabalho, e como você já deve ter adivinhado, o incidente daquela tarde estava relacionado a um desses seres horrorosos. Até porque eu tive todo o trabalho de começar com uma introdução à natureza da sua espécie.

 O DCAE de Sproustown consistia basicamente da capitã, de mim, da secretária, Joey (o detetive) e também do detetive Cole Chapman que é mais uma espécie de agente secreto pelo qual eu não ponho minha mão no fogo de forma alguma. É claro, há muito mais suporte de pessoal, mas os que investigam e têm capacidade para lidar com os casos mais difíceis são basicamente esses. E sim, a secretária Emma Crane, dos óculos e do casaquinho está inclusa.

 Eu levei mais uns minutos para terminar meu cigarro e depois chamei o Joey e contei a ele a situação.

 Contrastando com meu físico preparado e arduamente merecido, aquele que parecia ser um garoto de dezessete anos, magro e para as mulheres, provavelmente bonito, era o meu parceiro em trabalho: Joey Meyers. Como tenente eu posso chamar qualquer um para me ajudar quando vou à cena, mas em geral eu chamo o Joey e deixo para Crane lidar com o Chapman.

 Mais tarde naquela manhã nós dois descemos até o local do crime, a joalheria “Club Jewel”, no centro de Sproustown. Havíamos saído da central para conversar com o tal Steven Wolf, o dono da loja e também cidadão que fez o relato.

 Uma vez no local do crime ouvimos basicamente a mesma história de novo, exceto que da boca de Wolf. Apesar de ele tê-la contado para a divisão de furtos não parecia particularmente exausto por sua repetição.

 A cena toda estava interditada. Eu me aproximei do vidro quebrado para checar o dano causado ao vidro com o golpe. Foi um direto de direita, limpando uns cinco centímetros de grossura de vidro temperado de alta qualidade. E pensar que uma joalheriazinha daquelas protege os produtos com vidro desse tipo...

 — Isso foi feito com socos, você disse. Com socos no plural ou com apenas um soco?

 — Foi um só soco, senhor. Ele pegou e bum! — Wolf imitou o gesto com a mão. — E pá! Estava quebrado.

 — A câmera captou tudo, acredito?

 — Sim senhor, eu enviei o filme para a polícia mais cedo, o senhor deve ter visto...

 Ausentei-me de explicar que a divisão de furtos e o DCAE não são a mesma coisa. Ao invés disto apenas confirmei com um aceno de cabeça. Depois fizemos mais algumas perguntas de rotina, mas quanto mais eu via aquela cena mais a ideia que eu tive inicialmente fazia sentido na minha cabeça: tinha que ser um trabalho de zumbi.

 Quero deixar isto claro desde o princípio, lidar com seres canibais ressurretos não é nem de longe a única função do DCAE. A bem da verdade zumbis são apenas uma dentre dez categorias distintas conhecidas de seres ameaçadores da humanidade e que são mantidos desconhecidos pelo trabalho de nosso departamento. Então embora eu tenha começado com aquela longa introdução sobre o renascimento após a decomposição da carne, não havia nada em particular que ditasse que era realmente com um zumbi que estávamos lidando naquela tarde. Entretanto existe algo que se chama experiência que se pode utilizar nessas horas. O Joey vai insistir que o que eu direi pode ser considerado preconceito de espécie, mas sim: eu associo a burrice com o zumbi. E não há nada aparentemente mais retardado do que no meio da tarde aparecer numa joalheriazinha meia boca, quebrar o vidro com a força bruta e roubar o conteúdo. O que é isso? Um ser paranormal quer chamar a atenção da polícia para ser caçado? “Olhe para mim, eu existo.” “Eu sou um zumbi.” Foi a impressão que eu tive desde que Crane leu o relato na minha frente. E eu não disse nada em voz alta para o Joey porque ele ia inventar uma discussão sobre como eu estava sendo tendencioso quanto ao comentário sobre a espécie dos zumbis, mas foi porque eu adiantava que seria um ser deste tipo que eu já havia colocado os cachorros no carro quando viemos até o Club Jewel.

 Os cachorros são realmente úteis. O perfume e o desodorante podem enganar o olfato humano, mas o cheiro de decomposição será perseguido pelos cães até os confins da terra. Com o auxílio deles os zumbis não podem escapar da polícia.

 Minha última pergunta para Wolf foi de natureza retórica:

 — Você não chegou a sentir nenhum odor quando ele saiu, sr. Wolf?

 — Odor? Hmm agora que você diz… — Wolf ia dizer alguma coisa, mas Joey tinha chegado do carro com um dos cachorros. Wolf ficou meio sem jeito ao ver os cães adentrando a loja, mas acabou cedendo. O farejador conseguiu captar alguma coisa no vidro.

— Haha! Bingo, tenente! — Disse Joey e começou a segui-lo.

 Não tem por que duas pessoas seguirem os cachorros, então eu acendi um cigarro e fiquei esperando encostado ao carro, até Joey me contatar por meio de uma ligação. Não importa para onde o suspeito tenha corrido ou o quão longe ele esteja, como seu fedor vem do estado de decomposição de um corpo e não de algo temporário como suor ou qualquer outra coisa do tipo, ele nunca some. Se meu palpite estivesse certo Joey alcançaria o alvo mais cedo ou mais tarde.

 Cachorros são maravilhosos.

 Contudo parece que o suspeito havia corrido um bocado após ter conseguido as joias porque o cachorro só parou muito depois e em um lugar muito distante. Não é que fosse um local isolado ou abandonado, pelo contrário, era no meio de Marshmoore, que era uma área movimentada. Mas digo longe no sentido de que Marshmoore ficava muito longe do Club Jewel, o que faz o assalto ainda mais esquisito. O que um zumbi ganharia roubando aquela loja em particular? Por que não escolheu uma mais perto de onde se escondia? E se planejava ir tão longe, por que foi a pé? Se tivesse ido de carro era capaz de o cachorro não ter conseguido farejá-lo... Como eu disse: burrice igual a zumbi.

 Joey me ligou passando o endereço e eu alcancei-o de carro. Descemos em um lugar menos movimentado, um beco, e como era quase perto da hora do fim de serviço da maioria dos estabelecimentos locais já não havia quase ninguém na rua. Havia só uma pessoa. Ou melhor, um resto de pessoa. Era um homem de cerca de quarenta anos, ou pelo menos a metade da frente dele: as costas haviam sido arrancadas por alguma coisa, como se um animal gigantesco tivesse mordido e arrancado um pedaço. Havia também sangue espalhado por toda a parte. Respingos de jatos jorrados na parede, uma poça concentrada na calçada, um rastro vermelho mais vivo escorrendo pelo meio fio até ser drenada pelo ralo... Ele estava deitado com o resto das costas para cima, deixando exposto que sua coluna tinha um pedaço do meio faltando, como se tivesse sido arrancada junto com a mordida. Parte de sua carne vazava para fora do lugar, esparramando-se sobre sua lateral.

 Com tanta carne faltando e tanto vermelho sangue compondo aquela imagem grotesca, não preciso dizer que aquele homem estava morto.

 E esta era a prova definitiva de que estávamos lidando com um zumbi. Já não se tratava mais de especulação.

— O que foi isso...?

— Um zumbi... Você estava certo... Eles se alimentam de... — Joey não terminou a frase.

— É... Eu sei...

Mesmo assim... Esses ataques nunca deixam de surpreender.

— Uau. Tem sangue escorrendo até o bueiro... Parece que pintaram o chão de vermelho. E olhe esses bichos pousando nele... Que nojento. — Joey tocou em um deles levemente.

— ...

 A grotesca imagem indigesta sugeria que alguém atacou o sujeito pelas costas, ele se debateu enquanto era devorado na área da calçada coberta de sangue, e após certo tempo caiu e se arrastou até o meio fio, vindo a perecer provavelmente por falta de sangue.

 A parte ruim de nosso trabalho era ter que presenciar esse tipo de coisa.

— Os cães acharam mais alguma coisa? — Perguntei após colocar a cabeça no lugar.

— O cheiro pára aqui, mas parecia que eles queriam entrar — Joey apontou com a cabeça para um estabelecimento fechado com uma porta de ferro, a qual provavelmente ligava ao segundo andar do pequeno prédio de dois andares. Um dos cachorros estava parado olhando para nós e o outro ainda farejava uns respingos de sangue perto da porta. Joey comentou:

— É incrível que ninguém tenha passado por aqui, quer dizer... Normalmente já deveria ter uma multidão aqui em volta.

— Você chamou ajuda?

— Chamei o pessoal da perícia e uma viatura do hospital para eles levarem o corpo embora. Eles devem chegar daqui a pouco. O que vamos fazer? Vamos entrar?

 Entrar era a ideia correta, mas deveria ser pensada com cuidado. Se o suspeito estivesse lá seria perigoso. Mais correto seria entrar após o reforço chegar, mas algo dentro de mim me dizia que o suspeito não teria ficado parado esperando dentro do prédio após cometer o assassinato, então havia noventa e nove por cento de chance de ele já não estar lá dentro, o que reduzia o perigo a zero. Decidi que entraríamos para averiguar o local.

 Uma escadaria subia até o segundo andar do estabelecimento fechado, que dava para um corredor com duas portas: Cada uma delas parecia ser a porta de uma residência, de forma que havia duas moradias: provavelmente uma delas era alugada e outra era do dono do estabelecimento. Pela precariedade da condição era o tipo de dono que deixava qualquer um ser o locatário, então provavelmente se o dono fosse interrogado ele diria que não sabia de nada e nem ouviu nada. Empurramos a porta da moradia alugada à força — e tínhamos força — de modo que ela cedeu.

 O interior estava uma bagunça: diversas coisas atiradas no chão, desde utensílios de cozinha até meias, roupas de baixo e diversos objetos de porte pequeno que poderiam ser guardados em gavetas ou separadas em caixas de forma organizada.

— Parece meu quarto — Disse calmamente Joey em tom normal, mas eu já o conhecia o suficiente para separar a ironia da realidade.

 O lugar todo consistia de um cômodo grande logo na frente e havia uma separação apenas para um corredor que tinha duas portas: uma para um quarto e uma para um banheiro, o restante era aglomerado no grande cômodo principal: havia um espaço para o sofá, o televisor e as demais coisas da sala, e depois tanto a cozinha como a mesa de jantar ficavam à direita, pouco mais adiante, mas sem separação. A mesa da cozinha estava tombada, o que explicava porque havia tantos objetos de cozinha no meio da bagunça. Todos aqueles objetos deviam estar primariamente sobre a mesa. Outros objetos haviam sido revirados: O armário debaixo do televisor tinha todas as gavetas escancaradas e vazias e havia um buraco na tv.

 Fui até o quarto. Como eu imaginava tudo havia sido revirado lá também. As roupas de cama no chão. As gavetas do armário abertas. As peças de roupa de dentro do armário jogadas por toda a parte. A janela estava aberta. Passando os olhos pelo local dava a impressão que alguém tinha entrado, procurado alguma coisa de modo frenético e logo depois que encontrado tinha pulado a janela. Olhei pela janela afora e vi que ela dava para um pátio onde os moradores estacionavam os carros, e atrás do mesmo podia-se enxergar a rua de trás.

— Aqui também está tudo bagunçado... — Joey entrara no recinto observando o óbvio. — O que acha? Ele pulou a janela?

— É o que dá a entender. Corre lá fora e traz o cachorro para ele dar uma cheirada aqui nesse quarto?

— Ok.

 Mas seja lá como for, o suspeito havia se livrado do cheiro. Os cães paravam de sentir o odor naquele quarto e depois não encontravam mais nada. Farejavam o parapeito da janela e depois ficavam me olhando como que se procurando uma explicação.

— Ele deve ter pegado um veículo. — Eu disse — Assim o cheiro ficaria dentro do veículo e não poderia ser detectado.

— Ele tinha um veículo na rua de trás, então? Ou será que ele roubou um?

— De qualquer forma, o locador deve saber reconhecer algum veículo que sumiu. Vamos ter uma conversa com ele.

 Ouvimos um barulho do lado de fora.

— O pessoal deve ter chegado. — Comentou Joey.

Após a chegada do carro da ambulância e dos peritos, o trabalho naquele local ficou mais com eles do que com nós investigadores do DCAE. Até porque não havia mais muito que pudéssemos fazer. Eu e Joey saímos dali e fomos ter uma conversa pessoal com o dono daquele estabelecimento, que morava na casa ao lado da que arrombamos. O dono era baixo, careca (quase) e gordo. Tinha um bigode preto e não aparentava muita confiança. Ele ficou parado em frente à porta durante todo o pequeno interrogatório.

— Sim? — Iniciou ele após abrir a porta em resposta a nossas batidas. Mostrei meu distintivo.

— Tenente Dotson e Detetive Meyers, o senhor poderia nos dar um tempo para algumas perguntas?

— Sim...? — Ele tornou a fazer em tom pouca coisa mais hesitante.

— É sobre seu locatário... Ele é atualmente suspeito de um roubo e um assassinato...

— Oh. — Ele não parecia necessariamente muito surpreso.

— Pode nos contar alguma coisa sobre ele?

— Eu... Não sei muito sobre ele... Ele alugou o local há apenas dois dias, sabe... Ele não tinha um histórico muito favorável se me entende... Disse que havia acabado de ser liberado da prisão ou algo assim, mas para falar a verdade não me importei muito então deixei ele ficar... Eu não pensei que ele estivesse... Em alguma atividade desse tipo.

— Entendo...  O senhor deu falta de um Prestige 2010 de cor cinza? — Inventei uma marca de carro qualquer. Joey estava apenas olhando os arredores enquanto eu fazia as perguntas.

— Prestige? Eu...? Não... Não senhor...

 Ele estava excessivamente cauteloso então meu instinto me dizia que ele e o suspeito poderiam ou estar trabalhando juntos ou ele poderia estar o acobertando. É claro, era apenas uma possibilidade. Eu tinha mencionado um carro aleatório para ver se ele comentava vagamente a marca de seu carro quando a resposta fosse negativa, como por exemplo “Prestigie? Ah não, meu carro é da marca x...”. Sem saber do que se tratava poderia deixar escapar tal informação, porém se eu tivesse perguntado diretamente a marca de seu carro e se ele realmente trabalhasse junto com o suspeito então ele mentiria. Mas aparentemente minha tática não tinha dado certo.

— Um Prestige sumiu após bater no carro que estava lá na frente — Minha última deixa para ele achar que estava envolvido com o caso de alguma maneira e esboçar alguma reação.

— Eu não possuo carro, senhor... Estou pensando em pegar um, mas...

Então não houve reação...

— Entendo... E o locatário possuía algum? — No fim, a contragosto, tive que formular a pergunta de maneira direta. Se eles realmente estivessem juntos a resposta seria negativa de qualquer modo.

— Não, senhor. Ele não tinha veículo algum também.

Dito...

 Tivemos apenas mais um pouco de conversa que não trouxe resultado algum. Perguntei se ele ouvira algum barulho, se escutara o suspeito chegar e depois pedimos para ele o fichário de locação do suspeito e fomos embora.

 No caminho, Joey estava olhando para o papel confiscado com as informações sobre o sujeito.

— Acha que ele estava escondendo alguma coisa? — Perguntei a Joey enquanto ele examinava a ficha.

— Não... Parecia naturalmente abalado com a notícia repentina, então é natural que não fale muito.

— Ele parecia estar me evitando...

— Devia ser o fedor do seu cigarro, tenente. Até eu tive que desviar a cabeça. — Joey sempre desferia aquele tipo de comentário impertinente de forma casual e inexpressiva. Ele começou a murmurar enquanto examinava a ficha do locatário:

— Jeffrey Sprohic. Quarenta e dois, dois metros e sete de altura. Aparentemente ele é ex-detento de Silverbay. Estava procurando emprego após sua pena. Ou pelo menos é o que disse no documento. Tem o número da identidade dele aqui. Vou mandar para o DCAE.

— Faça isso. E depois vamos ter que esperar. Não tem mais nada que possamos fazer — Disse enquanto jogava meu cigarro no chão e amassava-o com o sapato. Estávamos agora na rua da frente onde os peritos estavam analisando a cena sanguinária. A multidão de curiosos que antecipamos outrora agora estava presente em dobro, todos aglomerados separados pela faixa amarela dando um trabalho insuportável para o pessoal do suporte. Estralei meu pescoço e prossegui:

— A perícia vai ver se acha alguma pista, os legistas vão chamar a família do corpo para fazer o reconhecimento e nós não conseguimos nenhum carro para seguir e o cheiro do cachorro sumiu... O melhor a fazer é ir para a casa.

— Já está anoitecendo mesmo. — Joey respondeu enquanto olhava o céu. Já estávamos há muito fazendo hora extra. Aquele incidente tomara muito de nosso tempo devido à distância que Joey teve de percorrer a pé.

 Os curiosos quase que forçavam a faixa para ver o que havia acontecido. Quanto mais sangue, mais curiosos atraía. Eu odiaria ter que ser o pessoal do suporte.

 Depois daquilo fomos para a casa. Isto é, Joey foi para a dele e eu para a minha.



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